domingo, 14 de março de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

LOUISE BOURGEOIS:
A escultura da dor

Mione Sales*

                                             A escultora francesa Louise Bourgeois  

Para encerrar essa semana de comemorações no Brasil e no mundo dos 100 anos do 08 de março, escolhi falar de um ângulo especial, dentro e fora da alma das mulheres, ou seja, da arte no feminino, em homenagem às mãos quase centenárias da escultora Louise Bourgeois. Sua obra retrata a imensidão da dor que pode habitar a intimidade das mulheres, não importa de que classe social. Coisas da subjetividade feminina - pertinentes às complexas e delicadas relações de gênero -, flagradas entre os “ditos e não ditos” do cotidiano a dois e em família.

A violência experimentada pelas mulheres, portanto, não se consuma apenas em atos concretos de agressão física, como as previstas pela louvável Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que comemorará em agosto de 2010 quatro anos. A violência por vezes cala mesmo é fundo na alma. Inscreve-se no âmbito conjugal e familiar. Sutil ou cínica, fere, mais que as mulheres envolvidas, as crianças que participam de um universo doméstico ambíguo, permeado por um litígio silencioso.

Foi do fundo do pote de uma mágoa paterna assim que brotou boa parte da preciosa obra da artista plástica e escultora Louise Bourgeois. Seu trabalho em tecido, metal, gesso, mármore e cobre é um grito feminino de revolta que atravessa gerações e fronteiras.

                           Louise Bourgeois, “Cumul I/Cúmulo I”, 1969.

Nascida na França, em 1911, Louise Bourgeois é considerada um dos maiores expoentes mundiais da escultura do século XX. Ela é filha de uma família burguesa de tecelões, oriunda da pequena cidade de Choisy-le-Roi. Seu pai restaurava tapetes e também os vendia. Louise B. vai participar da pequena oficina e cedo se iniciará nos desenhos e fios. Mais tarde, sua arte vai exprimir, da mesma maneira, um lento e laborioso trabalho de restauração e reparação dos estragos pessoais provocados pelas atitudes machistas do pai. Para ela, o cúmulo – nome de uma das múltiplas peças por ela criadas – será o convite paterno feito a uma amante, disfarçada de preceptora e governanta, para habitar com a família Bourgeois. Essa é apenas uma amostra do ambiente de dissimulação com o qual a pequena Louise teve que se deparar, quando criança. A experiência da feminilidade traída e humilhada de sua mãe deixará marcas indeléveis na sua história de vida, além de uma referência paterna comprometida.

Desses estilhaços e fragmentos de memória, ela ergueu um grandioso trabalho e obras de arte de muito talento. Esculpiu, portanto, e ainda esculpe sua própria subjetividade filial machucada, bem como a de tantas mulheres desrespeitadas, discreta ou ostensivamente.

Nos anos quarenta, ela parte da França rumo aos Estados Unidos, em companhia do marido o pesquisador e historiador de arte, Robert Goldwater, com quem viveu mais de trinta anos, até quando se tornou viúva, em 1973. A vida e obra dessa artista mostram que ela soube ir além do mapa da dor, tecendo novos caminhos para si. Felizmente, não se deixou mutilar afetivamente e teve no seu companheiro um dos seus principais apoiadores e incentivadores. Exilou-se, mas não do seu destino, criando profusamente desde fins dos anos 30 e início dos anos 40 um trabalho cuja pedra fundamental é uma homenagem à sua mãe, Josephine, e ao mesmo tempo uma denúncia da condição feminina. 

                                   L. Bourgeois, “Fragile Goddess/Deusa frágil”, 2002.

O ponto de partida de uma longa saga artística que já dura mais de cinqüenta anos foi uma série de trabalhos intitulados “Femme-Maison”, que quer dizer: “Mulher-Casa”. A mulher figura, assim, aparentemente como uma extensão física do domínio familiar. Seu corpo e sua alma integram-se na arquitetura de portas e paredes, o que nos faz pensar na personagem remarcável de Shirley Valentine* e ao “basta” que muitas mulheres, como ela, darão a situações conjugais que impedem a sua inteireza.

O século XX, portanto, foi definitivamente o do feminismo, ainda que inúmeras questões por ele levantadas permaneçam ainda sem resposta. Pelo menos, temos cada vez mais consciência delas e novas exigências, como as que se inscrevem nas esculturas de Bourgeois, que são uma ode ao feminino, mas sem lhe fazer concessões. Trata-se, no fundo, de um apelo universal às mulheres e aos homens que com elas convivem, com vistas à reinvenção de novas formas de alteridade conjugal. Mergulhemos, então, um pouco nos frutos da sua criação e dor.

