sábado, 23 de janeiro de 2010

Dossiê Especial Haiti



    
              (...) O frio soluçante e amargura
Envolve o coração num fundo luto.
(…) A alma por mais feliz e por mais pura
Tem de sofrer o esmagamento bruto.
(…) Em tudo derramar o amor profundo,
Derramar o perdão no caos do mundo,
Sorrir ao céu e bendizer o Inferno!

“Fruto envelhecido”. Cruz e Sousa


Dois fatos recentes indignaram profundamente os brasileiros e merecem nossa análise aqui pela tematização da questão social e vínculo explícito com a esfera pública midiática nacional, em particular a TV: um deles refere-se ao caso dos garis paulistas filmados pela Band, para o programa de telejornal de final do ano (31/12/2009) do jornalista Boris Casoy; e o outro fez parte de uma crônica televisiva sobre o Haiti (13/01/2010), da autoria de Arnaldo Jabor.


Catástrofes da natureza, religião e «alteridade»:
LIÇÕES HUMANAS TIRADAS DOS ESCOMBROS DO HAITI



2010 fez sua entrada em cena com arroubo quase apocalíptico. A última vez que um ano chegou com essa força e fúria da natureza foi em 2005 com o Tsunami na Ásia. Angra dos Reis e Haiti, nesse começo de ano, viram-se, assim, não obstante a distância geográfica que os separa, latinamente irmanados pela tragédia natural, a qual deixa entrever também sob a lama mãos e decisões humanas. Se fosse apenas uma questão de deuses, como no Olimpo, em que os mortais achavam-se submetidos aos humores e gestos punitivos de Zeus, entenderíamos.

Não temos, aliás, problema algum em admitir a fé e respeitar os ritos haitianos, brasileiros, africanos ou de qualquer credo. Não dá, por outro lado, para isolar tais escolhas e práticas numa redoma de vidro, circunscrevendo-as apenas à esfera da metafísica e do irracional. A religião e outras manifestações confessionais acham-se embebidas de história e nela puseram também os seus vincos, integrando hoje inclusive o epicentro das guerras contemporâneas. Por isso, enganam-se aqueles que querem soterrar o tema como um mero tabu ou algo estritamente primitivo.

É verdade, no entanto, que, ao lado da vivência do direito à fé, historicamente tem brotado a flor da intolerância religiosa, o que somente mostra quão « infantis » - ou pouco « evoluídos », para usar uma terminologia espiritualista – são os seres humanos, com seu egoísmo genuíno, incapaz de lidar com as diferenças. Os apegos confessionalistas excessivos de uns e de outros, muitas vezes mutuamente excludentes, constituem talvez respostas atávicas. Quer dizer, são formas milenares de resistência interpessoal e intergrupal, em constituir laços externos e públicos. Fazem lembrar - antropologicamente falando -, de nossas experiências e memórias do tempo ainda dos clãs, quando predominava o isolamento dos indivíduos ligados apenas pelo parentesco consanguíneo, de maneira a se protegerem do exótico e do não familiar.

O desafio da sobrevivência no presente reclama, porém, não o fechamento cultural, econômico ou egoístico-passional em guetos e corporações. Os problemas e suas soluções revelam-se, inclusive, crescentemente mundiais, mesmo que percamos oportunidades raras e privilegiadas, como a que acabou de ocorrer na Conferência de Copenhague (dezembro/2009). Talvez seja essa a valiosa « lição » tirada dos escombros do Haiti, lição cuja importância consiste para os governantes e o conjunto dos habitantes do planeta Terra em: 1) dar-se conta das necessidades do Outro que dispõe de menos, transpondo os abismos políticos e econômicos que nos separam ; 2) aprender a respeitar o Outro, independente da sua cor e credo; 3) bem como reconhecer a exigência imperiosa, sempre que possível, de se antecipar às catástrofes da natureza. Os homens, muitas vezes, contudo, só cedem ante a evidência do fato consumado. Dolorosa é assim mais essa lição socio-ambiental. No caso do povo do Haiti, faz-nos pensar no poeta negro catarinense Cruz e Sousa, ao falar em “quanto magoado sentimento eterno.”!
                                          
