sábado, 25 de setembro de 2010

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

Serviço Social e o direito à comunicação


Jefferson Ruiz*


A relação entre Serviço Social e comunicação tende a reconhecer, futuramente, o ano de 2010 como um importante episódio histórico. O marco mais significativo foi, sem dúvida, o 13º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, como relatei há cerca de um mês aos nossos leitores.

Em setembro dois novos eventos colocaram em debate esta relação, ambos realizados na bela Florianópolis. O primeiro foi o II Seminário Nacional de Comunicação do Conjunto CFESS/CRESS. O segundo foi o 39º Encontro Nacional CFESS/CRESS, especialmente no eixo comunicação.

Fonte: CFESS

Direito à comunicação


O seminário contou com duas mesas de debates e um eixo articulador das intervenções e dos debates: a defesa do direito à comunicação. Ao seu final, uma roda de conversas entre assessores de comunicação e os participantes do evento pôde conhecer e debater as experiências dos conselhos presentes, suas dificuldades e potencialidades.

Para facilitar a leitura, vou fazer um pequeno recorte de aspectos interessantes na fala de cada palestrante e dar uma noção de qual foi minha contribuição na mesa de que participei. Se alguém se interessar por mais informações, faça contato pelo e-mail abaixo.

                                   Venício Artur de Lima (Foto: Rafael Werkema. Fonte: CFESS.)


A primeira mesa de debates do evento foi aberta com a fala do professor doutor Venício Artur de Lima, articulista do Observatório de Imprensa. Em sua contribuição há um conceito sobre o qual considero fundamental nos debruçarmos: direito à comunicação é mais amplo que democratização dos meios de comunicação ou liberdade de imprensa. Lima apresentou elementos para perceber que a “velha mídia” (referência aos jornais impressos, rádio e televisões) faz muito bem tal distinção, questionando qualquer possibilidade de ameaça à atual concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias como se fosse ataque ao direito à liberdade de imprensa ou de expressão. Propôs três questões que considera centrais para as ações futuras: (a) centrar fogo na defesa do direito à comunicação; (b) lutar pela democratização do mercado de comunicação – o que, lembrou o professor, a regulamentação da TV digital no Brasil não fez; (c) ter como prioridade a luta pela universalização da banda larga no país.  
Ana Veloso (Foto: Cassiano Ferraz. Fonte: CRESS-SC

A seguir, Ana Veloso, jornalista, professora e membro do Coletivo Intervozes, trouxe sua contribuição. Boa parte de sua fala foi uma excelente reconstituição da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, dos interesses que estiveram em jogo e da necessidade de tirar as dezenas de propostas aprovadas do papel, tornando-as efetivas. Um grande diferencial da fala de Ana foi seu relato sobre como os movimentos sociais têm se relacionado com o debate sobre comunicação no país. Há experiências superexitosas, como as de organizações feministas. Mas há limitações, com as quais devemos estabelecer diálogo crítico e construtivo. Provocativa, Veloso apresentou como alguns limites: (a) o recuo de parte significativa do movimento sindical ao longo da Conferência, em troca de acesso a canais de televisão e outros “afagos” do governo federal; (b) certo isolamento e produção de discurso apenas próprio em seus veículos de comunicação de entidades como o MST; (c) a postura da Federação Nacional de Jornalistas no debate sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo (“para mim, a FENAJ ‘comeu mosca’ naquele momento”, afirmou). Outros exemplos foram apresentados pela professora acerca do quanto ainda temos que avançar no diálogo sobre comunicação. 

                           Kênia Augusta Figueiredo (Foto: Cassiano Ferraz. Fonte: CRESS-SC)

A segunda mesa do evento foi aberta pela contribuição de Kênia Augusta Figueiredo, assistente social, professora da UnB e coordenadora da Comissão de Comunicação do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). Kênia recuperou o histórico deste debate na profissão, que remonta ao menos à década de 90 passada. Trouxe dados que demonstram que há conselhos regionais que ainda não têm qualquer material de comunicação – afirmando que não se trata apenas de ausência de condições financeiras e técnicas, mas, ainda, da necessidade de fazer evoluir o convencimento da importância da comunicação na atualidade. Defendeu a necessidade de discussão de uma política de relações com as assessorias de comunicação existentes nas entidades (“Fazemos com eles o que fazem conosco: excesso de horas extras, remuneração ruim...”) e de utilizar criatividade para gerar mídia espontânea para a profissão e seus princípios éticos e políticos. Neste sentido, destacou a importância da produção de imagens: “nossas imagens são sempre de reunião; precisamos exercitar nossa criatividade em nossos atos, manifestações e outras iniciativas”.

 
                          Jefferson Lee de Souza Ruiz (Foto: Cassiano Ferraz. Fonte: CRESS-SC)


Em seguida a Kênia teve lugar minha intervenção na mesa sobre a Política Nacional de Comunicação. Ela se dividiu em quatro momentos: (a) a disputa no Brasil em torno de diferentes conceitos de direito à comunicação; (b) dados nacionais sobre acesso a instrumentos de comunicação, em comparação com outros países; (c) a visibilidade pública do Serviço Social e de suas posições; (d) propostas para a atualização da Política Nacional de Comunicação.

No primeiro item destaquei que os três presidenciáveis com maior intenção de voto assinaram, recentemente, compromisso com a Declaração de Chapultepec, aprovada em 2004 no México. Busquei demonstrar que o destaque dado pela grande imprensa (o fato ocupou toda a página 3 do jornal O Globo em 20 de agosto) nos mostra que as distintas interpretações sobre o direito à comunicação continuarão em disputa social no Brasil. Um exemplo é o não questionamento à fantástica e crescente concentração dos meios de comunicação no país (85% deles nas mãos de apenas nove grupos familiares). Outro é a defesa de suposta neutralidade na produção de comunicação e de que os próprios jornais e jornalistas se autorregulem, em franca oposição com a participação da sociedade na crítica ao que se publica, veicula, divulga. Desconsidera-se que nas redações dos grandes meios de comunicação há censura prévia, edição, interesses em jogo. Ou seja: qualquer que seja o presidente eleito, a luta pelo direito à comunicação precisará contar com maior mobilização.

