Mione Sales*
Louise Bourgeois, junto à sua escultura Eye to Eye / Olho no olho
A escultora Louise Joséphine Bourgeois morreu, aos 98 anos, nesta última segunda feira (31/05), nos Estados Unidos, vítima de um ataque cardíaco. Esta é, sem dúvida, uma grande perda para a humanidade, mas como já virou eterna, o diálogo com ela não se interrompe. O conjunto da sua obra, vista como colossal, inquietante e bela pelos franceses, continuará a ecoar por si mesmo.
A editoria Volta do Mundo dedicou a essa maravilhosa artista uma matéria em março deste ano, em reverência singular ao mês das mulheres. Cabe revisitar essa leitura http://midiaequestaosocial.blogspot.com/2010/03/editoria-volta-do-mundo-mundo-da-volta.html], porque ela oferece um balanço mais completo do projeto bourgeoisiano. Aqui, nessa homenagem póstuma, vamos priorizar elementos novos apreendidos no documentário « Louise Bourgeois » (França, 1993), um filme de Camille Guichard, produzido pela Arte télévision.
Não cessamos, portanto, de (re)descobri-la. Mesmo se a arte não tem compromisso direto com a explicação das motivações do artista, é admirável que a sua tenha sentidos humanos quase que palpáveis, donde a sua tocante e brutal universalidade.
Quanto magoado sentimento eterno *
« La souffrance est le sujet qui m’occupe.
Donner sens et forme à la frustration et à la souffrance.
Ce qui arrive à mon corps doit se traduire dans une forme abstraite.
(…) L’existence des souffrances ne peut être mise en doute.
Je ne propose ni remèdes ni excuses.
Je veux simplement les considérer et en parler.
Je sais que je ne peux rien faire pour les éliminer ou les supprimer.
Je ne peux pas les faire disparaître ; elles resteront là. »**
LOUISE BOURGEOIS
A destruição do pai
As criações de Louise Bourgeois não se separam da sua experiência como mulher, filha e estrangeira. Elas estão pregadas como máscaras na sua cara, diria Clarice Lispector. O documentário em questão centrado em entrevistas com Louise, na época com 82 anos, flagra, entre perguntas e respostas, instantes de uma dor pungente numa velha senhora. São dores antigas. Dores de menina. Do tempo em que seu pai caçoava dela à mesa de jantar. Ele dizia lamentar que ela tivesse nascido e fosse apenas puro acidente.
O pai ocupa uma parte significativa da inspiração criativa, contorcida e dolorida, de Bourgeois, o que já tivemos oportunidade de comentar em março, mas neste documentário ela penetra no testemunho da crueldade que representava para ela esses momentos de zombaria paterna. Algo do passado, segundo ela, persiste sempre como fantasma do qual é difícil se desembaraçar. O passado precisa ser visto, recriado e superado, embora seja muito difícil, admite.
Se o pai tinha o direito de a demolir, ela, por sua vez, reivindicou o mesmo para (des)contruí-lo esteticamente e dar vazão a esculturas de « destruição do pai ». Não se trata de pura mitologia, qual Saturno castrando Urano em defesa de Gaia, e inagurando o mundo, com a separação do céu e da terra. Temos, por meio das suas criações, uma dimensão real e liberadora. A artista emancipa-se da sua profunda dor de menina humilhada e traída em seu afeto de filha por meio de esculturas em que o masculino parece aberrador: cheio de seios, com pés enormes e sem cabeça, ou seja, um ser monstruoso. Uma obra que não pode passar desapercebida jamais a qualquer analista.
Casas-vazias
Femme - Maison
As casas eram para ela uma verdadeira obsessão. Louise colecionava-as e também criava casas vazias de pessoas, no afã de se livrar da memória traumática de um lar e um tempo onde habitavam a discórdia e a traição. Dentro, objetos frágeis, de vidro, espelhos ou em metal. Genial e sempre muito sensível, a então octagenária Louise conta, mais uma vez, qual um pesadelo que se repete, o caso das governantas ou professoras contratadas por sua família para se ocuparem das crianças, mas que eram, de fato, amantes do pai. Bourgeois aparece em fotos ao lado de uma delas, a professora de inglês, que diferentemente do seu pai vai preferi-la aos seus outros dois irmãos. Contraditoriamente, Louise vai imigrar, depois de casada, para os Estados Unidos ainda nos anos 30 e passar o resto da sua vida a se comunicar em inglês. No documentário, percebe-se inclusive que ela fala francês com um leve sotaque anglo-saxônico.
Talvez essa proximidade com a língua da « outra » tenha acentuado ainda mais o lado doloroso da sua experiência subjetiva do exílio ou « mal du pays », como se diz na França. Seria uma espécie de saudade específica aplicada a esse sentimento provocado pela distância da família, dos amigos e do lugar de nascimento.