Tirando o lixo debaixo do tapete:      
QUESTÃO SOCIAL E COBERTURA JORNALÍSTICA

A primeira vista, pareceria fácil suplantar tais problemas, não fossem todos esses acontecimentos colocarem em destaque o que clama e arde, aqui e alhures, como necessidade ética de superação individual e coletiva que corrobore para o crescimento axiológico do humano. Inclua-se aqui principalmente exigências políticas, simbólicas, culturais e intersubjetivas relativas ao desafio do exercício da alteridade.

Bem perto de nós, um deslize técnico permitiu, por exemplo, que o jornalista Boris Casoy – âncora do Jornal da Band - cometesse um « ato falho » em cadeia nacional, ao ser flagrado pelo sistema de audio da Rede Bandeirantes de Televisão, no momento em desmascarava a sua preferência por valores elitistas, o que foi retransmitido ao vivo para todo o Brasil. Assim, no limiar do novo ano, preconceitos encardidos e bastante « demodês » tombaram no colo do telespectador, revelando a hipocrisia midiática daquele telejornal, em seu suposto anseio de confraternização, pela via da saudação do público por trabalhadores e homens simples.

Como vimos, a questão social tem pulsado intensamente no coração do presente, saindo, no entanto, avariada em distintas situações, em gradações diversas, por coberturas jornalísticas pouco sensíveis. Mais que isso, a insensibilidade e a crueza têm, nos episódios referidos, dado a tônica, revelando um significativo hiato entre os que dizem e os que leem, entre os que sofrem e os que relatam, entre os que vivem e trabalham e aqueles que debocham ou desqualificam.

Sobre a polêmica envolvendo o comentário de Casoy acerca dos garis paulistas, pergunta-se: quem saudou mais adequadamente o público? Os bravos homens « do alto de suas vassouras » – os quais foram ironizados pelo locutor por seu « delito de dignidade », para empregar a bela metáfora de Eduardo Galeano (em clássico texto sobre o Haiti socializado por nosso blog) – ou o culto e engravatado homem de paletó à frente do microfone? Aqueles saudaram o povo brasileiro com a alma aberta e plenos de esperança, ainda que com seus sorrisos imperfeitos; já o jornalista da Band jactou, inadvertidamente, seu cinismo, hipocrisia e indiferença pelos trabalhadores e homens simples: ou seja, contra quase todos os que habitam do outro lado da telinha, milhões de brasileiros que também consomem. Por isso a pressa no dia seguinte em se redimir frente à audiência: « Ôps, ato falho! Mil desculpas meus tele-consumidores, envassourados ou não! ».

Um psicólogo social, Fernando Braga da Costa, já havia demonstrado, em 2002, na sua dissertação de mestrado para a Universidade de São Paulo/USP – “Garis: um estudo de psicologia sobre a invisibilidade pública” -, o drama dos lixeiros, tendo se disfarçado ele mesmo por oito anos como gari. Ele conta que tão logo, vestia, no campus da USP, o uniforme de gari, para os fins da sua pesquisa, ninguém mais o reconhecia ou lhe dirigia a palavra, pois ele se tornava imediatamente invisível socialmente. Um muro transparente esculpido pelo silêncio estabelecia a barreira social.

Agora cada vez mais atenta, com pressa ou não, sempre dou bom dia aos garis, brasileiros, parisienses ou outros. É verdade que muitos deles se surpreendem, condicionados que estão, pela divisão social do trabalho, à solidão de varrer as ruas e expostos a uma situação profissional liminar, pelo contato com o « lixo humano ». Muitos homens e mulheres, como se sabe, confundem seus lixos psíquicos e excrementos - que tanto inspiraram Freud em suas leituras psicanalíticas - com aqueles que deles se ocupam, desprezando-os igualmente. Constata-se, assim, nova confusão quanto ao « delito da dignidade »: ao invés da gratidão pelos que nos emprestam suas mãos e pás para limpar as sujidades que praticamos vida a fora, renegamo-os, ocultamo-os, soterramo-os sob os escombros de nossa humanidade, produtora de tantos supérfluos, e até por isso mesmo sombria e infeliz.