Os dados sobre acesso aos instrumentos e meios de comunicação estão abaixo.

No que diz respeito à visibilidade do Serviço Social, lembrei que há enorme distância entre a imagem social que se tem da profissão e a autoimagem que fomos construindo ao longo das últimas décadas. Estudantes da UFRJ, através de pesquisa coordenada pelas professoras Yolanda Guerra e Fátima Grave, costumam entrevistar a população em diferentes locais da cidade (da Central do Brasil a aeroportos) sobre o que é o Serviço Social. As respostas demonstram que a profissão ainda é associada às moças boazinhas, à caridade, à filantropia, com raras e honrosas exceções. A imagem do Serviço Social foi objeto da tese de doutorado de Fátima Grave, publicada recentemente pela editora E-papers, sob o título “O Serviço Social no Brasil”.

No último item de minha fala destaquei o quanto a relação entre comunicação e Serviço Social tem avançado na profissão, com experiências profissionais, pesquisas acadêmicas, blogs, sites, qualificação das ações do Conjunto CFESS/CRESS e maior expansão do debate por vários Estados do país. Apontei desafios a serem perseguidos, dentre eles: (a) reconhecer, no âmbito da formação em Serviço Social, a importância da comunicação nos dias atuais; (b) ampliar nosso diálogo com as novas gerações de profissionais que vêm se formando (com especial atenção para a maior e melhor utilização da internet e das mídias sociais); (c) fortalecer nossos laços com usuários e aliados do projeto societário que defendemos, tomando-os como público prioritário de nosso diálogo; (d) aprofundar o debate sobre nosso lugar, espaço e contribuição na defesa do direito à comunicação.

Penso que o clima que guiou o seminário está expresso no trecho de música de Milton Nascimento que foi parte do título da segunda mesa do evento: “Se muito vale o já feito, mais vale o que será!”.


Encontro Nacional atualiza a Política de Comunicação


Fonte: CFESS

Nos quatro dias seguintes ao seminário ocorreu o Encontro Nacional do Conjunto CFESS/CRESS. Dentre deliberações importantíssimas (a exemplo de estratégias para a implementação da jornada de 30 horas, da defesa da legalização do aborto, da defesa das políticas de ações afirmativas) a Política Nacional de Comunicação do Conjunto foi atualizada. As contribuições aprovadas terão seus textos finais encaminhados ao CFESS até o final de outubro. Posteriormente nosso Conselho Federal publicará a versão final, que deverá orientar nossa atuação nos diversos Estados do país.

Um grande destaque foi aprovarmos que não há justificativa para que algum Conselho Regional não tenha um mínimo de instrumentos de comunicação para sua ação. A intenção é identificar quais são as razões efetivas para que isso ainda ocorra: se são políticas, vamos dialogar e tentar superá-las; se são financeiras e estruturais, vamos atuar no sentido de gerar, solidariamente, condições de que todos tenham acesso a tais condições para suas ações. Reparem que o verbo está no plural (“vamos”): a responsabilidade não é exclusiva do CFESS, embora seja ele quem nos coordenará – com seu compromisso ético e político e qualidade de intervenção – neste processo.
Não há política nacional que se viabilize com Estados que não a assumam e encaminhem. E não há como defender projetos de sociedade e profissão, em pleno século XXI, sem políticas de comunicação.


CURIOSIDADES

Números do CFESS (dados apresentados por Kênia)

. Apenas no mês de março o site do CFESS teve 318 mil acessos (média de 1.800 ao dia).

. 267 mil pessoas diferentes já acessaram o site de nosso Conselho Federal (somos, atualmente, cerca de 95 mil profissionais no Brasil).

. A recente conquista das 30 horas semanais de jornada de trabalho para assistentes sociais gerou 32 inserções espontâneas de mídia para o Serviço Social brasileiro.

Comunicação no Brasil (dados apresentados por mim)

. Em 2005, de 332 emissoras de televisão, 263 estavam ligadas às redes Globo, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e CNT (Fonte: FNDC).

. Apenas a Rede Globo possuía, em 2006: 223 veículos próprios ou afiliados; 33,4% dos veículos ligados a redes privadas nacionais de televisão; 40,7% dos jornais impressos; 28% das emissoras de rádio FM do país (Fonte: EPCOM).

. Nos 6.789.000 de exemplares de jornais impressos que circulavam, em média, no Brasil, em 2006, 56% das informações se originavam em 6 empresas, todas localizadas em apenas três Estados: Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (Fonte: EPCOM).

. Em 2008, o Brasil era o oitavo país da América do Sul em número de assinantes de telefones celulares, com 78,47 linhas a cada 100 habitantes. À sua frente: Argentina (116,61); Uruguai (104,73); Venezuela (96,31); Paraguai (92,83); Colômbia (91,9); Chile (88,05) e Equador (86,01). No mundo, o maior acesso se dava nos Emirados Árabes Unidos (208,65) e o menor em Mianma (0,76). O Brasil estava atrás dos Estados Unidos (86,79) e à frente de países do “BRIC´s” – China (47,41) e Índia (29,36) – não há dados disponíveis sobre a Rússia na fonte pesquisada (IBGE-países).

. No mesmo ano de 2008, na América do Sul o Brasil era o quarto em linhas de telefone fixas a cada 100 habitantes, com 21,43. À sua frente: Uruguai (28,64), Argentina (24,15) e Venezuela (22,42). No mundo, o maior acesso estava no principado de Mônaco (106,38). O menor, em Libéria e Congo (0,06). Neste quesito o Brasil era superado por Estados Unidos (51,33) e China (27,51) e estava à frente da Índia (3,21). A fonte é a mesma (IBGE-países).