Cell/Prisão
Uma das esculturas mais simbólicas de casa e que remetem claramente ao pesadelo doméstico por ela vivido muito cedo é a de uma maquete em mármore representando sua casa de infância. Incomoda a Bourgeois que os críticos tentem ocultar a sua vida, quando jovem, atrás do que poderia ser considerado um privilégio de classe e uma experiência feliz: por isso, as referências recorrentes deles a « jeunesse dorée », [anos dourados da juventude]. Pairando, a ameaçar a casa uma guilhotina. Não há, porém, ali qualquer apelo histórico revolucionário. A revolução que ela põe em marcha é íntima, feminina e pessoal. Como qualquer objeto cortante, a guilhotina tem duas faces. Relembra, qual um espelho, que a menina foi ferida pelo egoísmo paterno, que, ao mesmo tempo, ela devolve como lâmina - um instrumento mais do que convincente -, a querer « castrar » a hipocrisia familiar.
Este é, sem dúvida, um dos papéis do artista: a tentativa de reparação do passado. Nomear a dor. Representá-la, para que, de alguma forma, essa simbolização exorcize o que atormenta o pintor, poeta, escultor e escritor, e também intensifique a consciência de todos sobre a realidade do drama humano. Como diria uma das personagens do belo livro de João Silvério Trevisan, Ana em Veneza (1994)- o pintor alemão Gustav Sternkopf -: « o mais fascinante na arte é que ela supera a vida. Não apenas por sua capacidade de transfigurar o real, mas por sua vocação para meter o dedo na ferida: a arte ilumina a dor que precisa ser vista e compreendida, dentro da vida… ». Para Hannah Arendt, em seu livro, A Condição Humana, a dor, embora profundamente real, seria uma das dimensões mais subjetivas e difíceis de comunicar, donde a importância da sua captação e expressão sob a forma da arte.
A família de Louise comercializava tapeçarias finas, as quais precisavam ser retocadas muitas vezes, pois, vindo de longe enroladas, acabavam desgastando a pintura nas pontas. Louise tornou-se, assim, uma « especialista em pés ». Pode-se, metaforicamente, pensar que a ela cabia resgatar a « base » daquelas figuras e imagens todas. Mais tarde, ela assumirá isso como um projeto artístico pessoal, promovendo a catarse de suas memórias de família por meio de suas esculturas, ou seja, reestruturando-as e resignificando-as.
Uma outra curiosidade interessante a respeito dessa pequena unidade produtiva familiar e que ajuda a explicar a presença vertiginosa da sexualidade nas suas criações plásticas era o fato de que a moral da época não tolerava a visibilidade das genitálias, mesmo que em anjos indefesos. Sua mãe recortava, então, delicadamente de cada peça todos os « zizis » desnudos e depois sumia com eles. Em seu lugar, as mãos artesãs maternas aplicavam flores as mais diversas.
Homens vulneráveis
Foto de Mappletorphe, capa do documentário « Louise Bourgeois »
Apesar da rejeição paterna e talvez justamente por isso, Louise levará uma vida de adulta cercada pelo universo masculino: filhos, marido e cachorro. Ela os amava e cuidava bem deles. E não é por desprezo ou deboche que ela cria "La fillette », obra que já apresentamos aos nossos leitores em março. O « pênis-menina » é uma forma de apoderamento, um resgate, uma conquista. Na distribuição de porções simbólicas masculinas e femininas repercute duramente a ausência paterna, ou os seus excessos. Por isso, reapropriar-se desse direito à autonomia, à independência e à ação no mundo, como representações do masculino, é muito importante para as meninas « castradas » do afeto paterno. Acontece o mesmo com a « porção mulher » para os meninos e homens adultos de que fala o poeta Gil, na canção « Super-homem».
Mais do que reparar, ao artista cabe também trans-criar, transmutar, ir além, propor novos modos de ser e de viver. Donde, contrariando a leitura freudiana clássica que atribui apenas às mulheres a experiência da histeria, Louise Bourgeois cria uma escultura, o « Arco da Histeria », em que a figura suspensa é um homem. Ela o eterniza em bronze, sem cabeça, expondo-lhe a graça da silhueta, mas extirpando a sua força e contrôle. Exibe os homens em sua fragilidade física, como seres tão desamparados frente ao mundo das emoções quanto as mulheres, bem mais assumidas nesse quisito.
Nessa escultura, em suas duas versões [fotos acima], em gesso e bronze, com ou sem braços, vê-se um corpo esculpido, cheio de incontornável erotismo e abandono, o qual, por isso mesmo, reage e oferece resistência. Acha-se, no entanto, incrustada ali uma tensão fenomenal.
O arco, como sabemos, tem o dom da flexibilidade. Louise propõe novas alteridades de gênero, de maneira que nem homens nem mulheres se deixem quebrar pelo outro ou tenham que deparar com dolorosas fissuras internas. O desafio proposto pelo revolucionário Che é, assim, aceito: « hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás ».
Equilíbrio delicado
A escola desde cedo vai servir de refúgio à menina Louise, que por isso mesmo vai se destacar como umas das melhores alunas. Se ali ela escapava da atmosfera tensa de casa, posteriomente Bourgeois vai também construir uma crítica à racionalidade do ensino, que se baseava na « formação total ». Pessoas eram vistas naquele espaço como organismos fechados. Digamos que lhes cabia apenas receber e não interagir. Esta lógica da verticalidade do ensino pretende-se indiferente à fragilidade das pessoas, à sua realidade marcada por perigos possíveis, ameaças à sua contigência e precariedade.
