sábado, 3 de abril de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Crônica-Filo

Fome de Alma

L’accomplissement - Gustav Klimt

Texto
Mione Sales*

"De cada um, conforme sua capacidade;
para cada um, conforme suas necessidades."

Karl Marx

 
Segui a pista da inspiração do autor moçambicano Mia Couto que tem um livro intitulado Cronicando, para discorrer de forma mais leve aqui na Volta do Mundo neste final de semana de Páscoa, por meio deste curto ensaio, meio crônica meio filosofia. Enquanto o Brasil e parte do planeta já se acham em pleno feriado, suspendo momentaneamente o foco sobre as questões políticas e sociais, para proceder a um movimento de análise, simultaneamente, de « fora para dentro» e de “dentro para fora” dos sujeitos.

O nome desta matéria – « Fome de alma » - poderia sugerir uma reflexão metafísica, bem de acordo com a data, mas na verdade a proposição é falar de gente e suas necessidades; dito mais precisamente, de homens e mulheres e suas « necessidades radicais », entre as quais se inclui o legítimo desejo de cultura.

Aproveito para lembrar que a filósofa húngara Agnes Heller desenvolveu, no seu livro Teoria de las Necesidades en Marx (1978), uma pesquisa sobre o tema. Ela discorre ainda sobre as « necessidades naturais » (concernentes à perpetuação e conservação da vida) e as « necessidades necessárias » (fundamentais à estruturação da vida em comum). Essas necessidades têm o ser humano como eixo; sendo assim, o determinam e são por ele determinadas. Giram, ademais, dinamicamente, em torno da luta pela sobrevivência, da construção e garantia de condições de vida em sociedade, e do horizonte possível e inalienável de superação crítico-social, estética e política.

Trata-se potencialmente de um movimento de mão dupla: das necessidades naturais até as necessidades radicais e vice-versa. Todavia, no contexto da sociedade capitalista, lamentavelmente, uma grande parte da população da Terra encontra-se alijada, ainda hoje, das mais elementares necessidades naturais e necessárias. O ecosocialismo e a luta por direitos humanos apontam na direção justamente da socialização das riquezas e do direito à fruição individual e coletiva dos bens comuns, como a natureza, e aqueles produzidos socialmente. Integram, assim, um projeto coletivo – nacional e altermundialista - que pleiteia o reconhecimento e tenta assegurar as necessidades fundamentais de alimentação, água potável, abrigo, vestuário e saúde para a totalidade dos indivíduos, lado a lado ao direito ao trabalho. Desde longa data, incluo-me nesta luta, assim como os demais companheiros do blog Mídia & Questão Social.

No entanto, esta incontornável esfera de luta em prol das « necessidades naturais e necessárias » não impede e mesmo exige que os militantes e defensores de direitos humanos, enquanto indivíduos, cultivem seus canais de retro-alimentação, a fim de multiplicarem forças junto aos movimentos sociais ulteriormente. Falar, portanto, de « fome de alma » remete especialmente às « necessidades radicais » – presentes e futuras. Sua porta inicial de entrada e saída é o indivíduo, mas a perspectiva é a da sua irradiação e partilha pela via da ação e da criação com o conjunto de sujeitos com os quais se convive e nos espaços sociais em que se circula e se atua.

Consiste, como foi dito mais acima, em « um caminho desejavelmente de mão dupla »: do indivíduo ao coletivo e vice-versa, e da garantia e estímulo concomitante, pela sociedade, das diversas necessidades humanas - resguardadas as dificuldades já comentadas. Estas, por sua vez, não devem servir de pretexto para que se ergam concepções hierarquizantes e obstaculizadoras, mesmo no âmbito da esquerda, quanto ao desenvolvimento de todos e o de cada um. O coletivo pode e deve, diante do contato com o fluxo de ideias e capacidade criadora de cada indivíduo, lhe oferecer retornos, sob a forma da reciprocidade, reconhecimento, incentivo e também da crítica, exigindo, tensionando, propondo e acrescentando, enfim, dialogando.

Todas as pessoas têm, assim, em maior ou menor grau, « fome de alma » - imagino -, mesmo as que não se dão conta desta formulação, que adoto inspirada nos antropólogos junguianos e que diz das necessidades individuais e subjetivas de envolvimento com objetos, processos e atividades que sejam « produtoras de sentido ». Suprir a « fome de alma » requer, assim, momentos ativos de fruição cultural, marcados pelo deleite propiciado pelo aprendizado numa conferência ou sala de aula, na escuta de uma roda de contadores de histórias, na leitura, na descoberta de um site genial, na realização de uma viagem, na visão de um filme, na visita a uma exposição, na participação numa reunião ou debate político, entre outros.

A « fome de alma » provoca uma breve pausa no processo criativo, e manifesta-se quando o « espírito » ou a mente já fatigada do mesmo, logo em ritmo de lentidão e à beira de uma pane, grita e dispara o alarme. Esta fome, bastante específica, assinala um « Ya basta ! » e clama por « alimento », que consiste no contato com o novo, sob a forma de: valores, eventos, pessoas, grupos, processos sociais, ou objetos culturais e artísticos, que sejam capazes de desencadear mais um renovado ciclo de inventividade humana, no caso em escala individual. Vale dizer que, a depender de cada um, isto não implica necessariamente movimentos contraditórios, incoerentes ou divergentes do que se está a viver ou fazer. Pode significar muito mais um aprofundamento de aspectos da experiência da condição humana.

