sábado, 30 de outubro de 2010

Editoria Caleidoscópio Baiano

SÉRIE MÍDIA E ELEIÇÕES - SEGUNDO TURNO PRESIDENCIAL

Hoje, publicamos o último artigo da série a poucas horas do resultado final das Eleições Presidenciais 2010. Ele traz o testemunho da responsável pela editoria Caleidoscópio Baiano, Claudia Correia, sobre conjuntura política, da qual viveu até hoje. Para ela “Política passa por nós, por nossa identidade, sonhos, projetos.”

Muitas análises foram feitas em profundidade pelos outros articulistas, como expressou entre os blog-amigos. Assim, optou pelo resgate da Política do cotidiano, das nossas impressões, sentimentos e vivências, que são muito importantes, para a construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.

Seu voto é por Dilma Rousseff e ela explicita o porquê de sua opção.


Um abraço,

Equipe Blog Mídia e Questão Social
:::::::::::::::::::::::::::::::::


Papo de mesa de bar sobre Política


Claudia Correia *


Sempre me identifiquei com a Política. Desde muito cedo percebi que ela está inteiramente vinculada à nossa vida, em todos os níveis das nossas relações porque vivemos com base em pactos, acordos onde os interesses em conflito devem ser explicitados. Neste território de contraditórios, aprendemos desde criança que o mundo é feito de gente diferente, tratada como desigual pelas instituições, e de muitas contradições. Através da Política percebemos o nosso papel na sociedade, o nosso lugar neste mundo de diversidades e de desigualdades e principalmente a importância de lutarmos por princípios caros como Liberdade, Justiça, Igualdade, Democracia e tantos outros. Descobrimos cedo que o Estado Democrático de Direitos custa muito para ser conquistado e que as grandes revoluções passam por processos de educação e por todos os espaços de sociabilidade.

Na Política temos um campo fértil para reflexões e práticas de atores sociais. Mas, precisamos entrar em cena para, com coerência, desempenhar o papel desse personagem , o “ser político”, mediador, articulador, negociador, líder de processos de transformação, incluindo todos os estilos, dos mais autoritários aos mais democráticos.

Sempre desconfiei de quem diz que não é político e só atua como técnico ou observador da cena social, que abomina a política, que vota nulo ou que torce lado a lado com a turma do “quanto pior, melhor”. Tenho muitos amigos que se dizem anarquistas, outros que votam nulo para protestar, “marcar posição” e conheço bem tantas outras expressões de participação política. Quem escolhe o Serviço Social e o Jornalismo como eu não pode assistir da janela a vida passar.

Política é tema para mesa de bar, auditórios acadêmicos, cama de casal ( e de solteiro, incluindo motel e festa), sindicatos, ambientes de trabalho, escola e todos os espaços de reflexão sobre nossos projetos de vida e sobre os projetos societários. O projeto ético-político-profissional do Serviço Social aponta para uma sociedade sem exploração ou dominação de qualquer natureza e ao lutar por esta utopia assumimos a dimensão política de nossa presença neste mundo que globaliza a pobreza e privatiza os direitos sociais.

Tenho dúvida se a eleição é a verdadeira festa da Democracia, clichê muito usado na mídia oficial. Nem sei se o voto devia ser obrigatório ou facultativo como em alguns países. Só sei que adoro votar em qualquer circunstância, sempre escolhendo quem me (nos) represente melhor, simbolize princípios caros, que sempre defendi. Já atuei de mesária e presidente em seções eleitorais com o maior gosto, apesar do domingo de sol convidar para uma praia regada a acarajé e cerveja....

A Política está no nosso cotidiano, o funcionamento das instâncias de governo afeta diretamente nossas vidas, os direitos só são conquistados com pressão e engajamento coletivo, a gestão pública pode e deve ser participativa, o “festejado” orçamento participativo e os conselhos de direitos podem representar avanços. Enfim, não dá para se excluir da discussão provocada pelo processo eleitoral já que está em jogo modelos de governar, princípios éticos, métodos administrativos e acima de tudo projetos societários.

Desde estudante, na década de 80, procuro participar de debates, me envolver, conhecer teses e projetos de grupos distintos. Nesta fase tive pavor de partido político, considerava um atraso e não compreendia bem o “fogo amigo”, as diversas facções em disputas internas e nunca tolerei aparelhamento de entidades sindicais ou sociais por partidos políticos de qualquer tipo. Militei em uma organização não governamental – Associação Nacional de Ação Indigenista logo que entrei para os cursos de Serviço Social (UCSal) e Psicologia (UFBa). O contato com o trabalho de Educação Popular inspirado na obra de Paulo Freire e a atuação com as comunidades indígenas Kiriri, Pankararé e Pataxó, na Bahia me fizeram optar pelo Serviço Social. Estas questões ligadas à Reforma Agrária e a Política Indigenista passaram a ser um dos critérios para meu posicionamento político nos processos eleitorais de lá para cá.

Já profissional, em 1984 passei a me interessar mais por Política, passei a atuar na Câmara Municipal de Salvador e conviver de perto com os bastidores do jogo partidário, a elaboração das leis, a força da pressão popular por leis que atendam às demandas populares. Em 1992 conheci o então vereador Walter Pinheiro, que presidiu a Comissão dos Direitos da Mulher da Câmara, através da qual conquistamos muitos avanços em Salvador na ampliação de direitos, na criação de serviços de assistência à mulher e no aperfeiçoamento de leis. Pinheiro (PT) cumpriu 4 mandatos de deputado federal pelo PT e acaba de se eleger senador com 3.630.944 votos juntamente com Lídice da Mata (PSB), a primeira mulher senadora da Bahia, prefeita de Salvador quando ele era vereador. Nesta fase, mudei minha concepção sobre partidos políticos e intensifiquei minha militância política, enriquecida com a experiência à frente do Conselho Regional de Serviço Social da Bahia (90-93) e do Conselho Federal de Serviço Social (93-96). Conheci a experiência da Prefeitura de Pintadas, no sertão baiano, liderada por Neusa Cadore (PT), hoje deputada estadual no segundo mandato. Tive a oportunidade de exercitar muitas das minhas reflexões no Mestrado em Planejamento Urbano (UFRJ) através dos avanços obtidos com a intensa participação da população deste município, premiado nacionalmente pelos serviços de excelência implantados e pelo impacto social.

Votei em Lula em todas as eleições. Nunca dependi da Política para sobreviver profissionalmente e cultivo meu senso crítico e minha independência diante de qualquer governo.

Em 1995 filiei-me ao Partido dos Trabalhadores, mas nunca tive uma participação muito atuante, reservando-me a uma discreta presença em defesa de teses e propostas técnicas para as Políticas Sociais, elaborando propostas de projeto de lei para criação de conselhos e fundos de assistência social, criança e adolescente. Procuro manter minha visão crítica, minha autonomia diante de grupos e tendências.

