quarta-feira, 28 de julho de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Patrimônio Vivo

10º ENCONTRO DE CULTURAS TRADICIONAIS da Chapada dos Veadeiros


Texto
Mione Sales*

Fotos e vídeo
Frédéric Hugon


« O caminho mais curto de chegarmos a nós mesmos
é aquele que dá a volta ao mundo" »
Montaigne.


Não poderia deixar de registrar a feliz coincidência de ter ido passar uns dias na Chapada dos Veadeiros – Goiás, na vila de São Jorge, em Alto Paraíso, justamente na ocasião do 10° Encontro de Culturas Tradicionais. Para quem nunca ouviu falar, trata-se de uma espécie de festival de cultura popular com ares de uma bela festa do interior. Mesmo se é justo descrevê-lo assim, é pouco para traduzir esse encontro com cara realmente de um evento do século XXI, ou seja, um encontro de culturas. Não de países diferentes, mas brasileiras mesmo. Pelo componente inovador e ao ar livre, talvez se aproxime do espírito intergaláctico zapatista daquele que foi o primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo (1996), em Chiapas, mas quem dá as cartas ali não é a política, mas a cultura (rodas de prosa, oficinas, feira de oportunidades sustentáveis, etecetera).


A diversidade passa o chapéu e convida a todos à exuberância e simplicidade da inventividade popular fomentada nas mais longínquas comunidades e povoados do país. Como exemplos, podemos citar a capoeira, o congo, o mamulengo, batuques, catireiros, violeiros, tambores e orquestras populares, presenças confirmadas na festa desse ano. O festival começou em 16 de julho e segue até o dia 31.


Assisti a dois interessantes flashes do festival. O primeiro, sexta-feira (23), foi o encerramento da Aldeia Multiétnica, momento também da « Corrida de Toras »: atividade em que índios de tribos diferentes disputavam quem conseguia perfazer em menor tempo um longo percurso de 8 km portando uma pesada tora de madeira. Não somente os concorrentes corriam, mas membros das respectivas tribos apoiavam aquele que corria com o imenso tronco de árvore pelas ruas de São Jorge. Ao lado dos concorrentes, corriam também vários jovens, entre curiosos, solidários e aqueles que tentavam filmar o evento. Uma cena antológica!


Além da corrida, houve ainda demonstrações artísticas especiais desses povos e cidadãos da floresta, capazes de emocionar corações mais sensíveis frente à beleza da sua liberdade. Ali se encerrava a IV Aldeia Multiétnica.


Ver todos aqueles índios – homens, mulheres, adultos e criancinhas - se divertindo, com seus trajes e pinturas, à vontade e em integração descontraída com os demais brasileiros na pacífica cidade de São Jorge fez-me pensar que o nosso país parece realmente ainda ter jeito.


Vídeo especialmente registrado para o blog M&QS

O astral na pequena São Jorge era dos melhores, com a presença de muitos jovens, naquele que era quase um Woodstock antropológico. Muitas cores, vivacidade e um jeito hippie e popular de povoado interiorano se coadunavam ao espírito ecológico e cultural da agenda do século XXI. Muitas penas, pinturas, tatuagens, cabelos pretos longos e peles morenas revelavam indígenas e mestiços entre os demais transeuntes.


O segundo flash a que assisti no sábado, (24), foram apresentações de comunidades Kalunga. O povo subiu literalmente no palco, a cantar suas canções em toadas, que fazem pensar no “repente” nordestino e no contemporâneo “rap”. Homens e mulheres a partilhar o palco, cheios de cores, exibindo, porém, uma performance em ritmo quebrado e tons despreocupados da afinação profissional. Havia uma intenção de comunicação que se impunha, plena e cheia de si.

Gostei do fato de que aquela festa não quisesse imitar a televisão ou o mundo do show business. Havia um misto de profissionalismo e improviso, mas ninguém estava ali almejando se tornar uma celebridade ou projetar uma outra. O quase anonimato daquelas figuras em azul, com chapéu de couro, e daquelas mulheres com sua desenvolta simplicidade - combinado ao resgate da legitimidade dessa e de tantas outras práticas múltiplas, muitas vezes invisíveis - parecia constituir, por isso mesmo, a própria razão de ser e o caráter inovador do encontro de culturas tradicionais.

