domingo, 29 de abril de 2012

Editoria Web@Tecno

Jogue fora a violência.
MULHER É SUJEITO NÃO DESCARTÁVEL.


                                       Fonte: Google


Nelma Espíndola* 

A violência contra as mulheres vem sendo definida como uma violação dos seus direitos humanos, isto graças aos movimentos feministas internacionais que deram visibilidade ao problema. É aviltante, assim, saber que em pleno século XXI, aquele em que acontecem grandes descobertas e avanços tecnológicos e das ciências, a violência contra as mulheres continua tendo destaque no cenário mundial. Os homens também sofrem outros tipos de violação dos seus direitos humanos, porém isto não lhe confere o direito de ser violento. A violência em relação às mulheres caracteriza-se, portanto, como uma manifestação de poder e expressa uma “dominação masculina de amplo espectro”.




Muitos casos têm como contexto a família ou a casa, onde muitas vezes há tolerância e um pacto de silêncio, que impede que se denuncie. Este tipo de negligência, conivência ou intimidação dificulta, sem dúvida nenhuma, a detecção e denúncia do abuso físico e sexual, regular ou eventual, o estupro de meninas, crianças e mulheres, em geral, por pessoas muito próximas da vítima. O Social Watch Report (2004), dedicado à incidência da violência contra as mulheres e suas formas de manifestação, enfatiza um aspecto interessante. Essa violência seria “um dos principais mecanismos sociais para forçar as mulheres a se manterem em posições subordinadas”.




Em alguns acompanhamentos sociais que fiz a famílias assistidas, por dentro de minha atuação profissional numa determinada instituição assistencial no Rio de Janeiro, chocaram-me especialmente certos relatos, que mostram a reprodução intergeracional da violência: mães e filhas “meninas” sofrem abusos sexuais.  


O cenário latino-americano                                                                                                                                                                                                                                  
Na América Latina, três entre dez mulheres sofrem algum tipo de violência e 16% delas já foram vítimas de constrangimento e abuso sexual alguma vez na vida, segundo denuncia da ONU Mulheres, no dia 21 de março de 2012. Ainda há muito o que fazer para que este contexto seja transformado, mas, na última década, o Brasil vem alcançado progressos.

Essa caminhada pelos direitos humanos das mulheres no continente começou em 1928, ainda sob a União Pan-Americana, com a criação do primeiro organismo de proteção a esses direitos: a Comissão Interamericana de Mulheres [CIM]. Mesmo após a extinção da União Pan-Americana, isso não resultou o fim da CIM, a qual foi incorporada pela Organização dos Estados Americanos [OEA]. Sua criação ocorreu durante a 6ª. Conferência Internacional Americana, em Cuba, com o objetivo de promover e proteger os direitos das mulheres, dando-lhes acesso aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, a fim de atingir uma igualdade de gênero.

A importância dos direitos das mulheres alcançou, em 1979, a esfera global, quando foi criada pelas Nações Unidas, a Conferência sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Esta traz em sua gênese uma dupla obrigação: eliminar a discriminação contra a mulher e de assegurar a igualdade de gênero, declarando a importância de os Estados-membros criarem ações afirmativas para o cumprimento desses objetivos. Em 1993, foi, então, criada a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher. Nela acaba-se com a divisão entre o público e o privado, pois propõe a proteção da mulher nas duas esferas, com a ênfase na importância de os Estados-membros condenarem e eliminarem a violência contra a mulher. No mesmo ano foi elaborada a Declaração e Plataforma de Ação de Viena e no ano de 1995, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim que enfatizam “que os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.”

Seguindo essas diretrizes, em 1994, durante a Assembléia Geral da OEA, foi criada a Convenção de Belém do Pará, mais conhecida como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. De acordo com Flávia Piovesan, autora do livro Direitos Humanos e o Direito Constitucional:

“a Convenção entende por violência contra a mulher ‘qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (p.199).

Outro aspecto importante desta Convenção é que ela qualifica a violência tanto como uma violação dos direitos humanos quanto da liberdade fundamental das mulheres. Foi responsável ainda por ratificar e ampliar a Declaração e o Programa de Ação de Viena e pela exigência de que os Estados-membros da OEA erradiquem a violência contra as mulheres. A visibilidade desta problemática ganhou amplitude e maior visibilidade mundial, o que incidiu na geração de meios mais eficazes de fiscalização e de combate.

