Os “Casseurs de Pub” em ação na França
Mione Sales*
Texto / Fotos
« Qu’est-ce qu’un homme révolté ? Un homme qui dit non.»
Albert Camus.
“São tão fortes as coisas, mas eu não sou as coisas e me revolto”
Carlos Drummond de Andrade.
Banksi. Arte de rua.
Domingo, voltava para casa, fugindo do incômodo frio parisiense curiosamente às vésperas da chegada do verão na França (21 de junho) e pouco antes da partida Brasil e Costa do Marfim (Côte d’Ivoire). Tive que fazer correspondência na estação Père Lachaise (Linha 3). Caminhava distraída pelo metrô, quando avistei um cartaz singular (abaixo) instalado nos atuais espaços de difusão de cartazes nos metrôs parisienses. Digo atuais, porque antes eles não eram protegidos por vidro e moldura de metal, qual a Monalisa no Louvre. Ficavam largamente estampados por toda parte.
Mesmo estando em francês, o texto não é muito difícil nem para quem lê e fala apenas português ou espanhol : « Os patrões destroem nossas vidas, destruamos os patrões ». A frase segue o espírito « maio de 68 », ou seja, é uma espécie de palavra de ordem ou máxima, no imperativo afirmativo: « Détruisons ! ». Ao me dar conta do cartaz e do texto, fui tomada primeiro por um estranhamento natural, misto de surpresa e curiosidade sobre quem teria instalado esse cartaz ali. Como sabemos, a « pub » - diminutivo de publicidade – tem se apropriado largamente de ícones da esquerda. Nosso colega de blog, Jefferson Ruiz, é um dos que têm denunciado sistematicamente esse artifício, na era do pastiche intelectual e mercadológico. Tudo pode e tudo vale para vender, até resgatar e fazer uso da aura de militantes e símbolos de resistência, sendo Che Guevara e Gandhi alguns dos mais mobilizados para esse fim.
De volta ao cartaz no metrô, observando melhor, percebi que era artesanal e dei-me conta de que era uma ação político-criativa dos que militam contra a publicidade, ao alcance da mão e dos olhos. Um pouco mais à frente, deparei com outros espaços publicitários igualmente « ocupados » pelo mesmo grupo ou pessoa. Não levava assinatura, pois se segue o princípio da arte da rua, não precisa também colaborar diretamente com a polícia e o seu contrôle desse tipo de prática.
Dessa vez, eles ocuparam dois painéis, numa bela recusa da cultura materialista e tudo o que tem servido a encher os potes de ouro da sociedade capitalista nesse começo de século XXI. Trata-se de uma ilustração com uma espécie de roda da fortuna, metamorfoseada em símbolo da reciclagem. Logo acima, o eixo da crítica: dinheiro. De um lado, o rastro de problemas provocados por essa lógica produtivista: vício, doenças (todos condicionados pela prática excessiva do consumo) e o suposto medicamento, com a reentrada no sistema : título de propriedade intelectual. Do outro, o lado mais claro e aberto ligado à ideologia do mercado e da sociedade financeirizada: quem não se renderia ao seu apelo? Investimento, lucros, progresso e trabalho!
Discretamente, no interior do triângulo, lê-se “criação de um vazio”, o que corresponde também à produção do sentimento de desejo e falta por algo, que nem sempre sabemos o que é. Muitas das vezes, é apenas uma vaga angústia, que, na contemporaneidade, preenchemos com compras ou comida, para nos sentirmos mais belos e fortes, a fim de enfrentar as próximas angústias que virão.
Nessa esteira de críticas à sociedade do consumo, pode-se perceber que o veneno e o remédio muitas vezes são vendidos juntos. Li outro dia - depois de ter navegado no blog parceiro Saúde Mental na Uerj, do colega e amigo Marco Duarte - sobre o lançamento de um livro que se intitulava A tristeza perdida, de Allan Horwitz e Jerome Wakefield. Trata-se de um trabalho de pesquisa e reflexão na área da psiquiatria sobre a farmacologização das emoções. As pessoas atualmente, segundo eles, não conseguem lidar com as mínimas frustrações habituais e consomem avidamente psicotrópicos: remédio para dormir, remédio para levantar, remédio para sorrir, remédio para trabalhar, remédio para produzir… Pareceu-me muito interessante. Pois então, a crítica que os militantes da causa do anti-consumo e da anti-publicidade fazem é justamente à exploração indevida desse « vazio », o qual é ansiosamente preenchido com mercadorias na era do fetichismo dos shopping center e lojas virtuais. Ou com medicamentos!
