domingo, 17 de fevereiro de 2013

Editoria Caleidoscópio Baiano

Devaneios de viagem

(Ou como entender o mundo e a si mesmo com o pé na estrada)
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Claudia Correa*


Enfim, de volta ao nosso blog, reestreando na produção de artigos neste início de 2013 para compartilhar reflexões e sonhos. Ainda é tempo (antes que o festejado Ano Novo envelheça) de desejar a todos um ano rico de criatividade, paz e muitos projetos realizados para todos nós.

Em férias, de passagem pelo Rio e Paraty neste janeiro de esquentar até baiano, alguns fatos me chamaram atenção no cenário da eterna “cidade maravilhosa”. Na verdade, o poeta tem razão: o Rio de Janeiro continua lindo, continua sendo o “coração do meu Brasil”. Alguns podem dizer que meu olhar de viajante não conta, turista é sempre deslumbrado, complacente. Quem vive o cotidiano urbano é quem sabe as mazelas e os problemas que transformam qualquer paisagem paradisíaca em um inferno. Ainda assim, o olhar “estrangeiro” é sincero, resgata aspectos da realidade que superam a banalização daquele que já se acostumou com as imagens e seus significados no dia a dia de um lugar. Por acreditar que esta percepção também é legítima, arrisco compartilhar algumas impressões e reflexões que marcaram minha rápida passagem pelo ensolarado (e chuvoso )Rio.




Toda vez que viajo gosto de comprar jornais locais para me inteirar do contexto, conversar com jornaleiros, motoristas de taxi e de ônibus e pessoas comuns, principalmente as que tem muito contato com o público, como porteiros e garçons. Sempre acreditei que elas traduzem bem o modo de ver e viver o lugar, são “a alma” viva da cidade.





“Bons costumes” para quem?

Em quase 30 anos de profissão e 25 de trabalho na Câmara Municipal de Salvador, nunca vi algo tão inócuo e absurdo: li no jornal Extra que o governador carioca Sérgio Cabral sancionou a lei proposta pela deputada e missionária católica Myriam Rios (PSD mas eleita em 2010 ainda pelo PDT) que cria o “Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Espirituais”. O objetivo é “promover o resgate da cidadania, o fortalecimento das relações humanas e a valorização da família, da escola e da comunidade como um todo”. A lei prevê parcerias “articuladas e significativas” com prefeituras e entidades sociais para financiar atividades educativas como palestras e publicações diversas que incentivem os “bons costumes”.

Lendo a matéria (não conheço o texto da lei ainda) tive a sensação que o discurso que atribui a “desestruturação familiar e a perda de valores morais” como causa de tudo (da disseminação do crack entre jovens à exploração sexual de crianças) ganhou corpo nos poderes públicos em terras cariocas.

Detalhe: o tal programa será executado pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, cujo Secretário Zaqueu Teixeira foi pego de surpresa e admitiu, segundo o jornal, que terá de discutir como regulamentar a lei. Alguns questionamentos óbvios: quem determina o que se inclui em “bons costumes” em uma sociedade hipócrita, cuja classe dominante dita normas de conduta com base em uma forte herança conservadora e moralista? o que é moralmente aceito e para quem? como assegurar que segmentos historicamente discriminados como adeptos do candomblé e gays sejam contemplados? como garantir, em um Estado laico, que todas as expressões da chamada espiritualidade serão beneficiadas? quem pagará esta conta se os Fundos Estaduais e Municipais de Assistência Social e os Centros de Referência da Assistência Social – CRAS padecem com a falta de recursos para necessidades básicas? como este programa se insere no contexto da Politica Pública de Assistência Social e no Sistema Único de Assistência Social – SUAS? 
Nós assistentes sociais que lutamos na década de 90 para aprovar a LOAS- Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742-93) sabemos quanto custa desvincular a Política Pública de Assistência Social do clientelismo eleitoreiro que transforma direito em favor, a serviço do jogo polítco. O SUAS ainda não está plenamente implantado no país, a rede de serviços e os CRAS na maioria dos municípios penam com dificuldades estruturais como equipes desfalcadas, prédios desabando e sem segurança, falta de cadastradores para o Programa Bolsa Família, dentre outras mazelas.