. No número de usuários com acesso à internet (a cada 100 habitantes) o Brasil era o terceiro na América do Sul (35,51), sendo superado por Uruguai (40,01) e Colômbia (38,03). Nos chamados “BRIC´s” superávamos China (22,28) e Índia (6,95). O maior número de usuários estava na Holanda (86,36) e o menor no Timor Leste (0,14). Os Estados Unidos vinham à frente do Brasil, com 70,59 usuários a cada cem habitantes (Fonte: IBGE-países).

Importante: nos dados acima é necessário destacar o quanto há diferença de acesso a instrumentos de comunicação para as populações dos diversos países. Assim como falar em sociedade de consumo é algo que exige localizar quem consome (milhões de pessoas continuam sem consumir sequer alimentação suficiente no mundo), falar em sociedade da comunicação também exige apurar esta definição e reconhecer as imensas desigualdades existentes.

Brasil: maior tempo de navegação na internet do mundo

(os dados desta seção estão disponíveis em www.tobeguarany.com/internet_no_brasil.php)

. Mesmo com os números acima, o Brasil é o país em que cada usuário, em média, mais acessa a internet, com 48,26 horas por mês. É o único país latinoamericano entre os dez primeiros. O segundo colocado neste quesito são os Estados Unidos, com 40,19 horas/mês. Os dados foram atualizados em abril de 2010.

. Apenas no primeiro semestre de 2008 as compras on-line no país movimentaram R$ 3,8 bilhões (45% mais que no mesmo período em 2007). A previsão para o ano de 2009 era de que se movimentassem R$ 10,6 bilhões nesta modalidade.

. 95% das empresas brasileiras possuem computador. São 60 milhões de unidades em uso. A Fundação Getúlio Vargas prevê que em 2012 sejam 100 milhões.

A que público podemos chegar?

. As mídias sociais (blogs, facebook, orkut, salas de bate-papo e outras) são acessadas semanalmente por 77 milhões de pessoas no país – 86,3% dos usuários (dados do Ibope, abril de 2010).

. A evolução do acesso à internet no Brasil continua crescendo rapidamente. Vejam o quadro abaixo, elaborado por mim para a apresentação em Florianópolis.

Brasil – evolução do acesso à internet

Ano Percentual Fonte

2005 21% IBGE (PNAD)

2008 26,1% Internet World Stats

2009 33,4% Ibope/Nielsen

2010 46,1% Secretaria de Comunicação / Governo Federal

Dicas

. Há outras coberturas do II Seminário Nacional de Comunicação. Dentre elas, http://www.cfess.org.br/noticias_res.php?id=468

. Alguns Conselhos Regionais e nosso Conselho Federal já se utilizam da internet para socializar imagens dos eventos promovidos. O CRESS-SC tem álbuns dos eventos tratados nesta postagem. Acesse http://picasaweb.google.com/cress12regiao

Homenagem

. Repito, nesta postagem, a referência que fiz aos assessores de comunicação do Conjunto CFESS/CRESS pela importância do diálogo que vimos estabelecendo, que vem possibilitando o acúmulo que os últimos eventos demonstram. Como em Florianópolis, afirmo que a Política Nacional de Comunicação tem a digital de todos vocês, que são parte do DNA ali existente. Agradeço a todos os atuais assessores e aos que não estiveram conosco no evento, especialmente Cecília Contente (RJ), Amanda Vieira (DF) e Bruno Costa (DF).


Jefferson Lee de Souza Ruiz é bacharel e mestrando em Serviço Social pela UFRJ. Profissionalmente, atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social - RJ.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Editoria Caleidoscópio Baiano

Diga não à exploração sexual


 Fonte: Google

Claudia Correia*

Dia 23 de setembro de 1913, na Argentina, surgiu a primeira lei que pune a exploração sexual de crianças e adolescentes. A “Lei Palácios” motivou outros países a combater o tráfico para fins sexuais.

Em 1999, a Conferência Mundial de Coligação contra o Tráfico de Mulheres, em Dhaka, Bangladesh, escolheu a data como o Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças.

A questão requer uma atenção especial do poder público e deve ser debatida por toda a sociedade. Segundo um estudo realizado pela Unicef, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) e outras instituições, a prática ocorre em 930 municípios do Brasil, dos quais 436 são destinos turísticos do Nordeste. O estudo apontou que quase um quinto das cidades brasileiras possuem redes organizadas deste crime. O tráfico vitima no Brasil mais as mulheres e garotas negras e morenas, com idade entre 15 e 27 anos.

Uma das ações para reverter este quadro é o serviço do Disque Denúncia 100, executado pela SEDH, com o objetivo de acolher denúncias de violência sexual que fere os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA.

Assisti recentemente em Salvador, a peça “Quem me ensinou a nadar”, do grupo Iyá de Erê, vinculado ao Centro de Referência Integral do Adolescente-CRIA (www.criando.org.br). Encenado por adolescentes e jovens, o espetáculo aborda o tema do tráfico de crianças com muita propriedade. Ambientada no Pelourinho, a trama mostra a riqueza cultural da Bahia e alerta sobre as meninas expostas à violência sexual. O CRIA realiza formação para o combate do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, voltada para educadores, lideranças comunitárias e jovens.

Esta e outras iniciativas, do poder público e das organizações não governamentais, precisam ser multiplicadas país afora. O sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes só sairá do papel se atuarmos juntos, comprometidos a enfrentar com determinação este assunto, encarando-o como uma expressão da desigualdade social e sem hipocrisia ou moralismos.