Nunca investi muito em minha formação política na perspectiva mais teórica, filosófica. Na hora do voto, sempre tentei ter coerência, analisar o cenário social e econômico mundial, nacional e local com cuidado, sob a ótica dos movimentos sociais.

Compreender as contradições presentes nos partidos e movimentos sociais me ajuda a quebrar a lógica maniqueísta que costuma se expressar no senso comum. Condeno a “demonização” dos movimentos sociais promovida por parte da mídia vendida ao sistema de poder dominante, mas não tolero o “endeusamento” de práticas sociais como se fossem dogmas. Tenho convicção que os dois governos Lula deixaram de agir efetivamente diante de questões prioritárias para o povo brasileiro. As Políticas Fundiária, Ambiental e Indigenista foram tímidas, com ações pontuais, de efeito midiático, mas não enfrentaram com determinação as forças políticas conservadoras, aliadas do patrimonialismo retrógrado que nos envergonha diante do mundo. O Estatuto da Igualdade Racial só foi aprovado devido à pressão dos movimentos organizados. Uma profunda sensação de frustração me abateu nesta eleição. Esperava mais do governo que ajudei a conquistar, apesar de reconhecer que os indicadores sociais demonstram os avanços obtidos.

Vejam abaixo o panfleto que compara as realizações dos governos FHC e Lula e que circula na internet.




O Sistema Único de Assistência Social – SUAS que conquistamos através da Lei Orgância da Assistência Social ainda não está plenamente implantado. Aliás, quando nossas entidades de assistentes sociais lutaram pela LOAS na década de 90, o maior opositor neste processo de negociação com o Congresso Nacional para a aprovação foi o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Dá para confiar num líder de um partido que considera Assistência Social gasto supérfluo e que como um oportunista se diz pai do programa Bolsa Família?

Os dois governos Lula na minha visão avançaram no controle dos efeitos da crise econômica e na discussão sobre a Política Pública de Comunicação. Participei da Conferencia Nacional de Comunicação no ano passado e posso testemunhar o empenho do governo federal na aprovação de propostas historicamente defendidas pelos movimentos sociais, como o apoio às rádios comunitárias. Por outro lado, ainda não deram conta de temas urgentes que envolvem Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Transportes e Reforma Tributária.

No primeiro turno, motivada pela esperança de conquistar direitos não assegurados neste importante momento histórico da “Era Lula”, optei por Marina. Com o resultado divulgado, imediatamente defini pelo voto em Dilma e passei a acreditar que será a melhor opção na direção da consolidação democrática do país. Também me empolga a idéia de termos uma mulher presidente e a esperança de corrigirmos os rumos da Política de Assistência Social, ainda tímida. Mas o que me encoraja mesmo é sentir e ouvir quem faz campanha por Dilma com o coração e vivencia as transformações do Brasil, abrindo novas possibilidades de viver com dignidade.

Transcrevo as cartas que recebi por e-mail e guardei para conversar com os jovens que as escreveram, ligados ao Centro de Referência Integral de Adolescentes -CRIA onde trabalho agora. Lá encontro todos os dias, jovens, na maioria negros, que moram em bairros populares de Salvador e no semi-árido baiano que tecem suas vidas com muito mais fé no futuro, cheios de sonhos, usando a Arte-Educação como instrumento de afirmação de seus direitos. Eles bem sabem que o Brasil pós-Lula mudou e espero que Dilma possa ouvi-los também.

Amigos e amigas,


Amanhã viajo para votar na Zona 075, seção 039, do Grupo Escolar Góes Calmon no município de Santa Inês-BA, minha cidade natal.
Venho por meio deste instrumento pedir, no próximo dia 31, o voto em Dilma Rousseff, 13, a candidata que representa a continuação de um projeto iniciado pelo presidente Lula. Acredito muito que ela poderá fazer mais pelo Brasil. Tenho muita fé na continuidade de um governo que fez com que o equivalente à população da França pudesse sair de uma condição de miséria, tendo acesso a pelo menos 3 refeições por dia; acredito num governo que, com todas as críticas que se possa fazer a esse respeito, aumentou o poder de compra dos brasileiros e brasileiras; acredito num governo que criou vagas de empregos para o equivalente a uma população do Equador; que manteve uma política social necessária e que dialogou com diferentes campos da sociedade civil organizada - Associação de catadores de papel, Movimentos de trabalhadores rurais sem-terra, sem-teto, Sindicatos, entre outras. Sem contar os investimentos no ensino superior com o REUNI, a princípio mal interpretado por muitos, inclusive por mim; investimentos no ensino técnico com a agregação e ampliação dos antigos CEFET's, hoje IFET's; além de qualificar a estima da população que, hoje, acredita em seu país. E é por acreditar no Brasil e por não querer vê-lo perder tudo isso que votarei Dilma presidente 13.
Recomendo a todos que concordam comigo que escrevam a seus amigos e peçam o voto em Dilma 13, no próximo domingo.
Para o Brasil seguir mudando! É Dilma presidente!
É 13, confirma!
Beijo a todos e todas
Gessé Almeida Araújo, 22 anos,
o filho do oleiro Biminha e da professora Jaci.


Querid@s


Neste final de campanha meu coração de brasileiro, de artista, de educador e sonhador bate forte. Sinto isto porque olho para o caminho que eu e muitos amigas e amigos trilhamos. Caminhos cheios de sucessos, de oportunidades que, com certeza, foram possíveis por conta de uma nova organização que assumiu o nosso País em 2002. Estou falando do governo Lula, que foi feito por Lula e por uma grande equipe que esteve ao seu lado.

Como adolescente periférico parecia difícil terminar o segundo grau: Terminei!
Como jovem periférico parecia impossível ingressar e concluir uma universidade pública: ingressei e terminei!

Como jovem/adulto que sou hoje, as perspectivas de emprego, de qualidade de vida, de oportunidades eram muito poucas: hoje posso afirmar que estou cada vez mais conquistando espaços e contribuindo para a construção de uma nova sociedade.

O melhor de tudo é que este não é privilégio só meu. Posso fazer aqui uma lista de nomes de jovens/adultos que estão em ritmos parecidos com o meu. Gente, isto é política, isso é conjuntura de um País que mudou, que está mudando.

E posso falar também de adolescentes que encontro a cada dia, sonhando e vendo possibilidades aparecer. Ainda não é o ideal, mas é infinitamente melhor do que em outros tempos.