A lei dos “bons costumes” é um retrocesso, um desserviço a sociedade, um desrespeito às conquistas que o SUAS consolidou, um atentado ao bom senso. A população precisa ter seus direitos constitucionais assegurados, o acesso a bens e serviços precisa ser democratizado, a distribuição de renda deve ser justa, o emprego e a renda devem garantir dignidade (até para não se viver refém de bolsa nenhuma) e tantas outras demandas sociais precisam ser contempladas em programas eficazes. Isso sim “resgata” (já tivemos plenamente?) a cidadania. Senhores legisladores e gestores públicos, cujos altos salários são pagos pela população: que tal enterrar iniciativas moralistas como esta? a moralização da questão social é um retrocesso sob todos os aspectos! Bons costumes passam por práticas democráticas e transparentes, incluindo o bom uso do recurso público e o debate com a população sobre novas leis e novos programas sociais.


Ser velho no Rio
Desde 2000, quando morei seis meses no Rio para cursar o Mestrado em Planejamento Urbano no IPPUR-UFRJ, me chama atenção os hábitos dos idosos na cidade e a presença deles em eventos culturais e esportivos, em bares, praias e outros espaços públicos.
Independente da condição social (será? talvez eu precisasse viver a realidade dos morros e não apenas passear pelos calçadões da Zona Sul) e física no Rio os idosos parecem ter uma inserção na vida urbana ainda rara, pelo menos em algumas cidades como Salvador. Vi alguns idosos em cadeiras de roda, com cuidadores ou sozinhos , em Ipanema e Copacabana.


Talvez as barreiras arquitetônicas e a falta de serviços de transporte de qualidade contribuam para o isolamento e até confinamento de muitos idosos em Salvador. Hoje uma grande metrópole não pode se dar o luxo de não ter transporte de massa como o metrô (em Salvador a obra se arrasta a mais de dez anos e há denúncias de fraudes, super faturamento e outras irregularidades). A mobilidade urbana é um requisito para a qualidade de vida dos nativos e no caso de Salvador, que vive da economia do turismo, dos visitantes. Não é a toa que a capital baiana vem perdendo seu lugar de destaque no ranking dos destinos turísticos preferidos. Além disso, nos preparativos da cidade para a Copa em 2014 o problema do transporte, da segurança e da limpeza urbana está sendo muito debatido.
Também percebi que nos calçadões e praças no Rio tem “academias da terceira idade” e aluguel de bicicleta (explorados por empresas como bancos privados) para mexer o corpo e relaxar. Interessante é que na cidade onde o culto ao corpo e a “boa forma” impera, alguns idosos desfilam em roupas sumárias e biquinis com muito charme e naturalidade, o que em algumas cidades seria um escândalo devido ao preconceito.
Soube ainda por minha amiga dos tempos de colégio em Salvador, a médica Aída Assunção e sua irmã, minha xará Claudia (nesta viagem pude revê-las depois de 25 anos!)  que há uma Secretaria Municipal específica que oferece centros de convivência e atividades culturais para idosos, em consonância com o Estatuto do Idoso. Fiquei sensibilizada em ver como seus pais encontraram o caminho para um estilo de vida saudável, apesar das dificuldades de viver em um grande centro e da violência urbana. Fiquei curiosa de conhecer a experiência desta Secretaria, mas não tive tempo, quem sabe algum colega ou blog leitor me manda notícias....
Enfim, voltei para casa refletindo sobre a qualidade de vida em Salvador, nas condições que nós (família, sociedade, governos) oferecemos aos idosos, para que tenham seus direitos garantidos e uma vida feliz. Refleti sobre que velhice quero para mim (o que fazer depois da aposentadoria? onde morar?) e como anda a vida de minha mãe, de 73 anos, ainda cheia de energia apesar das limitações físicas, numa cidade ainda mais limitada em termos de políticas públicas como Salvador.