* Artigo publicado na página Opinião do jornal A TARDE, Salvador, Bahia, dia 23/09/10.


*Claudia Correia, Assistente social, jornalista, profª da ESSCSal, Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta




Texto e imagens
Mione Sales*


« Vento, ventania
Me leve prá qualquer lugar
Me leve para
Qualquer canto do mundo
Ásia, Europa, América... »
Biquini Cavadão


Cérebros-voadores: entre sons e desmistificações


Atos falhos existem. Os lapsos cuidadosamente monitorados por psicanalistas que o digam. Por isso, penso que vale a pena contar, a título de introdução, uma pequena historieta que explica o meu interesse pelo tema dos papagaios muitos anos antes de conhecer o Festival de Dieppe. Um dos motivos desse interesse conto logo. O outro, blog-leitores, vocês somente vão ficar sabendo ao final da matéria.



Pois bem. Desde que comecei a ouvir falar na França em « cerf-volant » - um termo que, no Brasil, equivale a « pipa », « papagaio » e mesmo « arraia » (no Ceará), certa homofonia impôs-se em prejuízo do sentido. Ao invés de perceber gamo (“cerf”) e voador (“volant”), decodificava sonoramente algo, dito muito rápido, como “cerveaux-volants”: “cérebros-voadores”. Para quem está aprendendo um novo idioma, há, por vezes, uma linha muito tênue entre o certo e o errado, em razão de uma escuta ainda não apurada, um ouvido não treinado suficientemente. Ambiguidades imperam solenes, posando com ares de certezas até ruírem como a areia de castelos na praia. Freud vem em meu auxílio, sugerindo uma outra explicação para o porquê dessa confusão fonético-semântica: os franceses são tão racionais e expressivos que tudo nos leva a imaginá-los, de forma fetichizada, quase sempre primordialmente como « seres pensantes ». Por isso, os cérebros-voadores !

Recentemente, um amigo, porém, me sugeriu uma outra possibilidade de homofonia: « cerveaux-lents », « cérebros-lentos »… Talvez, lá no fundo, a minha “lentidão kunderiana” contribua mesmo para esse tipo de mistificação.

Na verdade, conversando com Jean-Michel Petit, um dos participantes históricos do Festival Internacional do Papagaio de Dieppe, na França – que acabou de acontecer, entre 11 e 19 de setembro na Normandia - ele me explicou que a expressão « cerf-volant » provém de uma espécie de inseto. Penso, de imediato, num louva-deus, por sua fragilidade. Substituo, assim, cérébros ou cervos-voadores pela imagem de um inseto garranchudinho.

Faz sentido, visto que « papagaios » ou pipas têm uma estrutura frágil. No Brasil, por exemplo, a tradição consiste num losango de papel de seda sobre um delicado esqueleto em madeira fina, suspenso por uma linha, a ganhar coloridamente os céus.

No entanto, mais uma desmistificação se faz necessária: o inseto em questão é um coleóptero bojudinho ! Paro, espero e decifro, como recomendava Drummond, e percebo que o « cerf-volant » - o inseto - com as patas abertas, adquire uma forma que pode se assemelhar a uma modalidade de papagaio. Ele tem também na cabeça uns ferrões que lembram os cervos! De todo modo, como se diz por aqui, ce n’est pas évident … Imagem por imagem sou mais a « arraia » cearense !


Concluo, assim, que a etimologia das palavras é mesmo assunto para cérebros-voadores como o meu, que adoram viajar ! Mas falemos finalmente de Dieppe e do Festival de Papagaios.


Quantos céus um homem deve voar

"Que sont les cerfs-volants ?
Ils sont l'image de la joie sur le visage d'un enfant
lorsqu'il sent pour la première fois la traction qu'exerce le vent.
Ils sont l'image du miracle de ‘ça vole’.
Ils sont une façon d'exprimer l'inspiration artistique de chaque homme
lorsqu'il essaie de trouver un sens à son action et son existence.
Ils sont le miracle qui remplis le ciel de beauté…".*
(Don Mocke, USA)


Fonte : Association Turbulences

 
Jean-Michel Petit ou simplesmente « Jamie » é um francês de uns sessenta anos, recentemente aposentado, que quedou de paixão pelos papagaios, há uns 24 anos atrás, ali mesmo em Dieppe – que realizou agora o 30° Festival Internacional de Cerf-volant. Segundo ele, é o maior Festival da Europa. No caso de Jamie, foi paixão à primeira vista. Disse-nos ele - em entrevista especial para o blog Mídia e Questão Social -, que deparar com o céu repleto das cores dos papagaios foi algo tão impressionante que o conquistou para sempre.

 
Jean-Michel Petit, da Association Turbulences (Dieppe, 2010)


Isto levou-o, alguns anos depois, a criar, em 1991, a « Association Turbulences » (Turbulências) [http://turbulences.cv.free.fr/invite.html], com vistas a reunir outros apaixonados por este esporte, que depende basicamente do espaço livre e do vento.


Outros membros de « Turbulences » (Dieppe, 2010)     


O que encanta nessa prática cultural e esportiva é, antes de tudo, o seu aspecto lúdico. Homens, mulheres e até famílias, portanto, podem libertar a criança que existe dentro de cada um. Os « cérebros-estressados » cedem a vez justamente à leveza do brincar e descontrair que o contato em especial com a praia permite.


« El tiempo passa »: Festival Internacional de Dieppe, 30 anos de história


Foto: Mione Sales


Dieppe é uma cidade portuária na Normandia. Uma parte do seu turismo hoje tem a ver com esse festival que começou ali despretensiosamente em 1980, sucedendo-se sempre a cada dois anos. No início participaram apenas 6 países da Europa e hoje já são mais de 40. Em 1988, pela primeira vez,
dois países distantes honraram o Festival com a sua presença: a China e a Tailândia. Talvez por isso, a Tailândia tenha sido em 2010 o primeiro país a ser homenageado pelos « cerf-volistas ».