Segundo pesquisadores, até 2003, 31 países ratificaram a Convenção de Belém, um  número significativo de países-membros com a preocupação em eliminar essa quadro de violência contra a mulher, cujo respeito e cumprimento às obrigações assumidas são de responsabilidade dos Estados. O Brasil ratificou-a em 27 de novembro de 1995. De acordo com o § 2º da Constituição Federal de 1988, isso significa que internamente ela tem força de lei.


Década de 1980: início das conquistas no Brasil

O progresso das ações para enfrentamento da violência contra as mulheres no período de 2003-2010, no Brasil, segundo Leila Linhares Barsted, deve ser compreendido a partir da contínua atuação do movimento feminista no país. Desde sua gênese, articula-se contra a violência e discriminação feita às mulheres. Sua agenda política incluiu a luta pela conquista “da plena igualdade entre homens e mulheres, nos espaços públicos e privados; apontou a necessidade de leis e políticas públicas que concretizassem a cidadania das mulheres, com o reconhecimento e o acesso aos direitos até então negados, dentre eles o direito a uma vida sem violência.”

Fruto desse trabalho, a Constituição Federal de 1988 reconheceu a plena cidadania das mulheres, mais os instrumentos internacionais de proteção aos direitos das mulheres elaborados pela ONU e da OEA.

A década de 1980 foi, assim, o marco regulatório das primeiras conquistas do movimento feminista junto ao Estado, para a implementação de políticas públicas voltadas ao enfretamento à violência contra as mulheres. O ano de 1985, no ápice da Década das Mulheres, conforme declaração da ONU, é inaugurada a 1ª Delegacia  de Defesa da Mulher e criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher [CNDM], por meio da Lei nº 7.353/85. No ano seguinte foi criada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a primeira Casa-Abrigo para Mulheres em Situação de Risco de Morte no país. Esse foco também serviu de base a implantação do Programa Nacional de Combate à Violência contra a Mulher, vinculado ao Ministério da Justiça.

Em 1998 foi criada a Norma Técnica para prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual pelo Ministério da Saúde, que garantia o atendimento a essas vítimas nos serviços de saúde. Este tipo de serviço permitiu às adolescentes e mulheres acesso imediato aos cuidados de saúde, à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez indesejada. Em 2003, aconteceu a promulgação da Lei nº 10.778/03 que resultou em um novo avanço: a Notificação Compulsória dos casos de violência contra as mulheres atendidas nos serviços de saúde, públicos e privados, em todo o território brasileiro.

Neste mesmo ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, promulgou a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres. Com status de Ministério, suas ações para o enfretamento à violência contra as mulheres passam a receber investimentos maiores e as políticas têm a promoção de novos serviços, tais como: o Centro de Referência da Mulher, os Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores, as Promotorias Especializadas e a proposta da construção de Redes de Atendimento às mulheres em situação de violência. Já foram realizadas a I e a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres ( I e II CNPM) e a construção de dois Planos Nacionais de Políticas para Mulheres e Enfrentamento à Violência contra  as  Mulheres. Todo esse avanço foi consolidado com o lançamento do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, em agosto de 2007.

É importante salientar que o conceito de violência contra as mulheres foi adotado pela Política Nacional, e tem como fundamento a definição da Convenção de Belém do Pará (1994). Ele refere-se a “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado” (Art. 1º). 




Uma das leis mais avançadas do mundo no combate à violência contra as mulheres é  a Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340, que teve como base a Convenção de Belém. Ela foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Lula em 07 de agosto de 2006, entrando em vigor a partir de 22 de setembro de 2006. Provocou principalmente várias mudanças no cenário jurídico, dentre elas: o aumento no rigor das punições das agressões contra as mulheres ocorridas no ambiente doméstico ou cometida por familiares. Um exemplo disso foi a prisão, no dia seguinte à sua aprovação, do primeiro agressor, preso no Rio de Janeiro: um homem que tentou estrangular a ex-esposa.

Para tanto, a lei Maria da Penha também alterou o Código Penal Brasileiro. Desde então, os agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar presos em flagrante não podem ser mais punidos com penas alternativas, aumentou-se o tempo máximo de detenção de um para três anos. A lei prevê ainda medidas que vão desde a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da mulher agredida e filhos.