L. Bourgeois. Sem título, 2002.

Corpo a corpo com a cólera: a sublimação pela arte


Visitei uma exposição da obra de Louise Bourgeois, em junho de 2008, no Centre Georges Pompidou (Beaubourg), em Paris. Foi uma visita marcante. Até hoje dialogo com as imagens de suas esculturas. Das rugas do rosto da artista - a qual caminha a passos firmes para completar cem anos de vida no ano que vem -, que lembram o de uma indígena, às dobras dos tecidos que revestiram suas criações, metamorfoseando, ao longo de décadas, vivências psíquicas e catarses familiares, o contato com a obra de Bourgeois não deixa ninguém impune. Como criança assustada, velha sábia ou como mulher dona de si, ela toca a todos, indaga-nos, perturba e não deixa ninguém à vontade.

   Louise Bourgeois, “Cell/Cela”, 1990-93 e “Passage dangereux/Passagem Perigosa”, 1997.

O passeio nas celas, uma das muitas representações estéticas da “casa”, e percurso inicial daquela exposição, espreitava, já à partida, o lado sombrio do afeto e o risco da “solidão a dois”, de que falava o poeta Cazuza. O frio do metal comunica ali onde a “incomunicabilidade” é a principal mensagem.

Mas Louise Bourgeois não rima apenas com dor e desabafo. Ela também é portadora de enorme irreverência e humor, ao se apropriar, sem consentimento, da figura do falo. Seu trabalho é, portanto, um prato cheio para psicanalistas interessados na psique feminina. O ápice da irreverência está na transfiguração de um pênis numa mocinha. Isto significa que, apesar da preponderância da temática feminina, sua obra transita entre dois mundos, duas linguagens - feminina e masculina -, ordem e precipício. A geometria que a auxilia a elevar esculturas fálicas não são uma ode à força e à virilidade, mas dizem da instabilidade e fragilidade do desejo e mesmo da vida em comum.

                               Louise Bourgeois, “Spiral Woman/Mulher- espiral” , 2003.

Obras como “Fillette” – o falo-menina - constituem, sem dúvida, uma “pirueta” artística que desafia interpretações convencionais, intelectuais e psicanalíticas. Representaria tal escultura mais uma fantasia de castração ou a utopia da fusão do masculino e do feminino? Ou mesmo a libertária e contemporânea perspectiva da bissexualidade, enquanto um horizonte possível para onde caminharia a humanidade, numa era considerada por alguns já como pós-feminista?

L. Bourgeois, “Seven in a bed/ Sete numa cama”, 2001.

O trabalho de Bourgeois não pertence, porém, ao território das respostas prontas, tal qual uma de suas esculturas em tecido azul, que é o corpo da mulher e o próprio mundo e se chama curiosamente de “perseguição sem fim”. A busca, assim, tanto pode ser infinita e sem resultados, como pode se saciar no próprio percurso e tentativa de aprendizado existencial ou de exorcismo das mágoas e tensões amorosas e familiares.

As Marias da Penha e as Josephines denunciam também que o calo ainda dói no sapato das mulheres. Por isso, no global, o traço, as formas e os sentimentos que provocam as esculturas de Bourgeois mantêm acesa a convicção de que as tensões de gênero são, ainda e por demais, atuantes. Donde o seu convite a que mergulhemos num cenário de peças ora minimalistas ora gigantes que falam de intimidade, distanciamento, histeria, desejo de destruição do pai, infância, sofrimento, vulnerabilidade, partos e orgias. 


Louise Bourgeois, “Arch of Hysteria/ Arco da Histeria”, 1993.

Como os fios tecidos e desmanchados sucessivamente por Penélope, da “Odisseia” de Homero (século VIII a. C.), num incansável gesto e canto de espera pelo amado Ulisses, Louise Bourgeois desfia o seu “rosário de penas”, valendo-se também da arte que aprendeu na companhia dos pais: a arte de tecer. O tecido é, para ela, em fios e vestimentas uma segunda pele, como a reafirmar a súplica e necessidade de proteção. Paradoxalmente, ela homenageia o seu filho com uma série que se intitula “Partos cor-de-rosa”, se é que um parto normal pode alguma vez se chamar assim. A réplica em si e a contradição ali revelada são indicadas por uma frase associada a essa escultura, que diz: “Não me abandone”. Mãe? Filho? Vínculo umbilical? O futuro homem em que ele vai se constituir? O homem que teme ser feminino? A motivação da artista, como ela mesma diz, é mobilizada pela necessidade de costurar, suturar feridas, enfim de sobreviver.