Se em 1990, eles já reuniam um público de 120.000 participantes, para assistir, nos gramados de Dieppe, as manobras do competidores, em 2004 esse número saltou para 450.000 espectadores, consagrando a beleza e a leveza desse espetáculo aéreo. Como diz Jamie, da Associação Turbulências, o que atrai no papagaio e faz dele um prazer e uma diversão familiar é o seu caráter, ao mesmo tempo, ancestral e universal.


 País homenageado: balé tailandês, no sábado 11 de setembro.

Tradição circence francesa: « pernas de pau », domingo 12 de setembro

Essa « paixão pelo vento », a qual remonta historicamente a 3.500 anos atrás na Indonésia, segundo pesquisas mais recentes, deve falar ao Icaro que dorme dentro de cada um de nós. Se não podemos, pois, voar, por que não amar tudo o que voa? Ou como diria o poeta Mário Quintana:

"Se as coisas são impossíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las!
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Turbulências é filiada à Federação do Voo Livre e é parceira da organizadora do Festival, a Associação « Dieppe capital do Cerf-Volant ». Mas em que consiste esse Festival? Os participantes-concorrentes dos diversos países se inscrevem nas modalidades, por exemplo, « cerf-volant » acrobático e « cerf-volant » de combate (lembram das linhas das pipas brasileiras cheias de cerol ? Na França, ele se chama « manjha » e é feito com pasta de arroz e vidro triturado. Ganha, portanto, quem consegue cortar e eliminar a pipa adversária.)


                                                   Foto: Mione Sales


A partir de 2002, o Festival integrou os « cerf-volant » gigantes ou estáticos, que ficam suspensos  presos a uma base pesada. Um espetáculo realmente de tirar o fôlego!


Foto: Mione Sales


Dada a presença de diversos países, essas grandes figuras ganham formas as mais diversas, inspiradas nas culturas japonesas, tailandesas, francesas, americanas, belgas, entre outros [Ver também os links]. Como se trata de um Festival Internacional, as interpretações e criações são múltiplas e ricamente variadas. Ou seja,  soltar pipa também é cultura!


Foto: Mione Sales


Há também recortes temáticos. As mulheres já foram homenageadas e também o meio ambiente, por meio da fauna e da flora, assim como a música e o som.  Verdadeiras músicas do vento!





Esse « hobbie » conta com 11 festivais somente na França. No mundo, países como Inglaterra, Espanha, Itália, Japão, Líbano, India e, pertinho do Brasil, a Colômbia, têm também seus festivais.


Do combate à arte: pipas e questão social no Brasil


Fonte : Blog Insoonia


E por falar nisso, o Brasil estava no festival, representado por um casal, um carioca e uma paulista, os quais mantinham um stand todo verde e amarelo, como bem se pode imaginar. Havia ali uma grande pipa homenageando as festas juninas! O “cerf-volista” carioca disse já ter tentado criar um festival semelhante no Rio, mas na altura em que tentou, a Prefeitura não se interessou nem autorizou. Talvez em razão da má fama adquirida pelas pipas, depois que elas começaram a servir de « aviso » não aos navegantes, mas aos traficantes, quanto à chegada da polícia. Mais uma vez cabe recorrer ao poeta, dizendo : « Ora! Não é motivo para não querê-las! ».



Fonte : Blog Insoonia


Cabe decididamente resignificar e nos reapoderarmos dessa arte eólica, primitiva, natural e lúdica. Em pesquisa pela Internet, conseguimos identificar alguns eventos realizados em São Paulo, onde há, inclusive, um Pipódromo, e em Minas Gerais, mas sob o comando da Companhia de Energia Elétrica / CEMIG.  Se os meninos do Rio e do Brasil, tivessem à sua disposição mais recursos educacionais e criativos, menos se envolveriam com as atividades ilícitas.

Uma outra limitação quanto à brincadeira com os papagaios pela criançada brasileira é o risco de acidentes com a fiação elétrica. Impõe-se, portanto, a necessidade de criar espaços livres e seguros para o exercício dessa prática pelos meninos e meninas do nosso país. Uma prática que permite que tenham opções de lazer longe das telas de tevê, que é ao que se resume muitas vezes o cardápio cultural das classes trabalhadoras pauperizadas.

Céu livre


« Me leve para
As bordas do céu
Pois vou puxar
As barbas de Deus »
Biquini Cavadão


O Brasil é reconhecido mundialmente como um dos países praticantes do papagaio tradicional. No Rio de Janeiro, segundo dado divulgado no site do Festival de Dieppe, são vendidas 40 mil pipas todos os anos, voltadas à prática do cerf-volant de combate.

Prafraseando o poeta, “voar é preciso, viver não é preciso”. Pensemos, então, na imensidão do litoral brasileiro, em especial no Nordeste, quantas praias e cidades não poderiam abrigar festivais dessa monta ? Pense-se em toda a rede de sujeitos envolvidos, investindo numa sociabilidade artística popular, com a realização de oficinas, trocas de experiências e muita linha solta no céu?

E por falar no Nordeste, a professora e cronista que vos escreve, reivindica em nome de todas as meninas e mulheres brasileiras o direito de soltar pipa. Quando criança, morando num dos subúrbios de Fortaleza, era totalmente proibido ou mal visto uma menina soltar « arraia ». Só experimentei uma vez e rapidamente graças a um paquera, quando tinha uns dezesseis anos. Essa é sem dúvida uma das injustiças de gênero!


Foto: F. Hugon  


Trocando ideias com amigas de outros estados (Rio de Janeiro e Minas Gerais), inclusive no contexto do Festival de Dieppe, descobri que essa era uma característica sobretudo da educação repressiva no Nordeste. Menos mal. Nunca é tarde para se exercer a liberdade ! Soltei finalmente pipa, agora, junto com a minha filha em Dieppe.


Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora da FSS/Uerj. Contato: mioneecia hotmail.com

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Tradução

* "O que são as pipas?
Elas são a imagem da alegria no rosto de uma criança,
quando ela sente pela primeira vez a tração que exerce o vento.
Elas são a imagem do milagre do ‘isto voa’.
Elas são um modo de expressar a inspiração artística de cada homem
quando ele tenta encontrar um sentido para sua ação e sua existência.
Elas são o milagre que enche o céu de beleza…".

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Glossário

Homofonia - palavras que se pronunciam igual, porém se escrevem de forma diferente são homófonas.

Fonética – é o ramo da linguística que estuda os sons físicos do discurso humano, especialmente a sua produção e recepção.

Semântica – é o estudo do sentido das palavras de uma lingual.

“Lentidão kunderiana” – referência ao livro A lentidão do autor tcheco Milan Kundera.

Etimologia – estuda a origem das palavras.

Cerf-volista – praticante da arte de soltar pipa, papagaio ou “cerf-volant”.

Cerol – mistura de cola e vidro moído, aplicada à linha das pipas.

Eólico – diz-se daquilo que é movido pela força do vento.

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Links

Para navegar

(site da Association Turbulences)

Federação francesa do Voo Livre)

(clube francês do « cerf-volant » )

 (sobre o « cerf-volant » de combate)

(Artigo em francês sobre a prática dos « papagaios » na América do Sul e Central: Brasil, Colômbia, Chile e Guatemala)

(« Papagaios » na Índia)

(uma outra Associação « Vento Cortês », que existe desde 1978, dessa vez em Woincourt, na Picardia - Norte da França)

(para dar uma ideia dos « cerf-volistas » ou mais amplamente « eolistas », em referência às várias curtições ao vento)

(outros festivais, dessa vez em Berck sur Mer, em Pas de Calais, também dos lados da Mancha)


Oficinas de pipas

(o belo site Ecoarte)


No Brasil

(Festival da CEMIG – companhia elétrica de Minas Gerais)

(Com muitas fotos e tipos de pipas nacionais e internacionais)

(site paulista de pipas)

(site carioca de pipas)


Em Portugal



Para ouvir

(música eólica)

(reportagem sobre música eólica)

(Clip-vidéo de « Le vent nous portera », música do grupo Noir Désir)

(Outra bela versão da mesma canção)

(A emblemática « Vento Ventania » do Biquini Cavadão)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Editoria O Efeito Quixote

Quixote e as eleições
Da série “Mídia e Questão Social nas Eleições”

                                                     Imagem:Fabiano Vidal

Leandro Rocha*


“Você sabe o que faz um deputado? Não? Nem eu, mas vote em mim que eu te conto”.

A fala acima, proferida em tom de chiste por um candidato caracterizado comicamente poderia fazer parte de qualquer humorístico de uma das emissoras de televisão conhecidas no país. No entanto, a fala do candidato (e, neste caso específico, realmente humorista), em questão é slogan de uma campanha política real, já apontada como sucesso de popularidade no processo eleitoral que vem ocorrendo este ano no Brasil.

Longe de criticar ou elogiar o referido candidato, minha intenção ao iniciar nosso texto de hoje é lembrar que as eleições a serem realizadas em outubro deste ano, assim como qualquer evento em nossa sociedade moderna, também são afetadas pela espetacularização midiática da vida social.

O horário eleitoral gratuito, assegurado pelo o art. 17, § 3º, da Constituição Federal, teria como função oferecer um espaço igualitário e de fácil acesso por parte da população, onde os candidatos a diversos cargos políticos poderiam apresentar suas propostas para conhecimento e análise dos eleitores. Infelizmente, ainda estamos muito longe disto...

Os candidatos dos grandes partidos a cargos no poder executivo acabam sendo favorecidos com maior tempo de exposição no referido programa e utilizam tal tempo para apresentação de dossiês, críticas e acusações referentes a seus adversários. A intenção passa a ser ganhar as eleições não por seus méritos e competência, mas sim pelo demérito e descrédito de seus adversários.

Convém ressaltar que, independente do posicionamento político atribuído ao partido, observamos que tal estratégia é lugar comum entre nossos futuros governantes (alguns oscilando entre ex, atuais e futuros, seguindo o ciclo de perpetuação da concentração de poder e riqueza, tão bem absorvido pela sociedade capitalista).

Efeitos especiais, interpretações de atores profissionais e demais truques implementados por marqueteiros são utilizados para disfarçar propostas comprometidas com grupos que intencionam obter o lucro máximo através da manutenção das desigualdades sociais e do desrespeito aos direitos fundamentais da população.

Muito se fala... Pouco se diz... Nada avança...

Já os candidatos aos cargos legislativos buscam as mais variadas formas de se manter na lembrança dos eleitores nos poucos segundos que dispõe nos programas do horário eleitoral. Nesse momento vale tudo, ou quase tudo, para se fixar em nossas memórias e conquistar uma intenção de voto. É nesse momento do programa eleitoral que observamos a maior gama das ditas “pérolas eleitorais”, ou seja, aquelas situações mais inusitadas, tais como: os jingles de gosto questionável, caracterizações improváveis e apresentações com alcunhas, no mínimo, curiosas...

Tal qual um misto de reality show e programa humorístico, a disputa por nosso voto nessa esfera deixa de circular pela preocupação em demonstrar compromisso e apresentar seu trabalho e passa, muitas vezes, a se situar numa disputa apenas pela sua simpatia.