Antes da Lei Maria da Penha, os juízes privilegiavam a Lei nº 9.099/95 que trata de crimes de menor potencial ofensivo, cujo delito não tem pena prevista no Código Penal superior a dois anos. Tal lei propunha uma solução rápida para os conflitos provocados pela violência doméstica, estimulando as mulheres a desistirem de processar seus maridos ou companheiros agressores.

Por isso, para acabar de vez com essa subestimação da gravidade da violência contra a mulher e no intuito de criar uma política pública de enfrentamento da violência contra a mulher, ONGs feministas se articularam, no período de 2002-2006, para a elaboração de um Anteprojeto de Lei.  Aperfeiçoado, este resultou mais tarde resultou na Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. A partir da entrada em vigor dessa Lei, a “interlocução com o Poder Judiciário passou a fazer parte da agenda e das estratégicas das feministas para promover o acesso das mulheres à justiça.”

As Redes de Atendimento




As Redes de Atendimento caracterizam-se pela atuação articulada entre as instituições /serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, cujo objetivo é a ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; a identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e o desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção.  A Política Nacional de Enfretamento a Violência Contra as Mulheres enfatiza ainda que a constituição dessa rede de atendimento procura dar conta da complexidade e do caráter multidimensional da violência contra as mulheres, o qual requer a interlocução de diversas áreas, tais como: a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, a cultural, entre outras.

Segundo a OMS/OPAS/1998, a criação de uma Rede de Atendimento faz-se necessária, pois leva em conta a “rota critica”, que a mulher em situação de violência percorre. São os vários caminhos percorridos por ela, mediante uma resposta do Estado e das várias redes sociais. São diversas portas-de-entrada, dentre elas: serviços de emergência na saúde, delegacias, serviços da assistência social, que  devem trabalhar de modo articulado, para que a assistência seja então qualificada, integral e não-revitimize a mulher em situação de violência.

Esta rede no âmbito do governo é composta de:

v  - Centro de Referências de Atendimento à Mulher
v  - Núcleos de Atendimento à Mulher
v  - Casas-Abrigo
v  -Casas de Acolhimento Provisório
v  - Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher [DEAMs]
v  - Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher nas Delegacias Comuns
v  - Polícia Civil e Militar
v  - Instituto Médico Legal
v  - Defensorias da Mulher
v  - Juizado de Violência Doméstica e Familiar
v  - Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180
v  - Ouvidorias
v  - Ouvidoria da Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres
v  - Serviços de Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência sexual e doméstica
v  - Postos de Atendimento Humanizados nos Aeroporto
v  - Núcleo da Mulher da Casa do Migrante

É importante lembrar que os princípios que norteiam a Política Nacional para as Mulheres, propostos no I e II Plano Nacional de Políticas para as mulheres são: Igualdade e respeito à diversidade; Equidade; Autonomia das Mulheres; Laicidade do Estado; Universalidade das Políticas; Justiça Social; Transparência dos atos públicos e Participação e Controle social.

As diretrizes dessa Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres são:

ü  - Garantir o cumprimento dos tratados, acordos e convenções internacionais firmados e ratificados pelo Estado Brasileiro;
ü  - Reconhecer a violência de gênero, raça e etnia como violência estrutural e histórica que expressa a opressão das mulheres e que precisa ser tratada como questão de segurança,. Justiça, educação, assistência social e saúde pública;
ü  - Combater as distintas formas de apropriação e exploração mercantil do corpo e da vida das mulheres, como  a exploração sexual e o tráfico de mulheres;
ü  - Implementar medidas preventivas nas políticas públicas, de maneira integrada e intersetorial nas áreas de saúde, educação, assistência, turismo, comunicação, cultura, direitos humanos e justiça;Incentivar a formação e capacitação de profissionais para o enfrentamento à violência contra as mulheres, no que tange à assistência; e
ü  - Estruturar as Redes de Atendimento à mulher em situação de violência nos Estados,
             Municípios e Distrito Federal.


Pesquisas mostram avanços e retrocessos




Nas diversas pesquisas que fiz na web sobre a situação de violência contra as mulheres, destaco a Agência de Notícias Patrícia Galvão, uma iniciativa do Instituto Patrícia Galvão, criada em 2009, cujo objetivo é a produção de notícias e conteúdos  sobre os direitos das mulheres.