Eu estou escrevendo estas coisas porque, nestes dias, senti um frio na barriga só de pensar na possibilidade de interrupção deste processo. De ver tantas conquistas retrocederem, de imaginar que o Brasil pode caminhar numa direção onde, nós, os negros, periféricos, gays, nordestinos, mulheres, índios e minorias seremos descartados dos planos do planalto.

NÃO! NÓS NÃO PODEMOS FICAR CALADOS!

Quero convidar você a votar, mais do que em candidatos, votar num projeto de futuro para o nosso País.

Por isto, no dia 31, com coragem e sem dúvidas eu vou marcar 13!

Eu te convido a fazer o mesmo. Votar nulo neste momento é correr risco, é entregar o ouro, é fazer o jogo que a mídia suja quer. Eu sei que votar nulo é se posicionar, mas tenho certeza que neste momento não podemos ficar vulneráveis aos riscos de um grupo com intenções perverso.

Quero ainda te convidar a ver o link que segue aqui abaixo. Nele, Leonardo Boff, Chico Buarque, Marieta Severo, Marilena Chauí e tantas e tantos outros artistas e intelectuais se reuniram para dizer sim a Dilma. Eu me emocionei ouvindo Boff e quero que você tambem possa sentir e pensar sobre a nossa nação.



Forte abraço e confiante na vitória.

Bira Azevedo, 26 anos
Prof Teatro Casa do Sol
Coord. Arteducaçao Centro Educacional Santo Antonio/Obras Sociais Irmã Dulce
Coord. Comunicação da Rede Brasileira de Arteducadores (ABRA)
Coord. Comunicaçao da Associação Internacional de Teatro, Drama e Educação (IDEA)
::::::::::::::::::::::::::::::::

* Claudia Correia –Assistente social, jornalista, profª da ESSCSal, Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br.


Muitas análises foram feitas em profundidade pelos outros articulistas, como expressou entre os blog-amigos. Assim, optou por nos trazer o resgate da Política do cotidiano, das nossas impressões, sentimentos e vivências, que são muito importantes, para a construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.

Seu voto é por Dilma Rousseff e ela explicita o porquê de sua opção.

Um abraço,

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

SÉRIE MÍDIA E ELEIÇÕES - SEGUNDO TURNO PRESIDENCIAL

Neste novo artigo da série, Jefferson Ruiz continua sua análise e reflexão sobre o processo eleitoral de 2010. Em artigo postado no dia 03/10 já questionava "Que festa, que democracia?" estamos vivendo. Agora aponta algumas das razões pelas quais votará nulo no segundo turno, em concordância do nosso blog-amigo Ricardo Pereira. E sugere que as esquerdas debatam e defendam o voto facultativo no próximo período.


Um abraço,


Equipe Blog Mídia e Questão Social
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

 Por que votamos?

Reflexões para antes, durante e depois do dia 31 de outubro de 2010


Jefferson Ruiz*


Fonte: blog moedeiro

Um segundo turno para não esquecer

Há algumas semanas parte dos brasileiros torcia por um segundo turno nas eleições. Muitos imaginavam (como dizia a Globo) que seria a chance de “conhecer melhor os candidatos e suas diferenças”. Doce ilusão. O segundo turno trouxe poucos, mas importantes resultados. Dilma fez movimentos à direita. Negou antigas convicções sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Comprometeu- se com setores religiosos a não contrariar, em sua eventual gestão, quaisquer valores defendidos pelas igrejas. Disputou com Serra o título de “candidato mais família” das eleições. Serra demonstrou o que é atualmente: a representação pública da direita brasileira. Aliou-se à TFP e a monarquistas (i). Utilizou imagens religiosas para ganhar votos. Expôs sua vida e a de sua esposa à execração pública. Simulou agressões, tratando como tolos os brasileiros, irritando inclusive jornalistas de sua principal defensora (ii), a Rede Globo de Televisão.

Difícil lembrar de tão baixo nível em eleições brasileiras. Houve ocasiões em que elas significaram momentos de educação política e de debate mínimo de ideias sobre a vida e o país. Em 2010 a democracia meramente eleitoral demonstrou todos os seus limites. Como está, deseduca. Esconde fatos e projetos atrás de números. Prioriza marketing e ilusões midiáticas em detrimento de propostas e de uma real preocupação com as questões fundamentais para nossas vidas.


Diferenças existem. São suficientes?

Os candidatos ao segundo turno não são iguais. Nem seus partidos. Nem suas histórias.

Serra reúne em torno de si o que há de mais conservador e autoritário na vida política nacional. Criminaliza os movimentos sociais. Mente descaradamente ao dizer que defende as empresas públicas nacionais. Quem imagina a possibilidade de uma sociedade com efetiva igualdade e justiça social jamais fará opção por sua candidatura. 



Fonte: jogo dos sete erros / google

Registrar esta diferença é fundamental. Há segmentos sociais e companheiros valiosíssimos que votarão em Dilma por conta do retrocesso que a eleição de Serra poderia significar em relação ao momento vivido pelo Brasil. Pode-se discordar desta tática. Contudo, não estou entre quem pensa que todos os que optam por este caminho capitulam às perspectivas pragmáticas e de gestão do capitalismo adotadas pelo PT. É preciso respeitar esta opção. Sem que isto signifique criar nuvens de poeira sobre realidades que não podem deixar de ser questionadas na vida política recente e atual em nosso país.

Várias questões nos são colocadas neste processo. Cito duas.

(a) As diferenças entre as candidaturas são suficientes para justificar nossa adesão, ainda que crítica?

(b) Embora evidente e historicamente minoritária, a opção por não votar em nenhum dos candidatos deve ser esvaziada de seu conteúdo?


Um governo “de todos” – mas mais de alguns que de outros

Parece ser fato que milhões de brasileiros têm, em 2010, condições melhores de vida que as que tinham sob as gestões do PSDB. Nas palavras do próprio presidente: comem carne mais vezes por semana; podem trocar (ou comprar pela primeira vez) suas televisões e geladeiras a prazo, sem fazer aumentar a inadimplência (cujos índices atuais são os mais baixos da história). Se isto pode ser chamado classe média é outra história...

O próprio presidente, porém, vaiado em carreata em Fortaleza há algumas semanas enquanto passava por bairros em que habitam os mais ricos da cidade, se surpreendeu. “Por que estão me vaiando, se nunca ganharam tanto quanto em nosso governo?”

A afirmação não é falsa. R$ 13 bilhões em 2009 foram investidos no Programa Bolsa Família, beneficiando 12,6 milhões de famílias brasileiras (iii) . Ao mesmo tempo, contudo:

. R$ 8 bilhões (iv) foram investidos apenas em propaganda em redes de televisão no primeiro semestre de 2009. Tais redes estão nas mãos de pouquíssimas famílias (certamente menos de uma dezena). O governo não mexeu nesta indecente concentração.