Retórica « bárbara » – TARDIA E DEMAIS

« Tout s’est effondré. On a seulement gardé
le désordre de la nature, sa folie*. »
Marguerite Duras


Depois da efêmera aparição dos ditos garis paulistas na TV em preciosos segundos, para eles, de visibilidade social, mergulhamos alguns dias depois na densa presença física, colorida e mortal dos haitianos. Depois dos fortes estragos provocados pelo terremoto do dia 12 de janeiro, não seria jamais possível esconder embaixo do tapete tão imenso quebra-cabeça geopolítico e humano, agora desfeito. Não haveria também como renegar indefinidamente as feridas narcísicas de muitos pela frustração que consiste no fato do mundo não ser rico, saudável e poderoso à imagem e semelhança – mas mera dissimulação - da deusa « Fama », que tantos almejam e acreditam ser a verdadeira fonte de beleza e vida.

Os haitianos - que professam uma fé ou não, mas sempre cercados de arte e música - não se resumem ao impasse em que ora se encontram, isto é, « a pau e pedra e a um fim de caminho », como cantava Tom Jobim. Sob as pedras e lamas que deslizaram das encostas de Angra e que também se acham sob os edifícios e concretos abalados pelo terremoto haitiano, nunca é demais repetir: tem gente. Pessoas. Homens, mulheres e criancinhas como qualquer um de nós.

Todavia, no meio da verborragia jornalística gasta nas mais diversas tentativas de explicar o drama da miséria no Haiti, açoitado implacavelmente pela história e pela mãe Natureza, em nefasto gesto divino recente, recorreu-se também à referência a sua condição de « bárbaros ». O termo serviu de inspiração, por exemplo, a Arnaldo Jabor, em mais uma de suas tonitruantes crônicas televisivas, em 13 de janeiro, na Globo. Como é sabido, na hora do crime, muitos o explicam pelas imprudências da vítima. Nesse caso, pela suas supostas imperfeições « tribais africanas ».

Se pensarmos bem, podemos dizer que, com tantos crimes cometidos pela « Razão » no último século e meio – a lista é grande e técnicamente ultramoderna e sofisticada -, chega quase a ser uma vantagem integrar o rol dos bárbaros, que estariam livres assim, pelo menos, para sermos sucintos, do « mea-culpa » concernente aos premeditados, embora distintos, crimes de Auschwitz e Hiroshima e Nagasaki.

Etimologicamente, o que vem a ser « bárbaro »? Esse termo, um qualificativo ligado à barbárie, nasce com os gregos, em referência aos estrangeiros e todos aqueles que não compartilhavam dos seus costumes, credos e valores. Tem originalmente conotação pejorativa, porque assinalava ora o desprezo ora o medo do Outro. « Bárbaros », portanto, eram os não-civilizados, porque também pagãos e não educados, segundo os parâmetros oficiais e religiosos da civilização grega. Numa acepção mais ampla, é associado aos « selvagens », logo àqueles passíveis de cometer atos de violência, porque não submetidos às regras da sociabilidade. Contudo, como vimos, os massacres praticados no contexto das guerras econômicas e religiosas nos séculos XX e XXI, mesmo no campo dos ditos « civilizados », denunciam quão relativo é esse conceito. Não podemos fugir à tentativa de explicação histórica e social, mas não devemos também, por outro lado, impor nossa mordacidade racional para sufocar ou exacerbar diferenças culturais bastante complexas.