Talvez por essa aproximação com o show business possamos entender o ingresso, cada vez mais expressivo, de atores, comediantes, cantores e celebridades (ou pelo menos alguns que assim se consideram) nas fileiras de candidatos. Nossa intenção aqui, reafirmo, não é em nenhum momento julgar a competência de cada um destes indivíduos. No entanto, faz-se necessário ressaltar a confluência entre as searas do entretenimento e da política como fator que tem alavancado uma mudança na forma como votamos e, conseqüentemente, no perfil de nosso legislativo.

Em paralelo ainda pode-se observar a continuidade da cultura de que política também é “negócio de família”. Não é novidade, tampouco raridade, encontrarmos campanhas em que a argumentação principal é justamente o parentesco de um candidato com algum político que já tenha uma carreira extensa (independente desta ser “exemplar” ou não...). Mais uma vez os planos de governo ficam de lado, sendo valorizada a tradição e sendo conservado o poder nas mãos de famílias que o detém já há um bom tempo. Ou seja, continuamos legitimando a passagem de poder às mesmas famílias que há anos procuram concentrá-lo em suas mãos.

Há ainda o sempre presente apelo daqueles que associam suas candidaturas à sua vida religiosa. Ainda que haja um esforço pela preservação de um Estado laico, é inegável a influência histórica da religião no campo político. Impedindo a aprovação de algumas leis, pressionando pela aprovação de outras... Enfim, exercendo uma pressão sistemática que já se pode notar nas falas dos candidatos que se apresentam como “políticos-religiosos” (ou seriam “religiosos-políticos?). Ao que parece, esta é outra das “tradições” políticas que continuam e seguem cada vez mais fortes...

E não podemos esquecer dos candidatos que se apresentam com plataformas que propõe e supressão de direitos de segmentos da sociedade ou, citando literalmente um candidato ao governo federal, “o retorno do governo democrático de 64 a 85” (Será que ocorreu um governo paralelo à ditadura que vigorou no país neste período?).

Poderíamos considerar ainda vários outros aspectos que permeiam o processo eleitoral, porém nosso tempo é curto e precisamos fazer a história! Então que fique registrada a seguinte indagação:

Você sabe quanto vale o seu voto?

Talvez nesta resposta esteja a mudança que tanto clamamos e nunca conseguimos efetivamente alcançar....


Saudações Quixotescas e até a próxima!


*Leandro Rocha, assistente e "insistente" social, pós-graduado em Psicologia Jurídica pela UCAM, integrante da Comissão de Comunicação e Cultura do CRESS-RJ. Contato: e-mail: leorochas@hotmail.com  

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Estréia hoje a Editoria...

Fazendo Arte & Educação


Ricardo Pereira*


Um alô, para começar

Sou professor de Artes da rede estadual no Rio de Janeiro, antiga Educação Artística. Hoje, é minha estréia por aqui. Não sei se começo Fazendo ARTE, não sei se começo com Educação. Depois de um lampejo rápido de decisão, farei as duas coisas, pois todo educador seja formal ou popular, prima pela educarte sempre, com todo o neologismo necessário para essa explicação. Se você não entender de pronto,não se preocupe, pois durante a nossa convivência virtual, perceberá o quanto a arte é necessária para se educar. E me conhecerá!

Sou um professor-camarada, ou pelo menos busco ser. Essa postura de horizontalidade tem a ver com a minha história de participação no movimento estudantil também no Rio de Janeiro, desde a AMES-RJ (Associação Municipal de Estudantes Secundaristas do Rio de Janeiro) até o DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UERJ. A experiência entre os estudantes « cara-pintadas », sujeitos políticos-chave na luta pelo impeachment do Collor, me deu toda a prova de que o saber não é coisa de se guardar pra si, mas algo para viver e partilhar tanto quanto para questionar e transformar. É preciso espraiá-lo ao nosso redor, principalmente junto aos que estão à espera do conhecimento para entenderem a si mesmos, a vida, e as instituições, com as quais têm laços apertados. Hoje, uma de muita importância, a educação, precisa ser cuidada, zelada e revolucionada em muitos sentidos.

Penso no prumo que meus alunos precisam para a construção de suas vidas num futuro próximo, dentro de uma perspectiva de independência e, vou usar uma palavra da moda, sustentabilidade. Mas não me apoio nessa linha de modismo, na verdade, mas nos direitos sociais que precisam ser ditos, explicitados. A arte e a educação, associadas à cultura - com seu misto de criatividade, potencial rebeldia e socialização para a entrada no mundo adulto - podem contribuir e muito nessa proposta.

 
Agora, estou pronto para começar... Com as mãos geladas, mas teclando com todo o gosto. Falarei abaixo de coisa muito séria - educação, e fecho com coisa muito bonita – arte. 


Educação do Estado Rio de Janeiro no CTI  

Recentemente o blog Mídia e Questão Social divulgou matéria do Uol, que expunha a realidade da educação no Estado do Rio de Janeiro. Vocês ainda não sabem, mas sou também profissional do SEPE-RJ (Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro), razão pela qual meus companheiros de blog acharam que eu teria a acrescentar ao debate que já vem sendo travado por aqui sobre mídia, questão social e cultura. O poema abaixo diz bem ao que vim: 
“Sou profissional da educação a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou profissional da educação a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou profissional da educação contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou profissional da educação a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou profissional da educação contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou profissional da educação a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias.” (adaptado da obra de Paulo Freire)
Por isso, nessa primeira matéria para a nossa editoria Fazendo Arte & Educação, decidi contar para vocês, de forma mais precisa e completa, como fazemos o tal cálculo que permite mensurar os dados de carência de profissionais na rede de ensino estadual. É simples.
O Sindicato (SEPE-RJ) vem utilizando, atualmente, uma metodologia que é a leitura e acompanhamento sistemático das exonerações e aposentadorias publicadas no Diário Oficial do Estado. Pegamos esse número e deduzimos do número de chamadas de concursados, revelando um primeiro dado de carência dos profissionais de educação. Somam-se a esse cálculo os números de Gratificação por Lotação Provisória /GLP (hora extra do professor), declarados pela SEEDUC (Secretaria Estadual de Educação), que totaliza um quadro de carência geral, o qual dividido por dias úteis nos fornecerá um total de saída diária desses profissionais. Chega-se ao cálculo absurdo de quatro professores por dia fora de sala de aula em 2010. Vejamos abaixo um quadro que detalha a situação:


QUADRO DE CARÊNCIA DE PROFESSORES – REDE ESTADUAL/RJ*

Levamos em consideração a declaração da SEEDUC em 2002, contabilizando em 26.000 a carência de professores na rede estadual.

