Começa hoje a série “Dossiê Especial Haiti”. A Equipe do Mídia e Questão Social trará fatos e reflexões sobre a história política recente do povo haitiano e as várias expressões das questões sociais que assolam o país.
Doze de janeiro marca o século XXI. A história mundial terá essa página de sofrimento alargada, porém, nunca na proporção vivenciada por uma nação desconstruída há séculos pelas mãos e interesses dos homens, o Haiti.
Parece que a natureza desperta, depois de 200 anos e faz de sua força um fato concreto de dor, perdas e desespero. Esse despertar embora tenha sua origem, geologicamente falando, suas conseqüências se agravam pelos descuidos dos Estados-Nações com o meio ambiente. Tivemos Tsunamis na Tailândia no final de 2004, uma enorme catástrofe, mas não nas proporções do terremoto no Haiti, essa ilha hispaniola, situada no Caribe, locais de muitos fenômenos naturais, os quais em 2008 deixaram cerca de mil mortos e mais de 800 mil desabrigados. Nessa tragédia não se tem uma estimativa precisa de quantos mortos, num país de 9 milhões de habitantes, cuja 80% de sua população vive abaixo da linha da pobreza o que corresponde a UU$2 (o equivalente a R$4,00) por dia. Presume-se que o número de mortos esteja próximo a mais de 100 mil, o que pode significar mais de 1% de seus habitantes, na faixa etária entre 15 a 64 anos, o que corresponde a 58,5 % de sua população.
Partilhamos essa dor com o sofrido povo haitiano e também com os brasileiros mortos nessa tragédia.
Leiam o texto abaixo de Eduardo Galeano, publicado em 15 de janeiro no site Cuba em Debate, e que faz uma análise sobre a recente história sócio-política e econômica do Haiti. Galeano escreveu-o em 26 de julho de 1996. Pode-se constatar que a realidade expressa nele, corresponde aos dias atuais do Haiti.
Um abraço,
A Equipe do Blog Mídia e Questão Social
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OS PECADOS DO HAITI
Fotos antes e depois, do Palácio do governo haitiano, em Porto Príncipe. (reprodução Google)
Publicado em 15 de Janeiro de 2010 por Eduardo Galeano
(tradução livre de Antonio Folquito Verona)
A democracia haitiana nasceu há muito pouco. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e enferma não recebeu nada, além de bofetadas. Estava ainda recém nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de terem colocado e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos pegaram e impuseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que havia tido a louca aspiração de querer um país menos injusto.
O voto e o veto
Para apagar as nódoas da participação norte-americana na ditadura carniceira do general Cedras, os infantes de marinha levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para retomar o governo, mas o proibiram exercer o poder. Seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, porém mais poder que Préval tem qualquer burocrata de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha sequer eleito com um voto apenas.
Mais que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum de seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, instrução aos analfabetos o terra aos camponeses, não recebe resposta, ou o contradizem ordenando-lhe: - Faça a lição! E como o governo haitiano nunca aprende que deve desmantelar os poucos serviços públicos que ainda permanecem, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores acabam sempre por reprová-lo.
O álibi demográfico
No final do ano passado quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Assim que chegaram, a miséria do povo os atingiu frontalmente. Então o embaixador de Alemanha lhes explicou, em Porto Príncipe, qual é o problema: - Este é um país demasiadamente povoado - disse-. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.
E riu. Os deputados se calaram. Essa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou as cifras. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, tanto quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilometro quadrado. Em sua passagem pelo Haiti, o deputado Wolf não apenas foi atingido pela miséria: também ficou deslumbrado pela capacidade de expressar a beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado… de artistas.
Na realidade, o álibi demográfico é mais o menos recente. Até a alguns anos, as potências ocidentais falaram bem mais claro.
A tradição racista
Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando alcançaram seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e revogar o artigo constitucional que proibia a venda de terras aos estrangeiros. Robert Lansing, então secretário de Estado, justificou a prolongada e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de se governar por si mesma, que possui “uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização”. Uno dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia elaborado anteriormente a sagaz idéia: “Esse é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que tinham deixado os franceses”.
O Haiti havia sido a pérola da corona, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com força de trabalho escrava. No espírito das leis, Montesquieu o havia explicado sem travas na língua: “O açúcar seria demasiado caro se não trabalhassem os escravos para sua produção. Esses escravos são negros desde os pés até a cabeça e têm o nariz tão esmagado que é quase impossível ter deles alguma pena. Resulta impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma e sobretudo uma alma boa num corpo inteiramente negro”.
Em troca, Deus havia colocado um chicote na mão do feitor. Os escravos não se distinguiam por sua vontade de trabalho. Os negros eram escravos por natureza e vadios também por natureza; e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir ao amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrasse o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: “Vagabundo, desocupado, negligente, indolente e de costumes dissolutos”. Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro “pode desenvolver certas habilidades humanas, como o papagaio que fala algumas palavras”.
A humilhação imperdoável
Em 1803, os negros do Haiti ocasionaram uma tremenda derrota às tropas de Napoleão Bonaparte e Europa não perdoou jamais essa humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes sua própria independência, porém conservava ainda meio milhão de escravos trabalhando nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era senhor de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.
A bandeira dos livres se içou sobre as ruínas. A terra haitiana havia sido devastada pele monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França. Uma terça parte da população havia caído em combate. Então, começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava dela, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.
O delito da dignidade
Nem mesmo Simão Bolívar, que soube ser tão valente, teve a coragem de assinar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar poderia ter reiniciado sua luta pela independência americana, quando já havia derrotado a Espanha, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano lhe havia entregado sete navios, muitas armas e soldados, com a única condição que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que ao Libertador não lhe passava pela cabeça. Bolívar cumpriu com esse compromisso, porém depois de sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvado. E quando convocou as nações americanas para a reunião do Panamá, não convidou o Haiti, mas sim a Inglaterra.
Os Estados Unidos reconheceram o Haiti depois de sessenta anos do final da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque possuem pouca distância entre o umbigo e o pênis. Naquele instante, o Haiti já estava nas mãos de carniceiras ditaduras militares, que destinavam os famélicos recursos do país para pagar a dívida com ex-metrópole: a Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à Francia una indenização gigantesca, como modo de ver-se perdoado por ter cometido o delito da dignidade.
A história do assédio contra o Haiti, que em nossos dias tem dimensões de tragédia, é também una história do racismo na civilização ocidental.
Fonte: http://www.cubadebate.cu/opinion/2010/01/15/los-pecados-de-haiti/
Gostaria apenas de comentar que acredito que o desleixo mundial com o meio ambiente não tem nenhum relacionamento de qualquer espécie com o que aconteceu no Haiti, com a Tsunami asiática e, talvez, com a tragédia em Angra.
ResponderExcluirDe forma alguma eu lamento o ocorrido por lá, salvo pelo fato de que vidas foram interrompidas. Lamento que fica é o mesmo lamento que tenho quando vejo a mãe sem ter o que dar de comer a seus filhos em qualquer parte do mundo.
O que vejo bem nessa questão e que serviu para desviar, ao menos momentaneamente, o foco da responsabilidade que as nações tem em muitos outros parágrafos da história mundial. A exemplo do tão falado aquecimento global, ou da própria situação miserável em que o Haiti já vivia antes da tragédia, ou a má gestão de governos ditatoriais por ai a fora em relação a VIDAS HUMANAS...
O ocorrido com o Haiti foi realmente lamentável, mas o que temos visto na vida em relação ao cuidado que se tem de pessoa com pessoa e para pessoa é deplorável e vergonhoso.