. R$ 380 bilhões (36% da renda brasileira) foram utilizados no mesmo ano para pagamento de dívidas públicas. Os beneficiários? Cerca de 20 mil investidores, que controlam 80% desta dívida. Movimentos sociais que questionam a dívida brasileira denunciam: há ilegalidades nos cálculos de seu montante. Ainda assim, o governo se nega (em nome de “governabilidade”) a auditar a dívida – conforme previsto, inclusive, pela Constituição Federal de 1988 (v).

. A desigualdade social do Brasil continua sendo uma das maiores do mundo. Somos a 7ª ou 8ª economia mundial. Mas apenas o 75º país em desenvolvimento humano (vi).

Não é à toa que para o famoso “mercado” tanto faz quem vença a eleição de domingo. Seus altos lucros e ganhos não serão comprometidos.


O presente constroi o futuro


Fonte: google

Um dos argumentos utilizados por companheiros que defendem o voto crítico em Dilma é que não se faz política sem diálogo com a vida real, com o quotidiano, com o momento vivenciado pelo país e pela população. Até aqui não há divergência. Contudo, é possível, analisando a mesma realidade, adotar distintos caminhos – sem que um seja menos ou mais legítimo que os demais.

Fato é que as atitudes que tomamos no momento em que vivemos não têm apenas repercussões imediatas. Parte de seus impactos permanece ano após ano, potencializando ou reduzindo as possibilidades futuras de construção de uma sociedade justa. Vejamos alguns exemplos.


Conceito de ética: redução petista

1992. Milhões de brasileiros estão nas ruas. Questionam o presidente que, eleito como “caçador de marajás”, seria cassado por denúncias de corrupção. Nos movimentos sociais um debate se aquece. A corrupção é apenas uma questão de honestidade? Há ou não, na forma como a democracia liberal se organiza, um prato feito para práticas lesivas ao Estado? Trata-se de um fenômeno brasileiro? Ou Europa e África, Ocidente e Oriente também convivem com desvios de verbas públicas para interesses particulares?


Manifestação na Av. Rio Branco (RJ) – fonte: google

O PT e partidos aliados, majoritariamente, fazem sua opção. A “ética na política”, não mais um modelo alternativo de sociedade, passa a ser o carro-chefe no discurso petista. Ética é reduzida a honestidade. Dimensão que deveria ser cobrada e cumprida por todos aqueles que ocupam cargos públicos passa a ser o diferencial para o voto da maioria da população. O discurso rebaixado se instala e permanece: “a corrupção e a impunidade (vii) são o mal do país”.

Que contribuição isso tem para a polarização das atuais eleições entre os menos desonestos de cada lado? “Diga-me com quem anda e te digo quem és” diferencia as atuais candidaturas? Que responsabilidade o discurso moralista da política feito por estes setores da “esquerda” tem no atual quadro nacional?


Mídia conservadora: o papel do atual governo

Lula e o PT sempre questionaram a forma como eram distribuídas concessões de rádios e televisões no Brasil. Ao longo de suas gestões, no entanto, mudaram-se os beneficiários, não o método. Já não são coroneis nordestinos e de outros Estados. Desta vez, são igrejas – católicas e evangélicas (viii).

Que parcela de responsabilidade esta medida tem em relação ao retorno do discurso religioso para as eleições? Que contribuição trouxe para deslegitimar o caráter laico do Estado?


Fonte: carlosalmo.blogspot.com


Registre-se: nenhuma revisão de concessão foi feita pelo atual governo. Não por falta de vontade política, mas por deliberação, pragmática e calculada. Visa garantir apoio ao governo e resultados eleitorais. Como no caso da dívida pública, rever concessões não seria revolucionário. A medida é prevista pela Constituição.


São Paulo: 16 anos de PSDB

Seguidas eleições paulistas (para o governo do Estado) e paulistanas (para sua capital). “Opções” de segundo turno se colocam à população: Covas X Maluf; FHC X Jânio; Fleury X Maluf.

Desespero. “Como permitir tamanho conservadorismo? Não é melhor votar no ‘mal menor’?”

Resultados: 16 anos de governo tucano. Credenciamento de “democratas” (curioso que este seja o atual nome do antigo PFL...) para disputas nacionais contra projetos que se dizem “democrático-populares”.

As decisões que tomamos hoje não têm apenas efeito imediato. Esta dimensão da política também não pode ser jogada às traças.


Razões para a decisão do meu voto

A série do blog sobre o segundo turno presidencial fez com que nossos articulistas dividissem com os leitores aspectos de suas vidas pessoais – especialmente sua militância e dedicação por aquilo em que acreditavam. Não vou fugir ao script. Votar não envolve apenas cálculo racional. Há história, emoções, sonhos, decepções, e também análise e cálculo conjuntural, em cada militante que decide votar neste ou naquele candidato, neste ou naquele programa político.

Mês passado, em um debate sobre o movimento sindical em Campinas (SP) fui lembrado por um companheiro de que tenho algum nível de militância social desde por volta dos 12 anos de idade. À época, participante da Comunidade Eclesial de Base do Jardim São Vicente, adepta da Teologia da Libertação, tocava violão em uma paralisação da rodovia Campinas-Valinhos. Centenas de moradores reivindicávamos a construção de uma passarela. Lembrei-me: o que me motivava era a morte de um colega de sala, atropelado na mesma pista cujo tráfego interrompíamos para a missa e a manifestação popular.

Seguiram-se diferentes militâncias. Pastoral da Juventude; Associação de Moradores; Movimento Popular de Saúde; Movimento Sindical; Partido Político; Teatro Popular. São mais de três décadas de passos que muito me ensinaram e dos quais muito me orgulho. De aprendizado com inúmeros companheiros de luta. De desafios, emoções, decepções e sonhos construídos quotidianamente.

Neste processo aprendi a votar em projetos, não em candidatos. Óbvio: estas dimensões se misturam. Se elas se punham em conflito, o que me guiava era o que se anunciava de programa para o futuro.

Foi assim que meu último voto tranquilo em Lula foi para as eleições presidenciais de 1998. Em 2002, já fora do PT (a “gota d´água” foi a aliança eleitoral com o PL, do “boa-praça”, mas liberal vice-presidente Alencar), tapei o nariz e optei por Lula no primeiro turno. Após a “Carta aos Brasileiros”, no entanto, meu voto já foi nulo no segundo turno. A conjunção da aliança eleitoral, do pragmatismo dos governos estaduais e municipais petistas e das promessas de sossego ao “mercado” anunciava o que viria pela frente. O programa para as eleições presidenciais já não era o que eu acreditava. Não votei no “mal menor”.