Claro que há quem oponha um limite a esse apelo economicista, mas há muitas pessoas que se perdem justamente nesse misto de « roda da fortuna e triângulo das bermudas », enquanto representação da sedução exercida pelo comércio. Numa época em que a moda é ser « proativo », ninguém quer parecer fora da moda, triste e inconformado. Portanto, « sorria, você está Barra e na televisão! »
Como contratendência, os ditos militantes, que, na verdade, acreditamos, integram um grupo que já existe há dez anos na França, os chamados « casseurs de pub » [os destruidores da publicidade], recomendam: « Recicle o teu tempo de vida ! » Para tanto, fazem campanhas como: « Um dia sem comprar » ou « Uma semana sem televisão”. Bela chance realmente de se reciclar, lendo, dormindo, passeando ao ar livre, namorando, brincando com os filhos, porque nunca se tem tempo para esses prazeres simples, posto que submetidos à pressão da rentabilidade e da produtividade.
Nessa luta, o tempo se mostra precioso, embora, como diga o cartaz, também não fica imune à poluição. O espaço dos corredores do metrô, mais o das ruas e avenidas são, por vezes, invadidos por cartazes e letreiros que simplesmente impedem a sua codificação, provocando a fadiga mental e a irritação, ao invés da curiosidade e supresa intencionais originais [Ver abaixo o link do « mental environment » / meio ambiente mental]. Penso, por exemplo, em muitos subúrbios, periferias brasileiras e outros, soterrados de placas e tabuletas por toda parte, como reflexo da ausência de uma política democrática para a cidade no que concerne ao espaço comum visual. O nosso autor desconhecido desabafa, por meio do seu cartaz : « Acabo de passar um imundo quarto de hora ».
Estação de metrô Père Lachaise
Mexer com todas essas energias revolve mesmo as entranhas. Ir contra a roda do sistema é muito pesado e deixa a sensação de ter metido as mãos em algo sujo, não pela ação ilícita, mas pelo contato com os “sorrisos pagos” que, provavelmente, se achavam nos cartazes arrancados dos ditos espaços publicitários. Nada de vandalismo, claro, apenas o direito ao protesto e à revolta. Humanos, demasiadamente humanos.
E para terminar, os « casseurs de pub » poetizam e contribuem à moda deles com a cultura, conjugando um verbo : « foutre le camp », que quer dizer, « dar o fora », ir embora, partir. Boa forma de despedida! Ao final, mais um convite, no imperativo, que os inclui, por isso na primeira pessoa do plural: “Fujamos ! » Libertemo-nos das amarras visuais incentivadoras do consumismo.
Aproveito para dizer, por ora, também: Fui!
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CASSEURS DE PUB
Existem desde 1999. São um movimento social que se organiza na França sob a forma de associação, ou seja, eles contam com financiamento público. (É, meu amigo, nem tudo que é ilegal engorda no velho continente!) O objetivo deles do Casseurs de Pub é promover a criação gráfica e artística baseada na crítica da sociedade de consumo e a promoção de alternativas. Para tanto, difundem uma revista anual Casseurs de pub e um jornal mensal La Décroissance, ambos com uma tiragem de 45.000 exemplares, disponíveis para assinatura e à venda nas bancas. Uma outra campanha organizada por eles é a « Volta às aulas sem marcas ». Fazem ainda filmes de animação, organizam seminários, espetáculos, exposições, etc. e contam também com um site na internet. O « Casseurs de Pub » foi fundado por um antigo publicitário.
PEQUENO DICIONÁRIO DA PUB – alguns verbetes
A como Alienação.
A « pub » causa dependência, provoca doenças. Os laboratórios americanos lançaram um medicamento para curar a febre « compradora », aquele que atinge os consumidores viciados em gastos inúteis. O Celexa age diretamente sobre a compulsão de compra via serotonina. Os hipermercados não devem se preocupar muito: a sociedade Upromise acaba de inventar a receita miraculosa para aprender a gastar sempre mais, e, tudo isso, sem nenhuma culpa: quanto mais você compra, mais a sociedade financia a caderneta de poupança dos vossos filhos. O objetivo oculto: fazer do « sobreconsumo » uma boa ação, mas também deixar o consumidor dependente de uma marca por toda a vida!
D como Desperdício.
A « pub » não cria verdadeiras riquezas, contrariamente ao que afirmam os negociantes de falsas esperanças. Assemelham-se aos comerciantes da morte: vendedores de cigarros e traficantes de arma, por exemplo. A publicidade consiste num desperdício de materiais e de energia, produz montanhas de lixo, é um desperdício de objetos, prometendo supostamente entregar nas mãos do consumidor as chaves da felicidade. Trata-se de um desperdício do imaginário, porque destinado apenas ao lucro e ao dinheiro.
T como televisão.
A « pub » invade a TV: propaganda no intervalos, inserções em filmes, tudo vale para vender as marcas. As Tartarugas Ninja comem Pizzas Dominos, Burger King e bebem Pepsi. Uma criança é alvo de 40.000 anúncios de publicidade por ano, em geral de produtos nocivos à sua saúde física e mental. Outrora, na França, a publicidade era proibida na TV por questões de ética. O primeiro anúncio publicitário data de 1959 para publicidades sem marca (do tipo “mude de gravata, uma gravata o mudará”). No entanto, a primeira « pub » pra valer ligada a uma marca data de 1° de outubro de 1968. A « pub » permaneceu, porém, proibida na TV aos domingos e feriados. Na Grécia, é proibido fazer propaganda para brinquedos nas horas em que a criança possa se achar de frente para a televisão. Pois é… Podem existir outros atitudes e valores para além daqueles do mercado e do “lucro”.