              Mural do artista Moacir

O Festival tem dez anos de existência e foi um « gol de placa » na homenagem às tradições brasileiras. Culturas tradicionais – longe de qualquer conservadorismo - é algo que faz pensar nas nossas raízes, aquilo que não foi nem deve ser mumificado - como infelizmente muitos leigos costumam fazê-lo -, sob a alcunha de « folclore ». Constituem, sim, um patrimônio vivo ou imaterial, segundo formulação jurídica e teórica mais recente, conforme me esclareceu Elaine Monteiro, professora da UFF de Pádua e membro do Pontão de Cultura do Jongo. A história dessa construção do patrimônio histórico brasileiro, como se sabe, remonta, porém, à década de 30, ainda sob os auspícios vanguardistas e lúcidos do saudoso escritor Mario de Andrade.

          Mural do artista Moacir

Ver aqueles índios partilhando o mesmo território geo-criativo de caboclos, negros e neohippies, numa rica fusão cultural e intersubjetiva fortaleceu a minha convicção de que a cultura é um tema chave da construção de qualquer projeto societário que se pretenda efetivamente democrático. Não é um porvir. É um presente de mãos dadas com o melhor do seu passado. É um agora. É também um possível futuro, desde que acreditemos que vale a pena ceder espaço a valores menos midiatizados, menos consumistas e mais reais, menos ao sabor das modas e mais ao gosto do povo. Perdoe-me encerrar com um bordão, mas « o povo não é bobo ».

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Mione Sales – é assistente social, professora de Serviço Social (FSS/Uerj) e doutora em Sociologia/USP. Contato: mioneecia@hotmail.com
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LINKS

Para navegar

http://www.encontrodeculturas.com.br/2010/index.php

Para ler

http://site.dm.com.br/noticias/dm-revista/onde-as-comunidades-do-brasil-inteiro-se

http://www.tribunadobrasil.com.br/site/?p=noticias_ver&id=24913

http://www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/patrimonio-e-monumenta/patrimonio-imaterial/
(sobre patrimônio cultural imaterial)

http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/temas/cul_tema.php?t=9
(site português da UNESCO historia e cita documentos atinentes ao patrimônio imaterial)

Para descobrir

http://www.pontaojongo.uff.br/o-que-%C3%A9-o-pont%C3%A3o

domingo, 11 de julho de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Bibliotecas: da ficção à realidade


Mione Sales*


                       Fonte: Google

Muitas crianças e jovens desse imenso Brasil, « de coração mole e escorrendo », como diria Mario de Andrade, desejam muito precocemente ler. Não como algo imposto ou induzido pelo mundo adulto, mas simplesmente como uma intuitiva curiosidade e necessidade interna de sentido. Como diz uma máxima à qual fui apresentada ao longo da vida, « nunca está só quem possui um bom livro para ler e boas ideias sobre as quais meditar ». Uma perspectiva, à primeira vista, muito solene para uma criança, porém algumas delas descobrem-se diferentes e com vontades específicas, como a de ir mais cedo para a cama apenas para abrir com tranquilidade um livro, ou levantar mais tarde, esticando a manhã até acabar aquele capítulo ou mesmo se isolar no recreio da escola para tentar ler, sossegadamente, o livro ou a revista em quadrinhos favorita.

Mesmo em tempos de alta tecnologia, a tribo que tem sede das letras começa, desde a mais tenra idade, a se posicionar e a fazer escolhas atípicas para a maioria dos pequenos mortais – que preferem a ação e o movimento, o barulho e a companhia dos amigos em tempo integral. Quem gosta de ler, contudo, não é um ser bizarro ou estranho. Apenas tem outras fomes e necessidades (que podem ou não se somar àquelas dos colegas da mesma geração). Fome talvez do mistério escondido nas intrigas e relatos, dos modelos possíveis de futuro, explicações do passado, ou simplesmente de uma boa história que faça rir ou sonhar.

Se o livro pode ser visto como um direito da criança, até muito recentemente no Brasil, ele permaneceu um objeto de consumo caro, salvo exceções. Na conta pragmática do comer ou se instruir, muitos não têm dúvida e passam a régua nas necessidades do espírito em nome da sobrevivência do coletivo familiar. Dramática escolha esta!

Por isso, foi com imensa alegria que, mesmo à distância, tomei contato com a legislação brasileira (Lei Federal 12.244, de 24 de maio de 2010), que estabeleceu recentemente a criação de bibliotecas nas escolas públicas e privadas no país:

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que determina a instalação de bibliotecas em todas as instituições de ensino do país, incluindo públicas e privadas. De acordo com o texto, publicado no "Diário Oficial" da União nesta terça-feira (25), cada biblioteca deve ter, no mínimo, um título para cada aluno matriculado.

A organização, a manutenção e o funcionamento desses novos espaços devem ser definidos pelas instituições.