Fonte: emule.com.br

Estive nas comemorações da Cinelândia, já relatadas por Ana Lúcia, Ricardo e Mione nos artigos anteriores. Dividi com dois companheiros, numa mesa do Amarelinho, o turbilhão interno que me angustiava a ponto de doer. Ali havia, certamente, uma conquista de anos de lutas e dedicação de milhões de brasileiros e militantes, socialistas (como nós) ou não. Ao mesmo tempo, se anunciava o maior desafio histórico do último período para a esquerda revolucionária no país. Tudo indicava que o Brasil conheceria a versão reformulada do PT. Do programa radical (que questiona as raízes das desigualdades e das injustiças sociais) à pactuação com o capital. Da mobilização e apoio às reivindicações dos movimentos sociais (qualquer que fosse o governo) a sua cooptação e retirada de muitas lideranças para esferas da gestão estatal. Ainda que experiências anteriores (ver Allende no Chile e Mandela na África do Sul) já apontassem para os equívocos destas opções. Como bom brasileiro, naquele dia a angústia acabou em cerveja e samba, mas também em bexigas (ou balões, como se diz no Rio) vermelhas, para demarcar o que e por que comemorávamos.
Infelizmente, aquela sensação (que também misturava imensa emoção e análise concreta, calculista e calculada da conjuntura) teve como decorrência o pior dos dois quadros. O Brasil melhoraria em relação aos governos anteriores. Mas dificultaria, sobremaneira, por ação do partido que foi um dos principais atores sociais das mobilizações populares das décadas de 70 a 90, as condições objetivas de derrota da organização capitalista e de construção de alternativas de efetiva igualdade no país.

Voto nulo, como posição política consciente
Relatos do ato público realizado nos últimos dias na Universidade de São Paulo, de apoio a Dilma, com mais de mil pessoas presentes, dizem que o eixo central foi a crítica aos que pretendem votar nulo (ix) .
Não me surpreende. Há tempos, como nos alertaram Mione e Ana Lúcia, nossas polêmicas são “não diálogo” e desqualificação de interlocutores. Pode-se divergir. Mas não negar legitimidade às opções feitas, conscientemente, pelo voto crítico ou pelo voto nulo em situações como as que vivemos neste momento.
O voto em eleições não é, sozinho, o que define a conjuntura de cada país. Conferir-lhe esta força seria desconsiderar o que move a vida social: as mobilizações, as contradições entre classes e segmentos sociais, as lutas que elas viabilizam. Mas o voto, em determinadas conjunturas, tem importância política, conjuntural e histórica (x) . É processo, ao mesmo tempo, coletivo e pessoal.
A resposta à questão “Por que votamos?” é o que define nossa opção final. Ela será baseada nas análises conjunturais de cada organização e/ou militante, combinada com a articulação que, em cada momento, se faz com os passos que imaginam para a construção da sociedade futura. Dificilmente haverá consenso sobre o quanto cada alternativa reúne de equívocos ou acertos. O fundamental é manter o diálogo aberto. Tarefa para a qual nos propusemos no blog e que, penso, vimos conseguindo cumprir.

Fonte: google

No domingo, em nome da sociedade em que acredito e de como imagino chegar a ela, meu voto será nulo. 

Finalizando: a esquerda revolucionária e as eleições
Tenho acordo integral com a análise de Ricardo, em artigo aqui no blog, sobre o atual papel das eleições para as esquerdas anticapitalistas. Nossos investimentos, há tempos, já são desproporcionais (xi).
Penso ser possível e necessário sugerir mais duas reflexões neste campo. Uma delas Ricardo já adiantou: é preciso avaliar se nosso investimento (inclusive financeiro) não tem servido mais para legitimar a falsa democracia brasileira, ao invés de fortalecer as vias de construção de uma sociedade justa.
Quanto à segunda reflexão faço uma pequena distinção com este valioso companheiro de voto nas eleições deste ano. Não nos vejo mobilizados para promover boicote significativo ao processo eleitoral. Talvez o caminho seja pensar em como viabilizar processos educativos que desnudem massivamente o papel que as eleições vêm cumprindo nos últimos tempos no país.

Há deputados eleitos pela esquerda manifestando um possível caminho: o fim do voto obrigatório. Ele pode potencializar a relativa importância deste instrumento (que não tem sido, há tempos, “arma de luta dos trabalhadores”). Pode provocar os partidos (inclusive os de esquerda que persistem na aposta eleitoral como eixo central – embora neguem, quase todos o vêm fazendo) à tarefa de qualificar sua própria intervenção. Pode ajudar a população a reconhecer que, como estão, as eleições são instrumento de despolitização, não de educação e formação para o efetivo exercício de nosso papel de sujeitos sociais.

Jefferson Lee de Souza Ruiz é bacharel e mestrando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profissionalmente, atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social do mesmo Estado. _______________________________________________

i.     Revista Isto É, edição de 27/10/2010.

i1.  Consultar www.conversaafiada.com.br

iii.  Os dados foram citados pelo colunista Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, em 03/10/10.
________________________________________________

iv.   O Globo, edição de 19/09/2010.


v.    Os dados são da Auditoria Cidadã da Dívida, que reúne vários movimentos sociais. Ela calcula a dívida pública brasileira atual em nada menos que R$ 2 trilhões.

vi.   Os dados estão no mesmo artigo de Clóvis Rossi.

vii.  A impunidade no Brasil tem cor e classe, como nos lembram Marcelo Freixo e o personagem nele inspirado para o filme Tropa de Elite 2. Um negro e/ou pobre que comete qualquer pequeno delito não fica impune. O mesmo não vale para outros extratos sociais.

viii. Cf. MAGALHÃES, L. A. A mídia, o medo e o governo Lula. In Revista Margem Esquerda nº 6. São Paulo: Boitempo.

ix.    O relato da reunião circulou na Rede Terceiro Setor.

x.     Não se deve desconsiderar, aliás, que o voto universal foi conquista de lutas populares.

xi.    É fato que colhemos alguns bons frutos. Em 2010, a reeleição de Marcelo Freixo para deputado estadual no Rio de Janeiro e a manutenção de bancadas, ainda que pequenas, mas críticas (à esquerda) aos rumos do Brasil são demonstrações disso. O mesmo não vale para a opção de lançar quatro pequenos candidatos às eleições presidenciais. Pior: a análise posterior nada revela de autocrítica deste processo. As eleições nos dividem, quando o essencial da crítica que cada candidatura apresentou à população não reúne diferenças de fundo entre nós.

domingo, 24 de outubro de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

SÉRIE MÍDIA E ELEIÇÕES - SEGUNDO TURNO PRESIDENCIAL

Este novo artigo da Série Mídia e Eleições - segundo turno presidencial traz Mione Sales com um artigo instigante e reflexivo sobre os desafios do que significa SER ESQUERDA (gauche) na vida!

