O RUÍDO QUE VIROU GRITO
Ana Lucia Vaz*
Cada geração tem seus desafios, suas
possibilidades e limites. Há mais de dez anos trabalhando como professora
universitária, me convenci de que a minha foi uma geração privilegiada. Entrar
na universidade nos anos 1980, quando o Brasil se democratizava, nos permitiu
ir às ruas mil vezes, sonhar juntos, construir utopias maravilhosas.
Não sofremos a repressão violenta dos
que nos antecederam, mas herdamos deles o poder de sonhar um mundo melhor.
Descobrimos a sociedade quando ela se transformava e, arrastados pela onda de
mudanças, não foi difícil sonhar tantas outras que poderiam vir. Fizemos muitas
festas nas ruas, “sem medo de ser feliz”.
Mas
os anos 1990 chegaram com sabor de contra correnteza. Quando comecei a dar aula
na universidade, no início dos anos 2000, encontrei uma juventude muito
diferente da minha. Me assustei, algumas vezes, com o pragmatismo de meus
alunos. A universidade passando por profundas mudanças, alguns poucos
mobilizando uma reação, recebo a pergunta da turma, desconfiada de que não
“valia a pena” participar: professora, você acha que adianta alguma coisa essa
manifestação?” Perguntas que eu só sabia responder ensinando para eles sobre o
meu ponto de vista. “ Se vai dar resultado? Não sei. A gente nunca sabe antes
de entrar na briga. Mas tenho dificuldade de entender sua pergunta. Porque pra
mim, pra minha experiência política, a pergunta principal não era sobre o resultado.
Mas sobre a causa. Se é justa vale a pena!”
Muitos deles já trabalham e valorizam
o trabalho mais do que a faculdade. Certo dia, numa turma noturna, em Campo
Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde alguns se esforçavam heroicamente
para manter os olhos abertos na dupla jornada trabalho-faculdade, coloquei em
discussão a frase que havia acabado de ler numa manifestação anarquista: “Quanto
tempo do seu dia você gasta para comprar coisas inúteis?”. E me surpreendi ao
ver que 49, dos 50 presentes, responderam sem vacilar que era a maior parte do
tempo. Descobri que eram raros os que já
trabalhavam por necessidade de sobrevivência ou para pagar a faculdade.
Uma juventude para quem o poder de
consumo tornou-se determinante para o convívio social. Muitas vezes apática e despolitizada. Eu via
uma juventude sem esperanças, incapaz de compreender os velhos conceitos da
política e igualmente incapaz de criar novos conceitos para colocar no lugar.
MAS
É VOCÊ QUE AMA O PASSADO E QUE NÃO VÊ...
Foto
1: Ana Lucia Vaz
Antes de duvidar de uma geração, é
preferível duvidar de nossos conceitos. Por dez anos, exercitei, com pouco
sucesso, a escuta desses jovens. Na sala de aula, a relação de autoridade
desigual dificulta essa escuta. Mas alguns ruídos conseguiam chegar aos meus
ouvidos.
Se era uma geração capaz de gastar a
maior parte do seu dia trabalhando para comprar coisas inúteis, também era uma
geração capaz de reconhecer o buraco em que estava enfiada. Nas discussões
sobre a utopia, revezavam-se entre o medo de sonhar e a dor explícita da
impotência, por sonhar sem conseguir achar caminho por onde buscar seus sonhos.
Quando eu perguntava a eles o que eles
gostariam que fosse diferente, no Brasil, suas respostas eram como as minhas:
justiça social, saúde e educação de qualidade para todos e assim por diante.
Quando eu perguntava como construir isso, as vozes se acanhavam, se perdiam.
Certa vez organizei um Seminário sobre
comunicação popular, com debates que incluíam ONG de prostitutas, moradores de
rua, favelados etc. O território maldito, ignorado pela universidade privada,
empenhada em oferecer o que “interessa ao nosso aluno”: estrelas do mercado
midiático. A participação no Seminário superou todas as expectativas. Houve
quem faltasse ao trabalho para poder participar de todos os três turnos de
debate. Estava provado que novos olhares, outras perspectivas, atraiam muito
mais que a mesmice do mercado.
Mais interessante ainda foi perceber,
pelas perguntas, a sabedoria de uma geração que, diferente da minha, tinha
poucas verdades e muita curiosidade.
O
GRITO DAS RUAS
Foto 2: Ana Lucia Vaz
Em junho deste ano, a insatisfação
latente explodiu nas ruas. Como toda explosão, caótica. Vinda de uma geração que
desconfia dos velhos conceitos políticos e ensaia os novos, com pouca ou
nenhuma referência.
