A questão social e o Serviço Social sob as lentes da Globo
Claudia Correia
No último dia 03 de novembro, a Rede Globo exibiu o programa “Profissão repórter” contando o drama de pessoas que perdem o vínculo com suas famílias nas grandes cidades brasileiras. A intenção era promover o re-encontro de familiares, comover a opinião pública nacional e, claro, faturar a audiência do IBOPE “custe o que custar”. Pela primeira vez assisti ao programa e fiquei chocada.
Das três histórias contadas uma me chamou atenção: uma criança criada em um abrigo carioca sem referências familiares. Na cena, surgem dois assistentes sociais: um procura os familiares desta criança nas ruas do segundo maior centro urbano do país, acompanhado de uma deslumbrada repórter. O outro atua no abrigo onde reside a criança tida como órfã.
Tive a impressão que a atuação dos assistentes sociais foi exposta sem o devido cuidado de qualificar a intervenção técnica e ética deles, sem contextualizar os procedimentos adotados. Fiquei com a impressão na cena da assistente social nas ruas à procura da família da criança, acompanhada de um auxiliar (do Juizado da Infância? Conselheiro tutelar?) e da repórter global, que a atuação era exploratória, sem qualquer apuro técnico. Ela permanece na cena como uma coadjuvante, falando ao celular para avisar ao abrigo que o suposto pai da criança fora encontrado, enquanto a repórter “entrevista” animadamente este homem, tentando arrancar lágrimas dos telespectadores e dele.
Pasmem: o candidato a pai da criança estava por acaso, numa praça, próximo à equipe das gravações. Tudo pareceu-me armado como uma novela com final feliz. Na entrevista ele conta que é ex-presidiário e que a mãe da criança falecera. O auxiliar ou conselheiro tutelar mostra-se à vontade, falante, comentando sobre o caso com desenvoltura, sob o olhar atento da assistente social.
O outro assistente social surge tentando esclarecer à entusiasta repórter que seria impossível permitir o encontro do suposto pai com a criança no abrigo, o que gerou enorme frustração na heroína do melodrama disfarçado de “grande reportagem jornalística”. Fiquei com a sensação que a justificativa técnica e jurídica não foi dada de maneira consistente. O assistente social estava visivelmente constrangido nas filmagens, como se estivesse acuado diante da insistência da jovem candidata a jornalista que pretendia a todo custo patrocinar o re-encontro do pai e da criança.
Assim, a repórter telefonou para uma defensora pública que explicou que a criança já estava em processo de adoção e por isso não poderia ser abordada por seu pretenso pai naquele momento, daquela forma. Finalmente um personagem com bom senso!
Cabe questionar: este assistente social não poderia dar este esclarecimento? não poderia citar o Estatuto da Criança e do adolescente como um parâmetro legal para uma situação tão complexa como esta? não poderia ter dito que este tipo de intervenção não pode ser confundido com um espetáculo midiático para manter o ibope da emissora? A propósito, a Globo controla o sistema de comunicação ideologicamente dominante neste país de tantos órfãos de pais vivos. Além disso, no enfrentamento de numa situação como esta há todo um suporte psicossocial a ser prestado à criança e a todos os envolvidos. Se todos estes aspectos poderiam ser esclarecidos, porque não foram? A quem interessa esta visão mitificadora da realidade?
Moral da história: a questão social não pode ser transformada irresponsavelmente em tema de melodrama, com direito a trilha musical. O desaparecimento de pessoas no Brasil é um grave problema social, multifatorial. Como um processo sócio-econômico-cultural, deve ser alvo de programas transversais, de políticas públicas, não de ações isoladas, ainda que bem intencionadas. Que Política de proteção aos direitos da criança e do adolescente temos no país?
No afã de praticar uma boa ação, um serviço de utilidade pública ou a filantropia empresarial, a emissora expõe uma imagem frágil do profissional de Serviço Social, banaliza o drama social de milhares de brasileiros.
Talvez os colegas, quase transformados em coadjuvantes, não dimensionem o impacto desta “cobertura jornalística” sobre suas carreiras ou sobre a vida da população. A mídia é um poderoso instrumento que cria representações sociais, valores, conceitos e preconceitos. Precisamos compreender e dominar seus códigos para usar todo este potencial para fortalecer a luta por direitos sociais e por respeito, sobretudo ao trabalho de todos os profissionais. Fica a lição e a reflexão.
Claudia Correia, assistente social, jornalista, Profa. ESSUCSal, Mestre em Planejamento Urbano.
ccorreia6@yahoo.com.br
Oi, pró, paz e bem!
ResponderExcluirObrigada por escrever este artigo de forma clara e direta. Muitos profissionais assim como padres e religiosos, se perdem diante da câmera autoritária e de repórteres sedentos de polêmicas ou de sociodramas com os quais alimenta e aliena a grande massa de hipno-telespectadores-globais.
è triste saber que além dos problemas do dia-adia, a gente ainda tem que estar de olho aberto pra isso. Que nos informem sobre quem nos informa...