Há muitos temas e experiências humanas, pois, que pertencem ao campo de reflexão da ética e da cultura, e mais amiúde ao da subjetividade individual e coletiva, não cabendo seguramente em moldes formais ou naturalistas. Precisamos todos, assim, exercer a crítica e o pensamento, mas sem nos deixarmos limitar por castradores e limitantes ângulos de análise, cujo produto se assemelha a uma pequena fotografia 3x4 que pouco revela da identidade de fato de uma pessoa ou de um povo. O humano desborda « todas as sacadas e lógicas », como falava o poeta Fernando Pessoa. Seus ódios, medos e violências, em múltiplas manifestações, nos concernem e desafiam a todos. Não são patrimônio de nenhum povo ou etnia em particular.

Deixemos de lado, portanto, as explicações simplificadoras que reduzem certos contextos e grupamentos humanos a meras hordas vândalas e famintas, e visualizemos as lições que homens e mulheres humildes, porém cheios de dignidade, dos mais diversos pontos do globo nos ensinam com a beleza dos seus corpos reais, a pulsarem de sede de expressão e vontade de vida.

A mundialização, paradoxalmente, permitiu que o problema de um país distante seja considerado quase como o drama familiar de um vizinho da casa ao lado. Sacudamos, pois, a inércia e prontifiquemo-nos a acudir o próximo! Por isso, sem medo nem preconceito político ou intelectual, cabe pedir, como o fizeram profeticamente os poetas Gil e Caetano: “Pense no Haiti, reze pelo Haiti”.
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Pequeno glossário

Axiológico – diz respeito aos valores; no caso, ao incremento de características e atitudes humanas que primem, dentre outros, pela consciência, liberdade e alteridade.

Alteridade – termo concernente à relação interpessoal ou coletiva com o Outro, consequentemente pressupõe a atenção e o respeito às diferenças, de gênero, de raça/ etnia, religião, orientação sexual, etc.

Atávico - refere-se ao comportamento que imita ou mantém costumes ou formas de vida próprias a outras épocas; ou ainda à característica hereditária que procede de antepassados longínquos.

Liminar – condição fronteiriça, que remete à passagem de uma categoria social a outra, em geral associada a riscos e perdas.

Deusa « Fama » - conforme Eneida de Virgílio : "Imediatamente a Fama vai pelas grandes cidades da Líbia. A Fama – e nenhum outro mal é mais veloz que esse – tem grande mobilidade e caminhando adquire forças. Inicialmente pequena em razão do medo, eleva-se rapidamente nos ares, anda no solo e esconde a cabeça nas nuvens" [...] "É um monstro horrendo, enorme, que tem tantas plumas no corpo quanto olhos vigilantes sob elas, coisa incrível, tantas línguas quanto bocas que falam, quanto ouvidos que se põem atentos" (IV, 173-176; 181-183).

Tonitruante – termo proveniente que quer dizer : « exprimir-se com voz potente », qual um trovão ; « trovejar », ou seja, falar ou cantar com enorme barulho.


Tradução

[* Poema em francês - « Tudo ruiu. Restou apenas a desordem da natureza, sua loucura »]


 Conferir:

http://www.youtube.com/watch?v=0H9znNpeFao
http://www.youtube.com/watch?v=0e4boULzkEk
http://www.youtube.com/watch?v=ApqXyzRcIXk



Mione Sales, mestre em Serviço Social, doutora em Sociologia, profª da FSS/UERJ. Contato: mionesales@gmail.com

2 comentários:

  1. Sobre a condição social dos garis, menos mal quando se pode tirar o "uniforme de gari" e deixar de ser objeto de repulsa, o problema é quando o próprio escalpo que temos que carregar por toda existência é motivo de desprezo. Não há como trocar de pele.
    Um abraço.

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  2. Bom dia Humberto e obrigada pela sua opinião. Concordo inteiramente. Venho trabalhando hà anos, por meio da minha profissão, o Serviço Social, na trincheira do combate ao preconceito e às desigualdades sociais. Se houve reconhecidos avanços na sociedade brasileira, temos, contudo, em pleno século XXI um "elitismo colonialista" ainda profundo... Duro de extirpar... Não podemos, porém, deixar de denunciar e nos opor a ele. A minha, a sua, a nossa opinião (do Blog) são muito importantes nessa frente. Um grande abraço, Mione*

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