A cigarra
Desprendeu-se do galho mais alto e delicado da grande árvore da vida. Abriu suas asas, sacodiu a antiga poeira das ruas que lhe pesava ainda a estrutura frágil e transparente, e voou. Voou desta para, quem sabe, melhor, nossa mais velha cigarra.
Cigarra é errante e incomoda, porque canta e teima em fazer a vida diferente… Nossa velha cigarra tinha cara de índia e falava à nossa alma sulamericana… Quem de nós não se surpreendeu descobrindo um amor latente por nossos « hermanos » depois de escutar a sua voz ?
O que o espaço, as leis, a cultura e mesmo a língua separavam a velha cigarra guerreira unia. Acordava a poesia de Violeta, de Paco, Victor, Milton que dormia dentro de nós, dos pampas às cordilheiras andinas, e as espalhava no vento, que sibilava ou uivava baixinho, com vergonha de sentir prazer e dor ao som de versos tão revolucionários… Numa época de formigas tão ordeiras, tão trabalhadeiras, tão carpideiras do sistema que fatiga, trucida, fenece flores e esperanças, Mercedes, « la cigarra », lembrava-nos ainda hoje que havia tempo de sonhar… Com seu jeito e colo de matrona universal, pronta para abraçar a nós e ao mundo, acolhia os rebentos perdidos das ditaduras, os sem-destino, os sem-pátria, os sem-amanhã… Ela era as mães todas da Plaza de Mayo, e consolava cada mulher, sem esquecer nenhuma…
Com sua partida, apaga-se uma luz do mundo, que brilhava, sem vaidade e discretamente, mas que, cantando, alçava a grandeza de ursos bailando, evocando ancestralidades comuns…
Pelas notas da sua voz, acompanhamos o derradeiro momento de Storni, a poeta, qui preferiu o mar à vida… Que dor essa a de preferir a morte nas ondas ao embalo amoroso dos versos ! Tirânica vida que inspira escolhas trágicas…
Talvez agora a velha cigarra, calorosa, semeadora de verões e irreverências, visite o seu próprio enterro, como cantou uma vez… e ria-se, não sem pesar, da desgraça para a qual, inertes, muitos de nós marchamos… O tempo dos relógios não derrete apenas as telas surrealistas, sua velocidade corrói as memórias e não deixa espaço para as pequenas coisas… Devora-nos até o amor. Tempo das máquinas, templo do dinheiro… O ruído ensurdecedor das buzinas no sinal fechado de nossa época, abafado apenas pelos walkies-talkies e head-phones, já não permite o canto das cigarras, mas apenas o ritmo frenético das formiguinhas obedientes e perseverantes, com suas economias mesquinhas de grãos para o inverno… Tudo em ordem, tudo em paz, mas o silêncio é pura solidão, sem o barulho animado e aguerrido das cigarras…
http://www.youtube.com/watch?v=6oySFWy-lm4&feature=related
**Mione Sales
Professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, doutora em Sociologia e licenciada em Literatura Comparada.
Linda homenagem Mione. Com certeza Mercedes Sosa fez sua história e deixou-nos, eternamente, sua voz e suas verdades... Canta agora lá do alto.
ResponderExcluirO tempo dos relógios não derrete apenas as telas surrealistas, sua velocidade corrói as memórias e não deixa espaço para as pequenas coisas… Devora-nos até o amor.
ResponderExcluircomo estas palavras me fez pensar em como é minha vida,mas minha meória não se corroeu porque ainda penso nos AMIGOS,beijos pra ti.
Obrigada, Nelma e "confusão", pelos comentàrios. A amizade, sem dùvida, resiste ao tempo. Um grande abraço, Mione*
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