[Fonte : http://www.casseursdepub.org/index.php?menu=doc&sousmenu=dico]
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Um pouco mais sobre os « Casseurs de Pub »
Convicções e interrogações a respeito da máquina publicitária
«O quê? Abaixo a publicidade? Você está por acaso entediado? Não tem outra coisa para fazer? Mas há milhões de assuntos muito mais importantes para se ocupar! A « pub » é muito interessante. Eu adoro! » Resistir à avalanche publicitária, como se pode ver, não é exatamente fácil. A maior parte dos nossos amigos não têm consciência que, longe de ser algo engraçado, apenas para distrair, como dizem os publicitários, ela integra uma engrenagem maior da sociedade. A « pub » consitui uma poluição tão ou mais perigosa, quando age de forma invisível. Ela ataca o nosso cérebro. Ela nos condiciona. Ela formata e normaliza nosso inconsciente coletivo. A « pub », segundo eles, é uma máquina que precisa ser destruída.
Princípios contra os argumentos economicistas
De acordo com os publicitários, ser contra a publicidade significaria ser contra a economia. É preciso, assim, ir contra essa falsa ideia. A « pub » está a serviço da economia das grandes empresas, as multinacionais, em detrimento de uma economia em escala humana, respeitosa do meio ambiente. O McDonald promove a « pub », diferentemente dos restaurantes de bairro. Auchan, Leclerc, Carrefour, toda a grande distribuição faz propaganda. Os vendedores de legumes da vizinhança, por sua vez, não fazem propaganda. A « pub » está a serviço de uma economia muito produtiva, no entanto pobre em emprego, a qual faz guerra contra uma economia menos produtiva e mais rica em empregos duráveis. A « pub » é, portanto, uma máquina que destrói o emprego. A « pub » está a serviço de uma « má economia », o que faz tão mal quanto uma comida ruim.
[Fonte: http://www.casseursdepub.org/index.php?menu=doc&sousmenu=machine]
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Para fim de conversa…
Ontem precisei me servir mais uma vez da Linha 3 (Gallenni – Levallois) e tornei a passar na estação Père Lachaise. Claro que não haveria mais sinal dos cartazes da « contra-propaganda ». Encontrei outra imagem no lugar da que eu fotografei e que chamou a minha atenção inicialmente: era a de um anúncio do novo Ipad.
Ilustro com uma semelhante encontrada na rede e ligeiramente alterada, por um outro movimento, desta vez nos EUA. Eles inseriram nas imagens e links ultramodernos do Ipad sites e conteúdos « libertinos & libertários » ligados ao movimento “freedom porn” (liberdade pornô) de San Francisco. Nesse caso, o proprietário do caríssimo Ipad seria um homem negro. Liberdade ainda que à tardinha… para os combates de cor, sexo e anti-pub!
Nas paredes, porém, « tudo como antes, no quartel de Abrantes! ». A ode ao conforto, ao bom gosto, à última tecnologia e à qualidade de vida voltava a reinar tirânica, à maneira do « pensamento único », como se não existissem, por trás das « imagens-miragens » publicitárias, o mundo do trabalho, a extração infelizmente da mais-valia absoluta e relativa, e a vida das pessoas reais, com possibilidades, mas também infinitos impedimentos materiais.
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Mione Sales – é professora de Serviço Social (FSS/Uerj) e doutora em Sociologia (USP). Contato: mioneecia@hotmail.com
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Para ver
http://www.youtube.com/watch?v=lgmTfPzLl4E&feature=player_embedded
(“A história das coisas” / excelente vídeo norte-americano [dublado em português], engajado na luta contra a sociedade de consumo - uma dica do nosso seguidor e amigo Ricardo Azevedo)
http://www.youtube.com/watch?v=7GbQx12GPec&feature=related
(Les objecteurs de croissance – Os que fazem objeção ao crescimento)
http://www.youtube.com/watch?v=TJjOa_nucq0&feature=related
(Simplicidade voluntária e «crescimento negativo» [décroissance])
http://www.youtube.com/watch?v=fvBsiP3hAmA&feature=related
(Entrevista com Serge Latour - idealizador da bandeira do « de-crescimento »[décroissance] / legendas em espanhol)
Para navegar
http://www.casseursdepub.org/index.php?menu=cdp
https://www.adbusters.org/
(Journal of the Mental Environment – um site semelhante bem interessante em inglês)
Para ler
FONTENELLE, Isleide. O nome da marca. Boitempo editorial, 2002.
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero. Cia das Letras, 1989.
http://www.casseursdepub.org/index.php?menu=pourquoi
(Por que nos chamamos « casseurs de pub » ? / texto em francês)
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