Ainda segundo a publicação oficial, as bibliotecas escolares devem contar com "coleção de livros, materiais videográficos e documentos registrados em qualquer suporte destinados a consulta, pesquisa, estudo ou leitura". O prazo máximo para a instalação dessas bibliotecas é de dez anos.

(Fonte: http://www.reporternews.com.br/noticia.php?cod=283615)

Sempre haverá os que enxergarão nessa medida algo arbitrário, imposto do alto, mas a difusão da cultura é uma responsabilidade pública. Mesmo se admiramos a experiência dos Pontos de Cultura, iniciativa nacional-popular desenvolvida pelo MinC, ainda sob os auspícios do ministro-cantor Gilberto Gil, entendemos que a cultura é algo que não se negocia única e exclusivamente pelas bordas. Deve ser uma política governamental, ou melhor, uma política pública, que ultrapasse os humores e preferências apenas de uma sigla partidária, donde a importância dessa lei que universaliza o acesso das crianças ao livro.

                               Fonte: Google  

Desse modo, crianças como a que eu fui nos anos 70 e a personagem de Clarice Lispector do conto « Felicidade Clandestina » [disponível para a leitura no final dessa matéria], ambas no Nordeste brasileiro, que precisavam contar com a boa vontade e generosidade da vizinhança e dos caprichos dos amigos para conseguir ler um livro que nos suscitava o interesse, vão poder desfrutar doravante do acesso democrático às bibliotecas escolares.


Cultura viva: o livro e a educação infantil na França

                        Escola Maternal em Paris - Foto: Mione Sales

Escrevo de um país que, apesar de todas as mistificações simbólicas, políticas e culturais acalentadas por brasileiros e estrangeiros do mundo todo, atravessa uma grande crise social e econômica, o que vem impondo sacrifícios paulatinamente à cultura. No entanto, uma França que foi construída sob os auspícios do modelo republicano e democrático ainda resiste e se encontra de pé. Hoje o incremento dessa ou daquela política tem contado muito com os administradores, diretores de escola e professores, que ainda acreditam num ideal igualitário. O investimento nas escolas e na qualidade do ensino tem ficado assim ao sabor das magras finanças da Educação Nacional e da dedicação deste ou daquele funcionário mais comprometido com o projeto da nação e patrimônio cultural franceses.

São investimentos interligados, pois requerem espaço físico, arquitetura, pessoal especializado, livros e, como tal, o incentivo à produção editorial, o que aquece um mercado historicamente em crise, não obstante a capacidade de leitura ainda acima da média dos franceses. Aproveito, assim, o ensejo para juntar as pontas dessa conversa sobre biblioteca com a da educação infantil e ensino da cultura. Os escritores franceses, vale dizer, são difundidos desde o maternal. Lê-se e trabalha-se La Fontaine com as crianças, cultivando precocemente a memorização (exercício que vai contribuir lá na frente para os que seguirem a carreira de atores). E como este, também os poetas que emprestaram sua pluma aos poemas para a infância, à maneira de Jacques Prévert et Robert Desnos. Respeita-se o limite da idade da criança, bem entendido, mas nunca com um sinal de menos. A criança é elevada em suas capacidades múltiplas, sendo estimulada a valorizar o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas e a literatura, a partir dos três anos de idade.

Os professores produzem projetos e correm atrás de financiamento para realizar exposições ou pequenas viagens ou passeios com os alunos. Trata-se, portanto, de um sistema de mão dupla, em que o Estado dá e estabelece parâmetros, mas também os profissionais da educação propõem contrapartidas, ajudando a esculpir a qualidade, segundo uma determinada concepção de ensino.

                      Imagem de divulgação

Os pais também participam da vida escolar. Há associações de pais, inclusive. Fui durante três anos « parent délégué ». No caso específico dos livros, eventualmente, há pais que são ilustradores ou autores de livros para crianças e eles são convidados a socializar isso com os pequenos. A minha filha, que convive com livros desde sempre, ficou orgulhosa de ter conhecido na escola, por exemplo, uma ilustradora de obras de literatura infantil. A turma produziu, com o apoio dela e da professora, um interessante jornalzinho – lançado e exposto numa associação afim do bairro -, em que cada criança participou das ilustrações: comunicação e imagem juntas! Ou seja, o livro deixa de ser um objeto distante e inacessível e as crianças são estimuladas a desvendar os segredos do seu ofício.