O princípio cartesiano do ensino atém-se, todavia, somente à perfeição, como se no fundo as coisas fossem imutáveis. Eliminam-se as contradições do jogo das relações sociais, pessoais e da vida. Uma tendência onipotente que maculará, a propósito, no passado e no presente, muitas dialéticas.
Louise compunha-se assumidamente dessas contradições. Vai herdar a arte e o gosto do trabalho com as mãos de sua família e posteriormente a admiração pela exatidão da geometria. A matemática devolve-lhe uma ordem e certeza ao seu mundo interior, o que irá fasciná-la vida afora. A sua paciente labuta de escultora não admitirá outra solução possível que não a perfeição, embora sua obra seja arrojada, porque desafiadora da moral estabelecida, e sempre exuberante. A geometria vai reconciliá-la com o mundo.
No documentário, há esse testemunho da dor do exílio que não tínhamos registrado nem na visita à sua exposição nem nas leituras a respeito do seu trabalho. Ela conta que logo que se mudou para os Estados Unidos morava num prédio, cujo terraço no teto servia-lhe de ateliê. Ali ela se escondia para esculpir as figuras da sua saudade: todas as pessoas da França que lhe faziam imensa falta. Ela recriava, então, por meio de obras de arte essas presenças-ausentes. Ela e os outros.
Com o passar dos anos, ela se sentirá forte para reivindicar o direito de sofrer e de experimentar a revolta fruto do exílio. Ela sobrevive a essa experiência, mas integra em sua obra essa porção morta e cinza da sua vida. Essa distância, como qualquer coisa que falta sempre – como já diria o poeta Fernando Pessoa –, inquieta, incomoda como o « não resolvido » : a mulher-casa traída, o pai simbolicamente guilhotinado, e contraditoriamente amado, pois edipianamente desejado e, como tal, eternamente inatingível.
A França, de quem ela vai sentir falta desesperadamente, vai simbolizar e catalizar, ao nosso ver, todas essas perdas, dores e ausências. Um dia, Louise Bourgeois vai se erguer sobre elas, dizendo : « conquistei, enfim, o direito ao meu caos », ao assumir seu ser fraturado: entre a América e o seu país natal.
Ela, como Gustav Sternkopf, convida a todos a perceberem que há muitas realidades. Nem sempre é possível ver as coisas do jeito que os outros as veem. Não obstante, cognitiva e eticamente, persiste o desafio e valem as tentativas de instaurar novas formas de convivência entre adultos e crianças, nas relações familiares e afetivas, assim como em novas dinâmicas políticas e coletivas.
Contra o imutável e perfeito, Louise enxerga « moscas » a invadirem a paisagem, como a anunciar e a reivindicar mudanças e diferenças. Moscas seriam, para ela, como ideias azuis e rosas, a irromperem, a incomodarem, e de alguma forma, a transformarem o pensar.
Para quê? Para onde?, como pergunta a canção. Mesmo errante, Louise soube muito bem dar forma e expurgar as inquietações fundamentais do seu espírito e, com isso, muito nos ensinou e incitou a tentar fazê-lo criativamente. Obrigada, Louise, por tão intensa, febril e produtiva existência.
Seus falos e aranhas metálicas, que a liberaram em vida como pessoa e escultora, vão, sem dúvida, continuar zumbindo como moscas em nossa consciência contra a apatia das nossas sopas cotidianas.
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Mione Sales – é professora de Serviço Social (FSS/Uerj), graduada em Literatura Comparada (Paris 3) e doutora em Sociologia (USP). Contato : mioneecia@hotmail.com
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Precisando
* - Referência a um trecho do poema do poeta simbolista catarinense Cruz e Sousa.
**TRADUÇÃO - « O sofrimento é o tema ao qual me dedico. / Dar sentido e forma à frustração e ao sofrimento./ O que acontece com o meu corpo deve se traduzir em uma forma abstrata. / (…) A existência dos sofrimentos não pode ser posta em dúvida. / Não proponho remédio nem desculpas. / Quero simplesmente considerá-los e falar a respeito./ Sei que eu não posso fazer nada para eliminá-los ou suprimi-los. / Não posso fazê-los desaparecer ; eles permanecerão lá ».
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Para ver
Para escutar
[« Superhomem, a canção », de Gilberto Gil]
[“E agora José?”, com Paulo Diniz, a partir de poema de Carlos Drummond de Andrade]
Cara Mione
ResponderExcluirGostei do seu texto que nos explica muito bem os traumas vividos pela Louise. Agora devo lhe dizer que *a destruição do pai* não é aquela obra que você apresenta em foto e que você descreve. *A destruição do pai* representa pedaços de *aves* (como se um corpo tivesse sido esquartejado) sendo assados num grande braseiro. Eu vi a exposição no Tomie Othake em São Paulo. Abraços