O(a) assistente social na telona
Claudia Correia*
Recentemente, duas produções cinematográficas de grande repercussão e de gêneros diferentes, abordaram en passant o trabalho do assistente social.
Refiro-me aos filmes americanos “Preciosa” (drama) e “Caso 39”(suspense). Pelo conteúdo pedagógico, recomendei ambos aos meus alunos da disciplina Ética Profissional, da Escola de Serviço Social da UCSal, onde leciono há 16 anos. Meu objetivo era promover uma reflexão crítica sobre como a mídia contribui para construir uma representação social sobre o papel e a natureza do nosso trabalho.
Dando todos os descontos por se tratar de obras de ficção, no contexto do entretenimento e não uma tradicional cobertura jornalística sobre a realidade factual do cotidiano profissional, muitas questões interessantes puderam ser levantadas.
Quem teve a oportunidade de ver os filmes percebe claramente a complexidade da relação que se estabelece entre o assistente social e as demandas dos usuários dos serviços sociais, além de aspectos éticos vinculados ao sigilo profissional e à documentação técnica produzida em decorrência do acompanhamento dos chamados “casos sociais”.
Ambientado no Harlem ,em 1987, “Preciosa” conta a trajetória dramática de uma jovem de 16 anos, afro-americana, interpretada por Gabourey Sidibe. Vítima da violência sexual de seu pai, ela supera desafios para conquistar o direito à educação e à sua plena cidadania. Sua maior aliada nesta difícil empreitada é uma obstinada professora de uma escola alternativa, focada na autoestima e na diversidade cultural de jovens excluídos socialmente. O papel do assistente social é vivido por Grace High Tower. Na minha percepção, é passada ao público uma imagem profissional excessivamente burocrática, centrada no gerenciamento de “benefícios” assistenciais que Preciosa e sua conflitada família usufrui. A idéia mais forte que fica no enredo é que o assistente social atua como um mero fiscal da lei, definindo punições aos familiares infratores, no caso a mãe e o pai da protagonista. Não há uma intervenção mais aprofundada na dinâmica familiar, articulada ao contexto social. Prevalece na conduta profissional, uma avaliação moral sobre bons e maus comportamentos e não uma reflexão ética sobre as contradições sociais que servem de cenário à trama das relações familiares.
O “Caso 39”, muito próximo de um filme de terror com direito a mortes bizarras e muita tensão, já mostra uma outra face do nosso trabalho. A destemida assistente social Emily Jenkins (Renée Zelweger) banca a detetive e posa de heroína. Na sinopse, aparece o jargão : “ a idealista assistente social tenta salvar a criança dos pais abu.sivos..”. Diante do suposto sofrimento psíquico da pequena Lilith Sullivan, ameaçada pelos pais agressores, a corajosa Emily ultrapassa todos os limites do bom senso. Leva documentação de usuários da Vara de Família onde atua para sua casa, atua numa equipe interdisciplinar sem a mínima articulação e ainda torna-se refém da criança.
Óbvio que o olhar do público leigo sobre as duas versões reveladas através dos filmes sobre quem é de fato este personagem, o que faz e porque toma determinadas atitudes, não poderia ter o nosso viés.
O que me chama atenção é que a representação social que os meios de comunicação de massa e neste caso particular, o cinema, constrói, cria nebulosas fantasias sobre nosso processo de trabalho. Longe desta lógica reducionista da telona, não encarnamos nem o legalismo burocrático das instituições, nem o afã heróico de “salvadores da pátria”.
Hoje nosso ideário defende um projeto societário compartilhado com segmentos sociais que apostam no protagonismo da população, na força dos movimentos sociais, no controle social das políticas públicas, na defesa dos direitos humanos. Com limites e possibilidades, tecemos nosso cotidiano com senso crítico, enfrentando valores autoritários e conservadores, tão bem incorporados na vida das instituições. A instrumentalidade da nossa ação não se dissocia de um projeto ético político profissional sustentado na ampliação de direitos sociais e no combate a todas as formas de opressão e preconceito. Nosso olhar sobre a família não deve reproduzir uma moral conservadora, precisa contemplar suas novas configurações, o sistema de poder em que se insere.
A sensação de nos vermos retratados em personagens com os quais não nos identificamos, a partir de uma caricatura que não reflete nossa identidade como sujeitos sociais, causa um estranhamento desconcertante.
Por outro lado, nossa exposição midiática dá visibilidade, nos insere na cena da vida social, nos tira de uma existência coadjuvante, o que reforça nossos compromissos éticos. Que script queremos encenar neste enredo? Que aliados elegemos para contracenar e estabelecer alianças? Que responsabilidades assumimos diante do caos social? Com que clareza de objetivos e estratégias estamos representando nosso personagem na vida real?
Confesso que sai do cinema, nos dois filmes, com uma ambígua sensação: a de que precisamos compreender a intersubjetividade do nosso importante papel social e ao mesmo tempo em que devemos romper com os estereótipos que nos aprisionam. O desafio está lançado. Só não vale temer atuar no mar de tantas contradições, se omitir, se vitimizar.
Recomendo que vocês assistam os dois e reflitam sobre suas impressões.
*Claudia Correia é assistente social, jornalista, professora da ESSUCSal e Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Li o texto de Claudia e penso que é isso mesmo - os meios de comunicação de massa tendem a apresentar uma determinada imagem do perfil e do trabalho do assistente social. Contudo, acredito que isso não é "fantasioso", mas na verdade, revela, o quadrante de requisições que nos são postas e principalmente como respondemos a elas. Estudei no doutorado (em minha tese) este tema - não das "representações", mas a imagem socialmente consolidada sobre o Serviço Social e seus agentes, bem como a autoimagem que temos de nós mesmos;e cheguei a conclusão que a imagem do Serviço Social hoje é mesclada por traços tradicionais, próximos ao que Claudia observa nos filmes, e traços renovados, vinculados a luta por direitos sociais...
ResponderExcluirNo mais, parabéns a Claudia pela inovação do uso do cinema na sua disciplina (ótima dica, pois também leciono a disciplina de Ética na UFRJ) e pelo blog, bastante original também entre nós.
Abraço a todos,
Fátima Grave
Caríssim@s, ao ler o texto de Claudia, algumas indagações me osorreram:
ResponderExcluir1. em ambos os filmes a produção é estadunidense - não é?. Pergunto, qual o projeto profissional que orienta a ação naquele país;
2. somos somente nós, assistentes sociais, que temos nossa imagem deturpada nos meios de comunicação - tenho "pena" das enfermeiras quando penso isso;
3. o que vemos correntemente na prática profissional de nossos colegas?
Por fim recomendo aos que se interessem, o Filme iraniano "A Maçã", é mais uma possibilidade de pontuarmos o que não fazemos e o que não somos.
Saudações e até... L. Augusto (assistente social e professor FMU e FAMA - SP)