Dados interessantes são apontados no mês de março quanto à violência contra as mulheres. Dentre eles, selecionei alguns:

I -

- Seis em cada dez brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima de violência doméstica;
- São apontados como principais fatores que contribuem para a violência: o machismo (40%) e o alcoolismo (31%);
- 94% conhecem a Lei Maria da Penha, mas apenas 13% sabem o seu conteúdo. A maioria das  pessoas pensa que, ao ser denunciado, o agressor vai preso;
 - 52% acham que juízes e policiais desqualificam o problema.
[fonte: pesquisa do Instituto Avon/Ipsos entre 31 de janeiro a 10 de fevereiro de 2011]

II -

- Uma em cada cinco mulheres considera já ter sofrido alguma vez “algum tipo de violência por parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”;
- O parceiro (marido ou namorado) é o responsável por mais de 80% dos casos  reportados.
[fonte: Da Pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (2012), realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC]

Já a pesquisa feita pelo DataSenado, concluída em 2011, destaca que “o medo continua sendo a razão principal  (68%) para evitar a denúncia dos agressores. Em 66 dos casos, os responsáveis pelas agressões foram os maridos ou companheiros. O levantamento de 2011 indica que o conhecimento sobre a Lei Maria da Penha cresceu nos últimos dois anos: 98% disseram já ter ouvido falar na lei, contra 83% em 2009. Só no Ligue 180, houve o registro de quase 2 mil ligações por dia em 2011.

Quanto aos Serviços de Atendimento à Mulher disponíveis no país, há uma demanda enorme, conforme sinaliza a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, pois o Brasil tem mais de 5.500 municípios e apenas:

  • - 190 Centros de Referências (atenção social, psicológica e orientação jurídica);
  • - 72 Casa Abrigo;
  • - 466 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher;
  • - 93 Juizados Especializados e Varas adaptadas;
  • - 57 Defensorias Especializadas;
  • - 21 Promotorias Especializadas;
  • - 12 Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor; e
  • - 21 Promotorias/Núcleos de Gênero no Ministério Público.
“Quem ama abraça”




Sei que ainda há um longo caminho a percorrer, para que todo esse contexto de violência contra as mulheres sofra a metamorfose tão desejada. Mas acredito na superação de todas elas: da lagarta virando a mais bela borboleta... Que voa ao vento, que se redescobre e traça o seu melhor caminho!

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Nelma Espíndola - é assistente social, webmaster do Blog Mídia e Questão Social.

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1. Leila Linhares Barsted – advogada, coordenadora executiva da Ong Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação [CEPIA], membro do Comitê de Especialistas do Mecanismo de Monitoramento da Conveção de Belém do Pará da OEA.
2.  O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010 / Organização: Leila Linhares Barsted, Jacqueline Pitanguy – Rio de Janeiro: CEPIA ; Brasília: ONU Mulheres, 2011.

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Links

Agência Patrícia Galvão – www.agenciapatriciagalvao.org.br

Secretaria de Políticas das Mulheres – www.sepm.gov.br

Quem ama abraça! – www.quemamaabraca.org.br

Músicas

Quando o Sol Bater – Legião Urbana

Sonho Impossível – Maria Bethania

sábado, 7 de abril de 2012

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Como já aconteceu outras vezes, em que tivemos a colaboração de amigos brasileiros ou franceses, como Jacqueline Beaulieu, Soraya Minot e Maurílio Matos, desta feita a convidada da editoria Volta do Mundo é a professora Elaine Rossetti Behring. Desde jovem, Elaine Behring interessa-se por temas como a questão judaica e a Segunda Guerra Mundial. Seus anos de militância na antiga corrente Democracia Socialista e de liderança estudantil no Rio de Janeiro refinaram ainda mais a sua curiosidade quanto às relações políticas internacionais. Em 2011, ela chega em Paris para o seu pós-doutorado justamente no aniversário dos 50 anos de mais uma importante página da história de tensões na luta pela independência da Argélia (1954-1962). A editoria Volta do Mundo, Mundo Dá Volta não podia se furtar a compartilhar com seus blogleitores esse duro, porém importante relato.