Ela manifesta seu voto critico em Dilma e diz que esse voto não é um cheque em branco. A esquerda fora do governo junto com os movimentos sociais vão investir na interlocução pela garantia e ampliação de direitos, mas restarão mobilizados e atentos à luta e à necessidade de ir para as ruas, se for preciso.

Um abraço,

Equipe Mídia e Questão Social
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Vai ser gauche na vida

sobre a necessidade de (re)inventar a democracia

« Quem sabe faz a hora
não espera acontecer ».
G. Vandré

Mione Sales*


Depois do artigo de Nalu Vaz ficou difícil dar mais um depoimento sobre por que votar na Dilma no segundo turno. Ela disse o essencial. Vou puxar, então, a brasa para a sardinha coletiva e contribuir com a parte final do seu artigo: o enfrentamento dos próprios monstros. Não falo de monstros individuais, mas daqueles sobre os quais vale a pena escrever como quem pensa alto: os « monstros » da esquerda. O intuito é avançar alguns elementos para contribuir com o debate não apenas conjuntural, mas dentro de uma interlocução mais ampla com a esquerda – da universidade ao bairro, aos acampamentos urbanos e rurais, e ao sindicato.

Na verdade, se soubermos seguir a pista poética do escritor moçambicano Mia Couto, veremos que o escuro está onde o colocamos. Ou seja, o medo (de enfrentá-los) é o que, de fato, produz e mantém vivos os nossos monstros. Tentemos descortinar alguns deles.


Primeiro monstro: o medo de escutar o outro

                                                   Detalhe da porta de um templo japonês do século XVII 


Sou carioca de coração, pelos muitos anos vividos na cidade do Rio de Janeiro, mas para quem não sabe sou cearense. As minhas memórias políticas ultrapassam, assim, a Central do Brasil, a Cinelândia e a Candelária, e se estendem até a Praça José de Alencar e a Praça do Ferreira em Fortaleza.

Nos anos 80, fiz movimento estudantil (ME), essa grande escola do aprendizado político, da descoberta das diversas « tendências » à escolha por uma delas, aos primeiros posicionamentos, ao pânico de falar em público e às primeiras polêmicas - ainda sem uma história e experiência de vida para dar substância à convicção de esquerda ali estalando de nova. Tive, então, as melhores impressões sobre a militância política, em especial sobre alguns dos seus pares, mas também as primeiras decepções e frustrações com o que cada « palavra », conceito ou categoria quer dizer na prática.


                Ato de artistas em frente ao Teatro José de Alencar e teatro de rua em Fortaleza


Uma das coisas, aliás, que me chamou atenção, quando começaram a aflorar as primeiras inquietações na relação entre o que se defendia e o que se era, de fato, foi a questão da escuta do outro. Causava-me mal-estar a maneira como criávamos, durante as reuniões de estudantes, uma espécie de bloqueio interno à escuta do que tinham a dizer os que pensavam diferente. Isso, infelizmente, não era privilégio de uma corrente apenas. Quase todas se valiam desse estratagema: o que importava era falar, com o fim de convencer os demais e os eventuais « independentes », e sobretudo ganhar a reunião. O que os demais tinham a dizer interessava somente na medida em que era preciso contestá-los e derrubar os seus argumentos. Na melhor das hipóteses, para se construir uma proposta mais avançada.

Claro que essa é uma « caricatura » de como as disputas políticas se processavam e ainda se processam desde os centros acadêmicos (CA) até o Congresso Nacional. No ME, uma dose de sectarismo pode até ser compreensível em razão da necessidade de autoafirmação da juventude na relação com os seus ideais. Afinal de contas, quanto mais se pensa - com o « auxílio luxuoso » de leituras, conferências, muito estudo etc. – e quanto mais se sabe a respeito do que os outros pensam, dá-se vazão ao grande « temor-monstro » do risco de flexibilizar as fronteiras das próprias convicções. No entanto, a liberdade não tem muros e, como o amor, não tem rede de segurança. Já prevenia Guimarães Rosa: “viver é muito perigoso”, donde a exigência de se saber escolher e de se tentar ser coerente vida afora com as opções feitas. No caso da política, são aprendizados coletivos, mas com uma dimensão pessoal intransferível e insubstituível.


Foto: Frédéric Hugon  /  Arte: Mione Sales


O medo do outro, isto é, do debate e consequentemente da democracia e da liberdade assemelha-se ao medo do escuro de que fala Mia Couto, o que explica os desenhos ainda mais obscuros que produzimos para preenchê-lo. Talvez por isso seja proposto à esquerda o desafio de « endurecer », por vezes, infelizmente, sem qualquer espaço para a ternura.

Em tempo: flagrei-me ainda no ME e do alto da minha « indisciplina », tentando ouvir realmente o que cada um tinha a dizer no seio do grande bloco de esquerda da universidade e percebendo que, apesar das resistências recíprocas e da proposição de diferentes estratégias para atingir os objetivos, havia muito em comum entre todos eles.


Segundo monstro: da união ao dissenso




Descobriria, todavia, mais tarde, com o filósofo francês Jacques Rancière, que a política é um território propício muitas vezes ao desentendimento - não à briga propriamente, mas à não-compreensão mútua. Segundo ele, muitas vezes, alguém diz « branco » e o outro ouve « branco » à sua maneira, isto é, os dois não conseguem ouvir e ver o « mesmo branco ». Parece simples, mas não é. Basta colorirmos e preenchermos essa tese com significados mais densos, como « democracia », « socialismo », « liberdade de expressão », « distribuição de renda », « reforma agrária », « diversidade sexual », « multiculturalismo », « globalização » e, para retomar um dos temas candentes dessa campanha eleitoral, « aborto ».

Seria fácil se o mundo se dividisse apenas em burguesia e trabalhadores, ou se pensássemos apenas em termos de « Serra » e « Dilma ». No entanto, fazer política e pensar de maneira « complexa » e sob o signo da totalidade exige nuances. É, a esquerda não começa e nem acaba no PSTU (com todo o respeito que tenho por essa legenda e sua história), bem como a direita pode ser muito, muito pior do que o próprio Serra, muito embora este venha se superando em seu conservadorismo, estabelecendo alianças com ícones da ditadura militar, como a Tradição, Família e Propriedade (TFP).

Mas voltando a Rancière, tem-se como consequência do desentendimento (que não é apenas fruto da racionalidade ou do exercício lógico e cognitivo) o dissenso, ou seja, o ponto em que não há consenso. O dissenso pertence, pois, ao campo das divergências: em decorrência de interesses de classe e visões de mundo diferentes; experiências de trabalho e de vida, pertencimento social e escolhas ideológicas distintos, mas também de dificuldades de apreensão do debate, linguagem e terminologia políticas.