Minha filha, que tem sete anos, acabou de concluir a alfabetização (CP/cours primaire). Estudou em sala de aula três livros de literatura para criança ao longo do ano. Além de irem avançando na leitura e escrita propriamente ditas, as crianças são convidadas desde cedo a interpretarem a compreensão do texto e a escreverem seus próprios livros em equipe. Reescrevem um livro que trabalharam segundo a sua própria imaginação. Além disso, são estimulados a realizarem a cada página do livro uma ilustração. Dão, assim, a sua versão pictórica pessoal para cada trecho da história. Talentos vão se revelando e sendo incentivados desde cedo, e a cultura vai sendo apropriada como algo fundamental.

                               Fonte: Mione Sales       

O mais bonito nessa história toda é que isso não se passa numa escola apenas para os filhos da elite, mas numa escola pública ainda de qualidade, mesmo que a sofrer os duros golpes do neoliberalismo. Os filhos de imigrantes, mais os das famílias em situação difícil (inclusive, famílias sem domicílio fixo, homeless ou sem-teto) e demais crianças francesas, todos frequentam a mesma escola. [Infelizmente, começa pouco a pouco haver uma migração de crianças das classes média e alta para escolas privadas, fruto do sucateamento do ensino público. Lá onde a qualidade baixa, inevitavelmente inicia-se um discreto e progressivo processo de « debandada » dos alunos e suas famílias, complexificando e piorando o processo de integração cultural dos estrangeiros e oriundos das antigas colônias francesas]. Há crianças negras, brancas (francesas e europeias, em geral), árabes e asi¬áticas, a compartilharem as mesmas descobertas da matemática, da leitura, das artes plásticas, da música, do esporte e do mundo.

Tanto na escola pública maternal quanto na na escola primária, há bibliotecas, pequenas, mas suficientemente abastecidas com livros, franceses e outros traduzidos dos mais diversos continentes e culturas. Os professores constroem uma agenda de frequência semanal à biblioteca, com o apoio de « animadores » (profissionais pagos pela Prefeitura, regularmente presentes no cotidiano da vida escolar), que partilham deveres e tarefas com os profissionais da Educação Nacional (professores pagos pelo governo federal). No último ano do maternal, às sexta-feiras cada criança levava para casa um livro que deveria devolver na segunda-feira. Essa é uma ocasião para que a família invista numa leitura em conjunto ou acompanhe a criança ao dormir. Algumas famílias, todavia, não são alfabetizadas em francês, o que impede a fruição coletiva, mas certamente esta é uma política de investimento simbólico no conteúdo e na forma do livro, como um bem comum.

As bibliotecas públicas municipais merecem um capítulo especial. Posteriormente, posso dividir com vocês, blogleitores, mais essa experiência cultural no velho continente.

Pelo direito das crianças brasileiras e do resto do mundo deixarem de ser « bookless » ou “sem-livros”! Todo apoio à universalização das bibliotecas nas instituições de ensino públicas e privadas do País.
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Mione Sales – doutora em Sociologia e professora adjunto da Faculdade de Serviço Social da Uerj. Contato: mioneecia@hotmail.com

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Para ler

Felicidade clandestina

              Fontes: Google

Clarice Lispector


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Ás vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. ***

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Para navegar


http://bsf.org.br/2010/05/25/lei-n%C2%BA-12-244-dispoe-sobre-a-universalizacao-das-bibliotecas-nas-instituicoes-de-ensino-do-pais/

http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI4465487-EI8266,00-Pais+tera+de+criar+bibliotecas+por+dia+para+cumprir+nova+lei.html

http://www.letramento.iel.unicamp.br/portal/?p=1360
http://www.revistabrasileiros.com.br/secoes/balaio-do-kotscho/noticias/1174/

http://www.todospelaeducacao.org.br/

Para ver

http://www.youtube.com/watch?v=W-bbWFTYZkM

[Entrevistas com administradores e profissionais da educação sobre a nova medida]

http://www.youtube.com/watch?v=F5v3lcnoofY&NR=1

(projeto Mar de Letras no Maranhão e outras experiências nas capitais brasileiras)

http://www.youtube.com/watch?v=cC7i98SXGpY&feature=related

[filme Nunca te vi sempre te amei (1987), com Anne Bancroft e Anthony Hopkins, para quem ama livros & cartas]

http://www.youtube.com/watch?v=0sEblPq5iU8

[Filme O nome da Rosa, uma história de mistério na biblioteca]

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Para descobrir

http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok

(Entrevista com Clarice Lispector)

http://www.armelleboy.com/noiretblanc/index.php?gLangue=fr

(ilustradora francesa citada no texto)

terça-feira, 6 de julho de 2010

Editoria Caleidoscópio Baiano

O MAJOR E OS ANALFABETOS


Cláudia Correia*


O falecimento do Major Cosme de Farias completou em março 36 anos. Nascido no subúrbio de São Tomé de Paripe, em Salvador, em 1875, foi um personagem marcante na cena política baiana atuando como advogado provisionado ( rábula), jornalista, vereador e deputado estadual. A sua biografia está brilhantemente registrada no livro “Cosme de Farias”, lançado em 2007 pela Editora da Assembléia Legislativa, a partir da criteriosa pesquisa da jornalista e Mestre em História Social pela UFBa, Mônica Celestino.