Esses números de exonerações e aposentadorias são precisos, diferente do que diz a matéria do portal UOL. Tem ainda números não divulgados pelo Governo, o que demonstra que a situação é ainda mais alarmante. Não temos acesso, por exemplo, ao número de licenças médicas, de professores em readaptação (fora de sala de aula) e de quantos professores chamados realmente tomaram posse. Esses dados que revelam a migração dos professores para fora do sistema estadual vêm crescendo principalmente quando levamos em conta o aumento de casos de assédio moral e violência nas escolas, com média de cinco a dez casos denunciados diariamente ao Sindicato.


Promessas vãs: a história se repete

Mas com toda certeza, o principal fator desse verdadeiro êxodo profissional é a desvalorização dos profissionais. Ainda em campanha, em 2006, Sérgio Cabral se comprometeu, por iniciativa própria (através de carta dirigida à casa dos profissionais da educação do Estado), com várias reivindicações históricas dos profissionais da educação. Algumas destas promessas: reposição das perdas salariais dos últimos 10 anos; descongelamento do plano de carreira dos funcionários administrativos; fim da política de gratificação do Nova Escola e incorporação do valor da gratificação ao piso salarial; fim da política de abonos; abono das greves e paralisações e fim das terceirizações e contratos precários e abertura imediata de concurso público.
Destas medidas devemos destacar que a “política salarial” do governador foi a de incorporação da gratificação do Nova Escola gradualmente até o ano de 2016 (parece piada!), o que, para nós, é, no entanto, direito líquido e certo. Política de valorização apenas através da incorporação de abonos não pode ser levada a sério. E nossas perdas salariais acumuladas nesses anos de arrocho?

Durante esse governo, fizemos inúmeras manifestações em defesa de maior investimento na educação, já que Cabral em sua carta-compromisso dizia que uma de suas metas, caso eleito, seria a de “...fazer da educação do Estado do Rio de Janeiro um modelo para todo o país.”


Uma dura realidade: a educação no Estado do Rio de Janeiro em alerta vermelho

Recebemos no Estado salários aviltantes, salário este menor do que a maioria das redes municipais; soma-se a isso a falta de condições de trabalho, salas superlotadas, aumento de tarefas por falta de profissionais de apoio (pessoal de secretaria, merendeiras e principalmente inspetores), ausência de concursos públicos que deem conta da necessidade funcional nas unidades de ensino, a estrutura física das escolas não tem manutenção suficiente, não há materiais para serem utilizados nas atividades, não é investido o mínimo do orçamento previsto pela Constituição, etc. O resultado é a queda vertiginosa da qualidade do serviço da escola pública e o seu desprestígio crescente na sociedade.

A escola pública, instituição sistematicamente desvalorizada, atacada e desprestigiada, necessita de muitas políticas públicas para se reerguer.

Recentemente foi divulgado o índice de avaliação do IDEB 2010 (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) que classificou o Estado do Rio de Janeiro como um dos piores, “perdendo” apenas para o Piauí. Não nos espantam - visto que vimos acompanhando diariamente a situação a partir do SEPE-RJ - os dados do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) divulgados no jornal “O Globo” de domingo (05/09) –, demonstrando que, entre 2006 e 2009, o Rio de Janeiro teve a maior queda no número de alunos matriculados no país.

O “modelo” de Sérgio Cabral nós conhecemos, infelizmente. Tudo o que houve de avanço para a categoria foi arrancado a duras penas.

O melhor exemplo dessa postura do governo Cabral é o do dia 15 de setembro do ano passado, quando, ao se deparar com uma manifestação pacífica dos profissionais da educação, organizada pelo SEPE/RJ, sua polícia militar nos recebeu com bombas de efeito moral, o que acarretou lesões físicas em vários profissionais da educação, afastando-os do trabalho por alguns meses, incluindo esse que vos escreve.

Diante dessa situação, aprovamos em nossos fóruns uma marcha no dia 16 de setembro, que sairá da Candelária em direção à Cinelândia, onde será realizada uma manifestação. Lançaremos, nesta oportunidade, um manifesto em defesa da escola pública e dos serviços públicos estaduais.

Contamos com a presença dos/as companheiros/as nesta atividade, para fortalecer a defesa pela escola pública, gratuita, laica e de qualidade.

Os governos passam, mas a escola pública resistirá!


Esperança que nos anima apesar de tudo 



O autor do desenho acima, Diógenes Magno, é aluno do 9° ano da Escola Municipal Argentina, Vila Isabel no Rio de Janeiro. Gosta de arte e criou o blog Franca Mente [diihm.blogspot.com], no qual faz uma exposição virtual de alguns de seus desenhos.

Já podemos observar uma marca própria em seus "personagens" e cenários. Menino de grande talento, procura sempre se antenar com a vida cultural da cidade. Tem interesse por Graffiti e participa ativamente de todas as atividades artísticas na sua escola. Em 2009, participou da pintura do muro da escola junto com colegas e professores...




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Ricardo Pereira - é professor Docente da disciplina de Artes da rede estadual, militante e funcionário do SEPE/RJ. Contato: e-mail: ricardoploc80@globo.com