Rômulo Almeida: um raro brasileiro
Minha viagem coincidiu com a solenidade de entrega pela Petrobras, no dia 17 de janeiro, em Niterói, do navio “Rômulo Almeida”. Detalhe: O Rômulo Almeida será o primeiro navio brasileiro com duas mulheres no comando. A paraense Hildelene Lobato Bahia, que será a comandante, foi a primeira mulher brasileira a atingir o posto mais alto da hierarquia da Marinha Mercante. A carioca Vanessa Cunha será a sua imediata. Claro que me enchi de orgulho de nós mulheres, que enfim ocupamos espaços historicamente dominados pelos homens e com competência vamos conquistando o poder em setores estratégicos.



Confira no link abaixo mais detalhes sobre a embarcação e o trabalho que desenvolve na matéria veiculada no portal da Petrobras.

O primeiro navio brasileiro com duas mulheres no comando: o navio Rômulo Almeida, a quarta embarcação do Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), tem 183 metros de comprimento e capacidade para 56 milhões de litros de combustíveis.

Baiano  de Salvador, com origem familiar em Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo do estado, Rômulo faleceu repentinamente em 1988 deixando uma lacuna enorme. Foi um homem público honrado e estudioso sobre o Brasil, respeitado pelo profundo conhecimento do planejamento econômico e estratégias de desenvolvimento, ele teve participação efetiva na criação de várias instituições de peso como a  Petrobras, o Banco do Nordeste, o Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM, Eletrobrás, BNH e outras. Na Bahia foi mentor do Polo Petroquímico de Camçari e do Centro de Planejamento Econômico da Bahia -CEPAL e ocupou cargos de diretor no BNDES e no Banco do Nordeste.
Como um político raro, patriota sem demagogia e preocupado com as questões sociais, ele chegou a ser deputado federal mas não conseguiu se eleger senador em 1981, e dedicou-se à causa pública através de empresas e consultorias. Foi Presidente do PMDB na Bahia, quando o partido era uma força política contra os desmandos promovidos na era Antonio Carlos Magalhães.
Tive o privilégio de conviver  com Rômulo entre 1984 e 1988 quando estava casada com Eduardo Almeida, seu filho.  Guardo a imagem de um homem sereno, de hábitos simples, muito generoso e sempre disponível para compartilhar seu vasto conhecimento, concedendo entrevistas a jornalistas e estudantes com muita paciência e didática, participando de eventos e campanhas políticas ou manifestações populares.



Sobre o trabalho e o perfil de Rômulo, indico algumas obras como “A serviço do Brasil”, de Aristeu Souza e J.Carlos Assis, além do site www.irae.org.br do Instituto de Altos Estudos Rômulo Almeida, do qual sou Diretora de Comunicação.



O herói da Independência
Descobri na esquina da Rua Visconde de Pirajá com a Garcia D’ávila, em Ipanema, uma estátua de Luis Lopes. Curioso é que raramente vemos este tipo de homenagem fora das praças e avenidas mais famosas das cidades. Ainda mais raro é dar status de herói a personagens históricos sem origem na classe dominante ou de patente elevada. O homenageado foi corneteiro da tropa brasileira que lutou em Salvador, exatamente no bairro de Pirajá, em novembro de 1822, pela Independência do Brasil das amarras do império português. Segundo consta na placa fixada ao lado da imagem, ao invés dele executar, a mando do comandante, o toque de recuar, entoou o de avançar e a tropa brasileira saiu vitoriosa nesta batalha contra as forças portuguesas.



Em Salvador e em alguns municípios como Cachoeira, o 2 de julho, feriado estadual, é muito comemorado como a  data da Independência do Brasil na Bahia. A festa é marcada com desfiles de filarmônicas e do cortejo que exibe carros alegóricos as imagens da cabocla e do caboclo, símbolos da luta pela liberdade e autonomia nacionais.



A população lota as ruas, muitos movimentos sociais e sindicatos desfilam, a Igreja Católica organiza o “grito dos excluídos” e muitos políticos usam a festa como vitrine para se exibir.