Lembro que fui, quando criança, a um desfile do cortejo do 2 de julho, acompanhada da saudosa “Tia Zilah”, Zilah Moreira, jornalista falecida recentemente, para cumprimentar aquela figura frágil e carismática, adorada pelo povo pobre de Salvador, que se comprimia nas ruas do velho centro para chegar perto dele, sempre impecável no seu terno e chapéu. Dois de julho é feriado na Bahia, data histórica que marca as lutas pela Independência do país do domínio português que se estenderam até Cachoeira, no recôncavo baiano.

Hoje fui andar na praça do Campo Grande com meu filho, onde após o cortejo pelas ruas do centro histórico de Salvador, ficam expostas as imagens do caboclo e da cabocla, símbolos dos heróis do 2 de julho. É interessante perceber que eles são reverenciados tanto pela simbologia com os ideais nacionalistas como pela devoção. Muitos visitantes levam presentes, flores, perfumes, pedidos em bilhetes e rezam ao pé das imagens em tamanho natural, fixadas em uma espécie de andor ornamentado.

Voltando ao nosso personagem: com apenas o curso primário, Cosme de Farias, patenteado Major pela Guarda Nacional em 1909, dedicou-se a diversas ações sociais desde 1892 e fundou em 1915 a Liga Baiana contra o Analfabetismo(LBA). O Major também teve ativa participação no Liceu de Artes e Ofícios, que voltava-se para a capacitação profissional de escravos livres e seus descendentes. A LBA congregou cerca de 200 escolas públicas de ensino primário e implementou medidas que alfabetizaram mais de 10 mil pessoas editando até 1972, dois milhões de cartilhas de ABC. Considerando os parcos recursos da época, tais resultados certamente matam de inveja os gestores públicos atuais, empenhados na execução de programas nas três esferas governamentais, como o “Brasil Alfabetizado”, “TOPA- Todos pela Alfabetização” e “ Salvador Cidade das Letras”. Num país onde a Educação foi esquecida, esse é um desafio grandioso!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Editoria Web@Tecno

Novidades na Comunicação Social em livros lançados na Compós 2010

                                          Foto: Google

A PUC-Rio sediou de 08 a 11 de junho a Compós 2010. O 19º Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação aconteceu no Rio de Janeiro após dezoito anos*.

Na noite de abertura do evento, oito de junho, foram lançados 38 títulos que trazem novidades nas pesquisas em Comunicação Social, tais como novas mídias, consumo e interatividade. O jornalismo contemporâneo e jornalismo online são os temas mais recorrentes nas publicações.

O Coquetel de lançamento reuniu cerca de 300 autores, professores, estudantes e convidados no Salão da Pastoral Anchieta. Pesquisas e ideias foram compartilhadas na ocasião, trazendo uma novidade, que chamou a atenção para novas plataformas de comunicação: o lançamento pela primeira vez na Compós, de cinco e-books, com estudos na área; e de um DVD, no qual o professor Erick Felinto, da Uerj, apresenta uma coletânea de entrevistas com o filósofo tcheco Vilém Flusser. Conforme o organizador do evento, professor Leonel Azevedo Aguiar, coordenador de jornalismo da PUC-Rio, todos os livros trazem “temas recorrentes da atualidade”. Ressalta ainda que pesquisas que “acabaram de sair da academia” estão presentes nas obras.


                                            Foto: Mauro Pimentel

Um desses exemplos é Avatar – O futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (Editora Sulina, 119 páginas) assinado também por Felinto, em parceria com a professora Ivana Bentes, da UFRJ. A idéia do livro nasceu de uma conversa pelo Twitter entre pesquisadores da área de comunicação a partir das primeiras impressões sobre o filme Avatar, de James Cameron. Segundo o autor, a proposta era vencer as resistências da crítica e da teoria da cultura midiática, “que tende a olhar as produções hollywoodianas como apenas mais uma”. Segundo o autor a idéia era propor “novas maneiras de encarar”e de “pensar a forma de consumo” dessas produções.