Logo, esse alimento-livro (ensaio-poesia, teatro ou ficção), alimento-pessoa, alimento-processo político, alimento-música, alimento-obra de arte, alimento-filosofia, alimento-criança e ludicidade pode ser descoberto por acaso, graças a um encontro fortuito e inesperado, mas também pode ser fruto do contato com o espaço genuíno do conhecimento – a escola e a universidade. No quadro atual da política de cultura brasileira, pode ser igualmente mobilizado e estimulado no âmbito dos criativos Pontos de Cultura espalhados por todo o país.

Há pessoas que funcionam melhor no silêncio, outras no barulho e na multidão. Há os que são bastante autônomos e podem até achar que prescindem dos ditos alimentos para a alma, pois pensam que bastam a si mesmos. Há ainda os interdependentes, que carecem da dinâmica do coletivo para florescer, crescer e aparecer. Há os sujeitos de natureza mista. Os temas também são, claro, os mais diversos. Dizem respeito desde às necessidades mais recônditas da alma, saciadas pela leitura, pela música, pelo cinema, pela amizade, pela arte e mesmo pela psicanálise, até objetos de pesquisa e inovações no trabalho.

Particularmente, funciono bem tanto na solidão quanto no grupo. Posso, assim, testemunhar tanto sobre o fenômeno de “fome de alma”, quanto a respeito do processo que sobrevem depois, dado o seu papel mobilizador em prol de novos movimentos e investimentos de sentido na vida. Ainda na infância, aconteceram-me preciosos “insights”-alimentos provocados, dentre outros, pelo contato com a música e a literatura. Foram, no caso da música, experiências curtas mas intensas, propiciadoras de uma profunda consciência de estar viva e em sintonia com outros indivíduos. Na ocasião deste tipo de vivência, damos um salto veloz, em frações de segundo, da nossa singularidade – imersa no cotidiano, sob o domínio das necessidades naturais e necessárias - em direção à universalidade – com suas necessidades radicais, que no blog vimos chamando de exigência realista do “impossível” ou da defesa de “estranhas utopias”. Ouvir, inadvertidamente, Bob Dylan cantar a melodiosa “Lay, lady, lay” ou Chico Buarque o seu “Morro Dois irmãos” permite mergulhar nessa esfera indivisa da comunhão do eu com os outros (eus). Poesia e música, nesse caso, constituem, juntas, um forte passaporte para a ultrapassagem dos lugares comuns.

É belo saber, portanto, que o homem - produto da linguagem, da práxis e do trabalho - é um ser incompleto, pois marcado pela falta, o qual age individual e coletivamente, de forma incessante, com vistas a preencher a sua necessidade de « sentido ». « Fome de alma » é, portanto, nada mais nada menos que uma fome humana de crescimento e de ruptura com a alienação de si mesmo. Isto explica o investimento e o lugar que a política, a filosofia, a literatura, a ciência, a religião e a arte ocupam na história e na vida de muitos de nós, como canais primordiais de indagação, busca, revolução permanente e aspiração emancipadora de homens e mulheres.

E, você, tem fome de quê?

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MIONE SALES – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora da FSS/Uerj. Contato : mioneecia@hotmail.com

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Para ler

BENSAID, Daniel (dir.) Politiquement incorrects. Entretiens du XXIème siècle. Paris, éditions Textuel, 2008.

COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa, editora Caminho, 1991.

HELLER, Agnes. Teoria de las Necesidades en Marx. Barcelona, Pensínsula, 1986.

LOWY, Michel. « Qu’est-ce que l’écosocialisme ? ». Acessado em 02/04/2010.

[ http://www.legrandsoir.info/article2075.html ]


Para escutar

http://www.youtube.com/watch?v=kDauPMPIEDw&feature=related

(« Comida », Titãs)

http://www.youtube.com/watch?v=59vF4s89QZI

(« Morro Dois Irmãos », Chico Buarque)

http://www.youtube.com/watch?v=CCPw0AXpkIU&feature=related

(« Lay, lady, lay », Bob Dylan)

Um comentário:

  1. Muito legal você falar sobre essa coisa da fome de alma e como ela foge da questão do individualismo, com a perspectiva de irradiação e partilha pela via da ação e criação com outros sujeitos. Outro dia desses, estava conversando com alguns amigos e foi citado um livro de um autor francês, Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio. Dei uma olhada no livro e ele analisa a sociedade pós-moderna, que seria marcada, segundo ele, pela perda do sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas e pela cultura que privilegia uma regulação fria das relações humanas. E aí, o que vale é o individualismo, o hedonismo e o cada um por si. Que ótimo que você defende o contrário. Nós socialista não podemos esperar o novo tempo... temos que ser libertários desde já... nos transformamos em todos os níveis... enfim ter “fome da alma”.

    Ricardo Pereira

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