RETRATOS FALADOS
ou sobre alteridade e esperança
Mione Sales*
« Eu
quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
(…)
Simpatizo
com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens ».
FERNANDO
PESSOA
« Mulher
lendo » - Picasso
Folheava meio a esmo um livro de crônicas e comecei a ler algo que me
interessou. Era de Clarice Lispector. Gosto muito do jeito corriqueiro, quase
banal que ela empresta aos seus escritos… Sempre algo fortuito a conduz para o
labirinto profundo dela e de nós mesmos. Nessa leitura rápida, gostei em
particular da crônica « Uma Encarnação Involuntária », talvez por já
ter experimentado sensação semelhante. Dizia a personagem-narradora:
As vezes, quando vejo uma pessoa que
nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou
um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja
ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela, me encarnar,
compreendo-lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me
encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queria o
retorno a mim mesma.
Num ônibus carioca certa vez fui tomada de enorme empatia por alguém que
eu jamais vira antes. Tratava-se de um homem. Um jovem trabalhador, como tantos
outros. Uma pessoa comum. No entanto, a dureza percebida nos seus traços, a
falta de beleza, uma espécie de desamparo existencial tocaram-me. Sua presença
ali a pouco mais de um metro conferia-me a certeza de que aquela pessoa era
real e tinha, como eu, uma vida, por mais difícil que fosse a sua: uma vida que
de algum modo lhe dava um sentido para levantar, trabalhar, lutar ou
simplesmente se revoltar por tudo isso.
Eu não o conhecia e nem por isso, ele deixava de existir. Fechava e
abria os olhos e ele continuava ali, na minha frente, existindo. Como aquele
homem, milhões. O mundo vai continuar girando, cada vez mais veloz, a despeito
de mim e de nós. Por mais que a consciência das coisas seja marcada por uma
indelével pegada subjetiva, as coisas e o mundo existem à revelia de mim: aquele
trabalhador, o ônibus, ou os versos e tabuletas de que falava o poeta Fernando
Pessoa.