Outubro. 1961.
o silêncio sobre a repressão à resistência argelina em Paris




Elaine Behring*

Viver na França é se deparar com grandes paradoxos. É evidente que todas as nações têm suas contradições, suas marcas históricas, seus conflitos de classe. Afinal estamos no capitalismo, na modernidade de discordâncias de tempos, e em plena crise. Tenho me dedicado a falar do Brasil e de seu drama crônico, como dizia Florestan Fernandes, da imensa desigualdade, da heteronomia como marcas históricas. Mas neste breve espaço me dedicarei, a convite da editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta, a traçar livremente, sem maiores pretensões acadêmicas, algumas impressões dessa experiência francesa, que tem me permitido conhecer um pouco mais sua imensa contribuição para a humanidade, mas também suas mazelas e eventos históricos onde prevaleceram os desvalores. 


A revolução francesa, segundo Délacroix


Temos a França moderna e republicana – tous ensemble! – da destruição à mão e marretas da prisão da Bastille em 1789, passando pelas revoluções de 1848, pela Comuna de Paris de 1871, pela heroica (e predominantemente comunista) Resistência ao nazismo, pelo Maio de 1968, até as manifestações contemporâneas em defesa dos direitos, contra a precarização, a deslocalização, o racismo. Está na pauta atual do país uma extensa agenda de reivindicações e de lutas, profundamente imbuída do melhor espírito humano-genérico, contra todas as formas de exploração e opressão de classe, de gênero, de orientação sexual, contra a finança e a mundialização, e muitas vezes de nítido cariz anticapitalista. Mas existe outra França menos cercada de luzes, de humanismo ou de glamour gauche. Trata-se da França que se move à droite, profundamente individualista, intolerante, racista e hipócrita, já que muitas vezes camuflada sob a polidez formal.




Podemos lembrar do episódio histórico de mais difícil elaboração ontem e hoje: a colaboração com o nazismo do regime de Vichy, de Pétain. Os documentários, romances – e destaco aqui a Suite Française de Irene Nimorevsky - e tratados acadêmicos; os museus, as placas em todas as escolas em alusão ao envio de crianças judias (cerca de 11000) para os campos de concentração;  tudo isso não permite esquecer, mas nada disso foi suficiente para dizer nunca mais. Isto porque existem episódios históricos ulteriores sobre os quais a França majoritariamente prefere desviar os olhos, que não entram nos compêndios das escolas, que se fala em voz baixa. Um desses episódios aconteceu em Paris, no dia 17 outubro de 1961.

Octobre Noir




Em 2011, ocorreram na França vários debates, lançamentos de filmes, livros e bandes dessinés (BDs, ou quadrinhos para nós, e que entraram definitivamente na minha vida após essa temporada francesa), em memória dos acontecimentos que passo a descrever, que tiveram lugar há cinquenta anos. O contexto de fundo é a luta pela independência da Argélia, cujo desfecho ocorre apenas em 5 de julho de 1962, data que marca a conquista pelo país de sua autodeterminação. Desde 1954, a Frente de Libertação Nacional (FLN) junto a outras organizações, especialmente o MNA (Movimento Nacional Argelino), trava um duro combate armado contra a presença francesa em seu país. Um registro cinematográfico indispensável da luta argelina é o premiado filme A Batalha de Argel (Direção de Gillo Pontecorvo, 1966). 




Mas, vamos ao evento que nos moveu a escrever este breve artigo. Onze dias antes do dia 17 de outubro de 1961, o chefe de polícia de Paris, Maurice Papon, decretou um toque de recolher, aconselhando os argelinos ou africanos do norte a não circular pelas ruas entre 20:30 e 5:30 da manhã, especialmente em grupos, sob pena de suspeição pela polícia. No mesmo decreto, os bares e lugares de venda de bebidas frequentados por argelinos deveriam fechar às 19:00. Não é ocioso lembrar que Papon foi um oficial do regime de Vichy que colaborou intensamente com o nazismo. Seus desmandos durante a ocupação nazista na França vieram à tona tardiamente. Apenas em 1997 e 1998 Papon foi condenado por crimes contra a humanidade.
                                                   
Mas, prossigamos. A FLN decidiu organizar uma manifestação pública contra essas medidas a partir de seus militantes em Paris e dos milhares de trabalhadores argelinos em atividade na cidade-luz, habitantes de Belleville, de Menilmontant, e de quartiers mais distantes, em condições bastante precárias. São impressionantes os registros de época das habitações e condições de vida desses trabalhadores. Se as medidas de Papon convidavam ao confronto - e elas foram efetivamente seu leitmotiv de massa - as organizações que faziam parte da mesa de negociações da independência da Argélia tinham também a intenção de pautar a questão e envolver de forma mais contundente a esquerda francesa na causa, tendo em vista fazer pressão por acordos mais favoráveis, já que naquele momento a independência parecia quase inevitável.