                        L. Bourgeois

Sobreviver à própria dor é deveras uma arte, que a artista canalizou finalmente para mais uma irreverente criação: uma série de enormes aranhas de metal. Pode-se dizer, inclusive, que nunca este inseto exibiu tanto o seu potencial cuidador, frágil e forte, qual o das mulheres. Spider, de 1997, uma imensa aranha pousada sobre mais uma das celas-lar, que povoam a imaginação da escultora desde a tenra infância, é como um anjo ora exterminador ora protetor. Para ela, é acima de tudo um arquétipo da figura maternal: “inteligente, paciente, útil, razoável e indispensável como uma aranha” - tecelã das tecelãs. Tecedora de relações e de vidas.

                                       Louise Bourgeois, "Spider/ Aranha", 1997.

O conjunto da obra de Bourgeois pulsa, portanto, de vida e, por que não dizer também do dilema vida-morte-vida. Escapa a definições aprisionantes, sendo surrealista, concreta e abstrata ao mesmo tempo. Feminina em alto grau, não se priva de se travestir do masculino. É, portanto, a um só tempo, beco sem saída e porta aberta em direção à liberdade. É sujeito e também objeto. Decididamente, sua arte insurge-se contra a submissão a todas ordens, “lógicas e sacadas”, como diria o poeta Pessoa.

A arte de Louise Bourgeois porta, assim, aspirações e desafios, que talvez ainda constituam enigmas para o feminino, mas que certamente exigem ser conhecidos, tocados e transformados pelas mulheres. São desafios da descoberta pessoal de cada uma de nós, pistas e indagações de gênero e culturais, que dizem ou antecipam do que pretendemos que seja uma subjetividade politicamente radical, e humanamente indissociável.


Mione Sales – é assistente social, professora universitária (FSS/Uerj) e doutora em Sociologia (USP). Contato: mioneecia@hotmail.com
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A conferir:

http://www.tate.org.uk/tateetc/issue11/lumpsbumps.htm
http://www.sculpture.org/documents/scmag01/janfeb01/bourg/bourg.shtml
http://www.recirca.com/reviews/louisebourgeois/index.shtml
http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=154
(Sobre a obra de Bourgeois)
http://www.hauserwirth.com/artists/1/louise-bourgeois/biography/
(Em 1997, duas exposições da escultora no Rio de Janeiro: no Centro Cultural da Light e no CCCB-RJ)
http://www.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_11/2010/03/12/ficha_teatro/id_sessao=11&id_noticia=21742/ficha_teatro.shtml
(Peça da atriz, dramaturga e coreógrafa brasileira Denise Stoklos, inspirada na obra de Louise Bourgeois)
http://denisestoklos.uol.com.br/
(site oficial de Denise Stoklos)


Sobre a Odisseia:

http://expositions.bnf.fr/homere/index.htm


A escutar:

http://www.youtube.com/watch?v=0WwuTXf8Vls
(um belo vídeo a partir da maravilhosa canção “Mulher” de Geraldo Azevedo)
http://www.youtube.com/watch?v=DGPKsGf5qgE
(Caetano, dando voz à poesia de R. Carlos)


A ver:

http://www.youtube.com/watch?v=NXq2tBDH9YM&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=EjQH2H-uol8&feature=related
(Montagens em vídeo das obras de L. Bourgeois)
http://www.youtube.com/watch?v=xP14hH8wWu4&feature=related
(* abertura do filme “Shirley Valentine” [Lewis Gilbert, 1989] )

2 comentários:

  1. Bingo! Louise Borgeois, primor de pessoa, mulher e artista. E você Mione, tecendo palavras tão primoras quanto. Viva!
    E, veja só que feliz coincidência, esses dias assisti Denise Stocklos em 'Louise Borgeois: Faço, Desfaço, Refaço'. Espetáculo belíssimo.
    Super abraço. Eneida Guerreiro

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  2. Que bom, Eneida, que você gostou! Vontade de assistir à peça da D. Stocklos. Que privilégio mineiro! Grande abraço, Mione*

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