Dia desses encontrei com uma
professora com quem já passei muitos intervalos, na sala dos professores, em
conversas profundas sobre a sociedade.
Ela: Pensei muito em você esses dias,
com as manifestações!
Eu sorri: É, eu estive em várias.
Ela: Imaginei. Lembrei do que você
falava... que eles estavam ligados, não estavam mortos.
Quando as manifestações explodiram,
não tive dúvidas: estava dentro! Do dia pra noite, meus alunos começaram a me
assediar com um debate rico, politizado como poucas vezes havia surgido em sala
de aula.
Por outro lado, me assuntei com minha
geração. Estamos todos perplexos, é inevitável. Nossos conceitos e experiência
são insuficientes para interpretar a realidade que se desdobra rápida muitas
vezes violentamente diante de nossos olhos. Não temos as lentes adequadas para
entender e, portanto, é difícil saber por onde caminhar. Mas me angustio de ver
algumas falas distantes, demasiado céticas. Às vezes, tenho a impressão de que
alguns velhos companheiros apegaram-se demais ao ceticismo. Indispensável à
sobrevivência em tempos sombrios, em que a correnteza neoliberal puxou forte
para o abismo, reforçada por tantas conciliações indigestas, esse ceticismo ameaça
nos afogar quando a utopia explode caótica diante de nossos olhos.
Foto 3: Ana Lucia Vaz
Arrisco dizer que é preciso mais
sentimento que intelecto, neste momento. Os ruídos que consegui captar, aqui e
ali, desta geração que insurge de onde não esperávamos nada, não me livram da
perplexidade. Não sei para onde estamos indo. Só sei que é impossível não estar
ao lado daqueles meninos acampados dentro Câmara de Vereadores do Rio em
protesto contra a máfia dos transportes que se apoderou do parlamento.
Não gosto das cenas de violência. A
performance das caras cobertas me fazem pensar na glorificação do crime. Mas é
impossível não reconhecer o diferente, incompreensível, a mostrar sua força,
sua vitalidade e sua disposição de mudança.
Não creio que minha contribuição seja
encarar a polícia junto com esses meninos e meninas. Também não tenho a menor
disposição pra isso. Como expliquei a um aluno querido, que ia às manifestações
de skate, na linha de frente, já tive minha cota de gás lacrimogêneo e
bordoadas de cacete nos tempos de estudante.
Me pergunto por que caminhos posso
construir minha atuação. Ainda não sei. Vou tateando, farejando, nesses tempos
vivos e indescritíveis. Só sei que quero estar dentro desta correnteza. Sem
medo de ser feliz!
Sem medo da felicidade de ver que o
pulso ainda pulsa, que a juventude está desperta, em movimento, e que o governo
está reaprendendo a temer o povo. A felicidade de ver o jornalismo conservador
tropeçar nas pernas e ser obrigado a recuar sobre os próprios passos, correndo
atrás do jornalismo militante das redes sociais.
Foto 5: Ana Lucia Vaz
Não tenho nenhuma condição de prever
resultados. Mas, numa sociedade em que as estruturas institucionais,
partidárias e midiáticas se tornaram rígidas demais; em que o egoísmo do
mercado controla o Estado e “o arbítrio tem força de lei”, a contestação a
essas estruturas é bem vinda.
O sentido que isso vai tomar depende
de todos nós, nas ruas ou fora delas, apoiando, ignorando ou resistindo à
correnteza caótica que tomou o país.
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*Ana Lucia Vaz, jornalista do Conselho Regional do
Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS-RJ), mestre em Jornalismo (USP), membro
da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net),
professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.
26/08/2013.
Maravilhoso texto, querida Ana Lúcia!
ResponderExcluirDe uma total clareza, quanto a incerteza dos rumos desse emocionante e "impressionante movimento"!
Parabéns Ana, é muito bom ver florescer nas ruas encontros produzidos pelas micro indignações cotidianas que carregamos faz tempo.É pulso que pulsa com certeza.
ResponderExcluirjorgesapia.wordpress.com
Pois é não se pode duvidar de uma geração... ótima reflexão companheira. Precisamos de muita reflexão para entender o que ainda está acontecendo, pois, Junho ainda não acabou. Está evidente que o sentimento expressado nas ruas permanece vivo. Muito bonita a GREVE que estamos fazendo no magistério público do Rio de Janeiro onde apesar das algumas vitórias no plano econômico nos recusamos a voltar sem que questões pedagógicas como: Turmas superlotadas, falta de material, climatização das salas... fossem atendidas.
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