Não se consegue entrar num acordo, porque não se vê do mesmo modo, nem se sente na pele da mesma maneira e não se julga também que as propostas que os « outros » trazem como correspondendo aos interesses daqueles a quem se representa. Por isso, as prioridades de uns não são as de outros, justamente porque se vê diferente, se compreende diferente e se é diferente (como indivíduo e classe social). Da mesma maneira, pessoas que veem parecido e aspiram a coisas afins, associam-se, inclusive de forma transversal socialmente, contra os demais que pensam diferente deles. Por isso, luta-se, age-se e se combate.

Propostas e reações inconciliáveis frustram as expectativas mais ingênuas e idealistas que jazem escondidas dentro de nós, que nos sentiríamos mais confortáveis em preconizar a união de todos. No entanto, como diz o ditado, é pelo atrito com a areia que se forma a pérola. Por isso, não devemos temer o conflito. E é isso que alimenta a política e a luta pelos direitos contra os ataques e ameaças dos que defendem o status quo, as elites e o lucro desenfreado.


Terceiro monstro: o medo do consenso



Acordos e consensos, porém, também precisam ser encontrados, porque é a partir desse patamar que se dá a construção social. Senão, como erigir e desenvolver uma sociedade num mar de hostilidades e (in)diferenças mútuas?

Ao refletir sobre a esquerda, o que cabe no contexto eleitoral, mas também nas demais situações de troca, confronto e tentativa de construção de projetos em comum, costumo me valer do exemplo do desafio da convivência num «fusca »: se, por vezes, é difícil ou quase impossível os seus passageiros entrarem num acordo sobre o percurso, quem dirige e para onde se vai ou como se dividem as despesas de óleo, gasolina etc., imaginemos essas tensões, relativas a decisões partidárias ou da relação entre os movimentos sociais e o governo - decisões altamente complexas que envolvem recursos financeiros, o destino e os interesses de muitos!

No entanto, por vezes, a saída enxergada por alguns, quando se torna difícil coexistir no « fusca » não é procurar descobrir novas respostas coletivas, mas abrir a porta do carro e convidar os demais a descerem.


Quarto e decisivo monstro: a relação entre poder e democracia


 « Saturno devorando seus filhos », do pintor Goya


« Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado ».
Chico Buarque


A sensação de ficar para trás depois dos investimentos feitos na vida a dois ou no usufruto de um bem, um equipamento de uma associação, de uma torcida ou um time de futebol, é a mesma ou parecida com a aquela de lutar por um ideal coletivamente e ver depois os seus sonhos frustrados.

Eu assim como muitos camaradas e amigos experimentamos esse tipo de sensação no campo da esquerda na esfera local e também nacionalmente. O elemento desencadeador costuma ser justamente as vitórias eleitorais. Costuma haver, senão de um dia para o outro, na sequência do primeiro ano de mandato, a explicitação das diferenças, com possibilidades de « rachas políticos ». Muitas vezes, quem ganhou rompe com uma parte dos apoiadores e pretende dali para a frente dar sozinho as cartas do jogo. Todos os demais são, assim, total ou parcialmente excluídos do âmbito das decisões de poder, mesmo que prossigam atuando perifericamente em alguns projetos da gestão local ou nacional.

Esse tipo de « crise » sempre tem dois lados: o dos vitoriosos, que pensam apenas na liberdade de agir, sem o inconveniente de ter que discutir, partilhar e acatar opiniões divergentes relativas aos membros da mesma tendência e partido. Nesse momento, eles só enxergam o gozo do poder, o triunfo, a sensação de « bastarem a si mesmos », o « enfim sós » rumo ao socialismo (ôps!) !

Do outro lado, os circunstanciais perdedores - ou melhor, os que sofreram o « golpe », porque submetidos a um « racha» à revelia, despejados de um projeto em comum - sentem vergonha pelo desrespeito individual e coletivo que lhes foi infligido, mais um duro choque emocional pelo encurtamento abrupto das possibilidades imaginativas e prático-críticas. O sonho tão ao alcance da mão, de repente, vira pesadelo.

Como tudo tem o seu revés, esse tipo experiência não conduz necessariamente a vitórias maiores posteriores. Duas tendências mostram-se possíveis: * se se trata da defesa de ideias muito radicais e inconciliáveis com o restante da esquerda, este tipo de atitude pode conduzir ao isolamento e a derrotas eleitorais mais tarde, em contraste aos onipotentes desejos de poder inicialmente ostentados ; ** outra possibilidade é a da ampliação excessiva da base de apoio, com a flexibilização de certos princípios e valores históricos, o que contribui para o afastamento e ruptura com antigos militantes. A gestão adquire cores diversas, cada vez menos escolhidas na palheta da esquerda. O que é recorrente nessas experiências de choque de expectativas e autonomização de projetos coletivos é a questão do poder e da democracia.

Vale a pena recordar que o Partido dos Trabalhadores nasceu rompendo com problemas clássicos dos “partidos de esquerda”. O PT não veio do alto, pelo contrário nasceu das bases, lá no ABC paulista, pólo do operariado brasileiro. Sua experiência de luta e organização classista sugeriam uma nova maneira de fazer política e, portanto, uma espécie de reforma intelectual e moral. A partir dali, poder-se-ia refazer o valor das palavras, atentos aos princípios libertários da práxis política de esquerda; tudo nutrido cotidiana e dialeticamente com a substância das lutas e exigências democráticas dos movimentos sociais.

No Rio de Janeiro, tornei-me « petista » na prática e no coração. Ademais, supri minha paixão pela militância por meio do engajamento no Conjunto CFESS/ CRESS, espaço de organização política da categoria dos assistentes sociais. Ali, participei desde o âmbito da fiscalização do exercício profissional ao da ética do Serviço Social, às bases de uma política de comunicação para o Conjunto até a esfera das políticas sociais e da lutas por direitos de crianças e adolescentes.

Fique claro que não havia nem há expectativas, nem de minha parte nem dos meus colegas, de que a militância nesse espaço profissional opere uma substituição das necessidades do partido, mas acredito que dali é possível, sim, contribuir para transformações e conquistas na relação com o Estado, a sociedade civil e a própria categoria.

Se não me filiei a uma nova corrente especificamente, foi porque mesmo aquela com a qual flertei em terras cariocas, também reproduzia velhos erros, que não somente eu e meus antigos camaradas cearenses já criticávamos, mas como diz a poeta Adélia Prado, « sua raiz vai ao meu mil avô ». Não gostaria, assim, de endossá-los nas relações entre companheiros, espécie de avant-première do socialismo. Resta, aliás, saber se certos problemas não são estruturais à esquerda e não somente a esta ou àquela « tendência ». O que nos leva a concluir que o tema da democracia ou da « reinvenção democrática », para ampliar a categoria do intelectual francês Claude Leffort, permanece como um desafio da esquerda brasileira.