                                                 Ménilmontant, Paris

No dia 17 de outubro, num início de noite fria e chuvosa de outono, porém, milhares de homens (majoritariamente, como mostram os registros fotográficos e fílmicos) e mulheres argelinos colocaram-se em marcha pelos grandes Boulevards, vindos das estações de metrô e RER. Os relatos de testemunhas – especialmente das mulheres - são emocionantes: as pessoas se arrumaram como para uma festa, para um dia importante de suas vidas. E andavam em enormes grupos num indignado silêncio pelas ruas de Paris, sem gritos, sem faixas, sem pirulitos. Apenas a sua presença massiva, pacífica – mas não passiva -  e terrivelmente inquietante.

As forças de segurança, com destaque para a CRS, famosa pela truculência e pelo racismo ontem e hoje, foram implacáveis. Lançaram-se sobre os manifestantes de forma brutal, com cacetetes, gás lacrimogêneo e metralhadoras. O documentário Ici on Noie les Algerien (Yasmina Adi, 2011) – [Aqui afogam-se os argelinos] mostra com ampla pesquisa de documentos e imagens a coordenação da polícia francesa frente à manifestação, deixando claro que os acontecimentos não se relacionavam a excessos pontuais da polícia, mas a uma violência coordenada, racional e focada. 


                                                 Foto mureta do rio Sena


Foram presas oficialmente naquela noite 11.538 pessoas. O Estado Francês reconheceu apenas dois mortos e sessenta e quatro feridos... Contudo, testemunhos da época e as famílias dos desaparecidos e mortos não permitem tamanho esquecimento cínico. Foram ouvidas as metralhadoras disparadas sobre os argelinos próximos ao famoso Cinema Rex. Foram vistos sete corpos de argelinos carbonizados em um carro da polícia no Boulevard Bonne Nouvelle. Houve testemunhos de pessoas que viram as vítimas sendo jogadas já feridas no rio Sena para que se afogassem: corpos que foram encontrados apenas a quilômetros rio abaixo durante os dias e meses seguintes. Números não oficiais franceses falam de 140 mortos. A FLN reivindica cerca de 200 mortos, 400 desaparecidos – que podem ter sido enviados para a Argélia após a prisão - e 2300 feridos. Os presos foram levados para o Palais des Sports (onde ocorreria show de Ray Charles nos dias seguintes). Lá eles foram interrogados, e muitos foram provavelmente torturados – há depoimentos que explicitam esse procedimento no filme supracitado - e vários foram expatriados para a Argélia. Se observamos atentamente as imagens do documentário, parece- nos que os números da FLN são mais factíveis, sobretudo de feridos. As imagens mostram muitos homens feridos nas ruas, no Palais ou entrando nos aviões fretados para levá-los para a Argélia. As cenas são tocantes, pois a expressão, o olhar desses homens é de profunda tristeza.

Corajosamente, logo após esse dia, mulheres e crianças argelinas fizeram novamente uma manifestação, agora em busca de seus maridos, irmãos, amigos, sendo reprimidas novamente, mas não da mesma maneira. É importante registrar que a repercussão na imprensa local e internacional esteve aquém dos reais acontecimentos, mas dada a proporção de presos e a expressão mundial da guerra da Argélia, não poderia existir mais uma sequência sangrenta.






Na verdade, um novo acontecimento do gênero, mas de bem menores cifras, aconteceu em 8 de fevereiro de 1962, conhecido como o massacre de Charonne. Ali morreram 9 pessoas na repressão policial realizada na estação do metrô de Charonne, em Paris. Elas buscavam refúgio da brutalidade policial desencadeada novamente por Papon, mas com o aval de De Gaulle (tal como no ano anterior), sobre uma manifestação convocada pelo PCF e outras organizações da esquerda francesa em solidariedade à independência da Argélia, a qual ocorreria dali há quatro meses. Os acordos que se seguiram à independência da Argélia não fizeram qualquer referência a esse episódio tão pouco republicano da história francesa.