O nome do nosso aeroporto internacional (2 de julho) foi mudado para Deputado Luis Eduardo Magalhães (falecido, filho de Antonio Carlos Magalhães que reinou como tirano por 30 anos) por decisão do Congresso Nacional. Existe um projeto de lei tramitando na Câmara Federal para que a medida seja revogada devido a repercussão negativa da mudança. Aliás, esta mudança do nome do aeroporto expressa bem a concepção de herói que predomina na sociedade que temos, onde os segmentos populares estão sempre colocados na condição de coadjuvante ou figurante.
Daí o significado da homenagem a Luis Lopes: de figurante a herói neste fato histórico ocorrido na minha terra. Me dei conta que não lembrava deste capítulo da nossa história e deste personagem. De repente eles estavam bem perto de mim, quase na porta do Edificio onde me hospedei em Ipanema, graças a generosidade do meu sobrinho baiano-carioca Thiago e a laços que permitem aproximar Salvador e Rio como cidades irmãs, ex-capitais do Brasil.
Esta viagem também serviu para eu perceber melhor a beleza natural de Paraty, seu rico patrimônio histórico e seu potencial turístico. Assim como Salvador e Rio, ela requer atenção, investimento público para preservar sua riqueza e proporcionar a moradores e turistas, de qualquer idade ou classe social, o direito de usufruir de bens que são coletivos. Salve o Rio! Salve os heróis anônimos do Brasil!

Cinquenta tons de cinza
Confesso que não me interessei em conhecer a famosa trilogia “Cinquenta tons de cinza” (50 tons de cinza, 50 tons mais escuros e 50 tons de liberdade) da inglesa E.L.James. Os livros provocaram um debate polêmico nas redes sociais e nas rodas de conversa, o que sempre funciona como boa estratégia de marketing. Os temas eróticos e tudo que envolve a sexualidade humana sempre despertam curiosidade e agendam as discussões nas ruas, o que gera notícias na mídia. Claro que nem sempre o que é importante para a sociedade é retratado na mídia, mas certamente tudo que é interessante dá audiência.
Me chamou atenção a decisão do juiz Rafael Campos, da 2ª Vara de Família, da Infância, da Juventude e do Idoso de Macaé-RJ de determinar que as obras sejam vendidas lacradas. A decisão rendeu matéria em vários jornais cariocas. Não deu outra: após a medida, as vendas triplicaram e só em um dia, vinte exemplares foram vendidos na Livraria Nobel, no principal shopping local. A curiosidade foi despertada com a cobertura que a mídia deu para a decisão judicial e há denúncias de exageros. Em uma livraria em Macaé a oficial de Justiça fez seu trabalho fiscalizador com dois PMs armados de fuzil e recolheram 16 exemplares de outros livros de conteúdo erótico.
Será que não há nada mais urgente para o Poder Judiciário coibir? Será que as centenas de denúncias de maus tratos contra crianças e idosos no Brasil estão sendo apuradas com agilidade? O Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo respeitado? E o que os poderes públicos fazem diante da exploração sexual e do trabalho infantil?
Cheguei a pensar que a intenção é que as publicações que vão resgatar os bons costumes e os valores morais previstos na lei sancionada no Rio se tornem best sellers no Brasil. Assim, os tons da moralidade serão disseminados e todos salvos do inferno... Que tal canalizar esta energia para garantir direitos humanos e instituições públicas que cumpram seu importante papel nos três poderes? Talvez assim a população se livre dos maus costumes de gestores públicos e parlamentares.
Até mais, ou até a próxima viagem por esse Brasil de contrastes e contradições!!
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*Claudia Correia, assistente social, jornalista, Mestre em Planejamento Urbano. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br 
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Um comentário:

  1. meu depoimento é suspeito por ser sua mãe. mas, o fato de vc se interessar, pela vida que os idosos estão tendo e as muitas informações aqui mencionadas, já me deixa cheia de orgulho.
    Ficar antenada ao que ocorre ao nosso redor mão tem idade nem classe social. Viemos para melhorar o mundo e todos são responsáveis beijos mãe

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