Inovar e agir diferentemente não parecem nada simples e em muitos casos talvez sequer constituam uma tentação ou um problema que inquiete certos tipos de militantes mais apegados aos dogmas ou seduzidos pelos ganhos materiais que emanam do poder e da burocracia partidária.


Tudo é uma questão de produzir uma convivialidade democrática e libertária


Foto: Mione Sales - “Monumento à Paz”, em Berlim


« O medo de amar é o medo de ser / livre para o que der e vier
livre para sempre estar / onde o justo estiver
(…) é o medo de ter / de a todo momento escolher
com acerto e precisão / a melhor direção
(…) medo de (…) não arriscar / esperando que façam por nós
o que é nosso dever - recusar o poder »
Beto Guedes e Fernando Brant


A democracia burguesa pode ser insuficiente, mas uma esquerda desatenta ou indiferente às exigências da democracia não deve ser o seu contraponto. Fala-se em socialismo, mas muitos não têm noção ou subestimam (d)a imensa complexidade do que significa reinventar as regras de uma convivialidade efetivamente democrática e libertária. Desde a Grécia clássica, vimos potencializando essa categoria como forma de diminuir os vícios do poder e ampliar os direitos da maioria à representação. O que soma, por exemplo, com o « direito de fala » ou direito de expressão. Por isso, muitos morreram e lutaram.

A tese de Carlos Nelson Coutinho sobre a « democracia como valor universal » revela-se, assim, cada vez mais de uma extrema atualidade no Brasil e no mundo, enquanto princípio do qual não se pode abrir mão, pois é antídoto contra todas as formas de casuísmo, fisiologismo, totalitarismo, fascismo, terrorismo, entre muitos outros desvios à direita e à esquerda do espectro político.

Assim, com o passar dos anos, quanto mais observo gente e a esquerda em particular – objeto aqui da nossa reflexão -, mais me convenço da necessidade da « democracia », reinventada, porque não se satisfaz com a formalidade da mera igualdade jurídica. Há felizmente em curso alguns exemplos desse tipo de reinvenção coletiva da democracia, mas não sem contradições evidentemente: os acampamentos do movimento dos trabalhadores sem-terra (MST) no Brasil e a criativa experiência zapatista em Chiapas no México.

Quando falamos em democracia, vale a pena recorrer à definição presente no Código de Ética dos Assistentes Sociais: « democracia como ampliação da participação política, mas também como socialização da riqueza socialmente produzida ». Nesse tocante, é importante incorporar nessa utopia as conquistas da modernidade e do desenvolvimento das forças produtivas, como condição da felicidade de todos e não mais como privilégio de poucos. Essa é, aliás, a doce utopia da juventude: direitos, rock n’roll, rap, funk e tecnologia.

A democracia é, portanto, salvaguarda de qualquer projeto coletivo, partidário e societário. Ela depende fundamentalmente de cada um de nós, das nossas reflexões no meio da luta e da nossa capacidade em oferecer resistência às injustiças e ao papel destruidor da sociabilidade representado pelas mais diversas formas de autoritarismo e personalismo. A democracia não é algo que vem apenas de fora ou de cima, somos nós que a alimentamos cotidianamente e a construímos individual e coletivamente.


Sem medo de ser feliz
votar em Dilma não é passar um cheque em branco


                Fotos: Cynthia Studart – « Onda vermelha », campanha eleitoral 2010, em Fortaleza

Quem fala em dissenso diz, portanto, muitas vezes, discordâncias e fundo ou inconciliáveis tanto no que se refere às candidaturas majoritárias quanto também no seio da própria esquerda, do que resultam, nesse momento, leituras e posicionamentos políticos distintos: voto crítico na candidata Dilma ou voto nulo.

No primeiro turno, votei no Plínio, um nome legitimado nacional e internacionalmente, construído junto aos movimentos sociais. Votar no Plínio foi um posicionamento contra todo e qualquer tipo de golpismo da esquerda, de « tapetão », contra todas as formas de « nepotismo », isto é, aqueles que tiram proveito material ou almejam fazê-lo em qualquer parte da administração federal, estadual e municipal escudados na legenda do PT (ou também de outras legendas de esquerda que ocupem cargos e estejam à frente de gestões de governo), contra os que tiram proveito pessoal ou empresarial do Lulismo, contra a não escuta dos antigos companheiros do PT e do atual « bloco de esquerda » na definição dos projetos de governo, contra a escuta privilegiada, muitas vezes, dos que representam o capital e as velhas oligarquias no Brasil. Esse é, inclusive, o meu ponto de consenso com o também colega de blog, Ricardo Pereira.

No entanto, felizmente, o governo Lula não é somente isso. Por isso, vou votar criticamente na Dilma no segundo turno, para fortalecer o apelo à efetivação de uma pauta de governo, em que haja uma presença cada vez maior de estratégias de inclusão dos pobres, com participação também deles na definição das prioridades e nos rumos das políticas sociais. A esperança é que a preservação de valores humanistas na condução do país contribua para o « processo de libertação dos invisíveis » por suas próprias mãos; esperança que não é somente minha, mas também dos que metem a mão na massa, porque desenvolvem trabalhos e fertilizam os talentos em potencial das periferias, por meio de uma sensível escuta às suas demandas e ideias. Essa chama encontra-se acesa e forte hoje, por exemplo, em Fortaleza entre assistentes sociais, artistas e militantes, como Preto Zezé, retrato do inconformismo, aliado à reinvenção prático-crítica e criativa da utopia, « sem medo de ser feliz ».

Fazer diferente, vale repetir, começa por nós mesmos. O socialismo expressa-se, portanto, nos gestos e escolhas de cada um, no poder ou não. O socialismo, pois, não é apenas uma confortável e distante utopia, para a qual devo dar provas de caráter e de coragem somente daqui a 10, 50 anos ou, quiçá, nunca. Essa é a diferença – da perspectiva libertária, emancipadora e autônoma - dos que defendem a construção de um projeto democrático popular desde baixo, « desde bajo »: o futuro começa hoje.

::::::::::::::::::::::

Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora do Depto de Políticas Sociais (FSS/Uerj). Contato: mioneecia@hotmail.com

::::::::::::::::::::::

Links
(Bloco na Rua)
(Pra não dizer que não falei das flores)
(O medo de amar é o medo de ser livre)
(Os sonhadores, de B. Bertollucci)
(Zapatistas)