    
Por ocasião, portanto, dos cinquenta anos do Octobre Noir - [Outubro Negro], título de uma importante BD de Daeninckc e Mako, com prefácio de Benjamin Stora, lançada em 2011 -, parece existir finalmente uma vontade coletiva de elaboração, de ruptura do silêncio e do esquecimento, de ocupação do espaço público. Essa elaboração vinha lenta, acontecendo aos poucos, desde 1998 com o processo de Papon pela deportação de judeus franceses para os campos de concentração, e breves momentos públicos locais de reconhecimento de vítimas, a exemplo de placas e nomes de ruas.

Os 50 anos dos acontecimentos permitem que a França retire os esqueletos do armário (ou seria do rio Sena?), por meio de intensos debates, filmes, livros. Mas isso ainda não significa acalmar definitivamente a memória dos feridos. Até porque mesmo que a Argélia tenha se tornado um país independente, a presença argelina na França segue sendo muito forte, e as tensões irrompem de outra maneira, não como opressão de um país sobre outro, mas com um componente de classe e racial. Especialmente após um largo período de governos de direita, com todas as suas consequências sociais nefastas, com destaque para o desemprego. Os argelinos, afinal, permanecem compondo a força de trabalho na França.

 O ódio


                                  Foto divulgação do filme: “La haine” (O ódio)


Este pode ser o caso da última situação que consternou a França: o assassinato de sete pessoas, três militares e três crianças e um professor de uma escola judaica. O protagonista do ódio é um descendente de argelinos que aderiu à jihad islâmica e se arrepende apenas de não ter matado mais pessoas na sua vingança sobre as forças militares francesas e sobre a política francesa a respeito da Palestina. Trata-se de um desempregado, com sete processos ao longo de seus curtos 24 anos, e duas prisões.

É evidente que existem novas mediações para interpretarmos a atitude deste jovem sem perspectivas, e cujo vazio é ocupado pelo ódio. Mas perguntamos: não pesaria inconscientemente sobre sua opção bárbara a violência que vem do passado? Este inconsciente coletivo originário possivelmente se combina a tantas outras opressões do presente, tão bárbaras quanto as escolhas feitas por este Mohamed: o racismo, o desemprego que atinge 25% dos jovens franceses, especialmente imigrantes e moradores das banlieues, a desconfiança da política como forma de solução dos seus problemas. O fato é que o peso das decisões bárbaras do passado pode explodir em situações individuais e coletivas no presente, temperadas pelas novas e complexas mediações geopolíticas, econômicas e culturais que tornaram este mundo mais duro de viver nas últimas décadas.

Alguma saída?


                                              Ilustração: Torre Eiffel, Paris.


Meu objetivo nesse espaço é o de fazer uma breve reflexão sobre este belíssimo e complexo país onde tenho vivido desde agosto de 2011, a partir do contato com a questão argelina, cujo meu conhecimento antes disso era muito pequeno. Essas contradições gritantes estão neste momento em franca disputa de destino, nas eleições presidenciais ou nas ruas.

Algo interessante é a homenagem que neste momento se faz a Rousseau na Assembléia Nacional numa exposição de seus manuscritos, lembrando a sua inspiração para a Revolução Francesa, especialmente a ideia de revolução. Para ele havia passado a fase das revoltas e viria uma era de revoluções. Elas vieram, burguesas, e aprofundaram o componente de barbárie da modernidade. Vieram também socialistas, mas ora isoladas ora atravessadas por contradições que levaram a processos de restauração. Foram incapazes, assim, de realizar um projeto moderno de outro sentido.
  
A questão que pretendo suscitar, inspirada no melhor de Rousseau e, sobretudo, na tradição socialista, é exatamente essa: a superação do ódio e da barbárie só pode vir de uma nova era de revoluções, embebida do aprendizado duro dos séculos XIX e XX. Senão, teremos novos e mais tenebrosos episódios como esses, desencadeados por indivíduos ou por Estados.
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Elaine Rossetti Behring – é assistente social, doutora em Serviço Social (UFRJ) e professora da Faculdade de Serviço Social (UERJ). Desde agosto de 2011, está realizando pós-doutorado em sociologia no CRESPPA – Université de Paris 8.

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LINKS
(“A Batalha de Argel”, crítica de Marcelo Janot a esse cult filme).

(Entrevista com o historiador Benjamin Stora)

(Trailer do documentário “Ici on noie les Algériens” – Aqui afogam-se os argelinos)

(Artigo sobre a HQ Sob as sombras de Charonne)