Devaneios de viagem
(Ou como entender o mundo e a si mesmo com o pé na estrada)
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Claudia Correa*
Enfim, de
volta ao nosso blog, reestreando na produção de artigos neste início de 2013
para compartilhar reflexões e sonhos. Ainda é tempo (antes que o festejado Ano Novo envelheça)
de desejar a todos um ano rico de criatividade, paz e muitos projetos
realizados para todos nós.
Em férias, de passagem pelo Rio e
Paraty neste janeiro de esquentar até baiano, alguns fatos me chamaram atenção
no cenário da eterna “cidade maravilhosa”. Na verdade, o poeta tem razão: o Rio
de Janeiro continua lindo, continua sendo o “coração do meu Brasil”. Alguns
podem dizer que meu olhar de viajante não conta, turista é sempre deslumbrado,
complacente. Quem vive o cotidiano urbano é quem sabe as mazelas e os problemas
que transformam qualquer paisagem paradisíaca em um inferno. Ainda assim, o
olhar “estrangeiro” é sincero, resgata aspectos da realidade que superam a
banalização daquele que já se acostumou com as imagens e seus significados no
dia a dia de um lugar. Por acreditar que esta percepção também é legítima,
arrisco compartilhar algumas impressões e reflexões que marcaram minha rápida
passagem pelo ensolarado (e chuvoso )Rio.
Toda vez que viajo gosto de
comprar jornais locais para me inteirar do contexto, conversar com jornaleiros,
motoristas de taxi e de ônibus e pessoas comuns, principalmente as que tem
muito contato com o público, como porteiros e garçons. Sempre acreditei que
elas traduzem bem o modo de ver e viver o lugar, são “a alma” viva da cidade.
“Bons costumes” para quem?
Em quase 30 anos de profissão e
25 de trabalho na Câmara Municipal de Salvador, nunca vi algo tão inócuo e
absurdo: li no jornal Extra que o governador carioca Sérgio Cabral sancionou a
lei proposta pela deputada e missionária católica Myriam Rios (PSD mas eleita em
2010 ainda pelo PDT) que cria o “Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais,
Éticos e Espirituais”. O objetivo é “promover o resgate da cidadania, o
fortalecimento das relações humanas e a valorização da família, da escola e da
comunidade como um todo”. A lei prevê parcerias “articuladas e
significativas” com prefeituras e entidades sociais para financiar atividades
educativas como palestras e publicações diversas que incentivem os “bons
costumes”.
Lendo a matéria (não conheço o
texto da lei ainda) tive a sensação que o discurso que atribui a
“desestruturação familiar e a perda de valores morais” como causa de tudo (da
disseminação do crack entre jovens à exploração sexual de crianças) ganhou
corpo nos poderes públicos em terras cariocas.
Detalhe: o tal programa será
executado pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, cujo
Secretário Zaqueu Teixeira foi pego de surpresa e admitiu, segundo o jornal,
que terá de discutir como regulamentar a lei. Alguns questionamentos óbvios:
quem determina o que se inclui em “bons costumes” em uma sociedade hipócrita,
cuja classe dominante dita normas de conduta com base em uma forte herança
conservadora e moralista? o que é moralmente aceito e para quem? como assegurar
que segmentos historicamente discriminados como adeptos do candomblé e gays
sejam contemplados? como garantir, em um Estado laico, que todas as expressões
da chamada espiritualidade serão beneficiadas? quem pagará esta conta se os
Fundos Estaduais e Municipais de Assistência Social e os Centros de Referência
da Assistência Social – CRAS padecem com a falta de recursos para necessidades
básicas? como este programa se insere no contexto da Politica Pública de
Assistência Social e no Sistema Único de Assistência Social – SUAS?
Nós
assistentes sociais que lutamos na década de 90 para aprovar a LOAS- Lei
Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742-93) sabemos quanto custa desvincular
a Política Pública de Assistência Social do clientelismo eleitoreiro que
transforma direito em favor, a serviço do jogo polítco. O SUAS ainda não está
plenamente implantado no país, a rede de serviços e os CRAS na maioria dos
municípios penam com dificuldades estruturais como equipes desfalcadas, prédios
desabando e sem segurança, falta de cadastradores para o Programa Bolsa
Família, dentre outras mazelas.
A lei dos “bons costumes” é um retrocesso, um
desserviço a sociedade, um desrespeito às conquistas que o SUAS consolidou, um
atentado ao bom senso. A população precisa ter seus direitos constitucionais
assegurados, o acesso a bens e serviços precisa ser democratizado, a
distribuição de renda deve ser justa, o emprego e a renda devem garantir
dignidade (até para não se viver refém de bolsa nenhuma) e tantas outras demandas
sociais precisam ser contempladas em programas eficazes. Isso sim “resgata” (já
tivemos plenamente?) a cidadania. Senhores legisladores e gestores públicos,
cujos altos salários são pagos pela população: que tal enterrar iniciativas
moralistas como esta? a moralização da questão social é um retrocesso sob todos
os aspectos! Bons costumes passam por práticas democráticas e transparentes,
incluindo o bom uso do recurso público e o debate com a população sobre novas
leis e novos programas sociais.
Ser velho no Rio
Desde
2000, quando morei seis meses no Rio para cursar o Mestrado em Planejamento
Urbano no IPPUR-UFRJ, me chama atenção os hábitos dos idosos na cidade e a
presença deles em eventos culturais e esportivos, em bares, praias e outros
espaços públicos.
Independente da condição social (será? talvez
eu precisasse viver a realidade dos morros e não apenas passear pelos calçadões
da Zona Sul) e física no Rio os idosos parecem ter uma inserção na vida urbana
ainda rara, pelo menos em algumas cidades como Salvador. Vi alguns idosos em
cadeiras de roda, com cuidadores ou sozinhos , em Ipanema e Copacabana.
Talvez
as barreiras arquitetônicas e a falta de serviços de transporte de qualidade
contribuam para o isolamento e até confinamento de muitos idosos em Salvador.
Hoje uma grande metrópole não pode se dar o luxo de não ter transporte de massa
como o metrô (em Salvador a obra se arrasta a mais de dez anos e há denúncias
de fraudes, super faturamento e outras irregularidades). A mobilidade urbana é
um requisito para a qualidade de vida dos nativos e no caso de Salvador, que
vive da economia do turismo, dos visitantes. Não é a toa que a capital baiana
vem perdendo seu lugar de destaque no ranking dos destinos turísticos
preferidos. Além disso, nos preparativos da cidade para a Copa em 2014 o
problema do transporte, da segurança e da limpeza urbana está sendo muito
debatido.
Também
percebi que nos calçadões e praças no Rio tem “academias da terceira idade” e
aluguel de bicicleta (explorados por empresas como bancos privados) para mexer o
corpo e relaxar. Interessante é que na cidade onde o culto ao corpo e a “boa
forma” impera, alguns idosos desfilam em roupas sumárias e biquinis com muito
charme e naturalidade, o que em algumas cidades seria um escândalo devido ao
preconceito.
Soube ainda por minha amiga dos tempos de
colégio em Salvador, a médica Aída Assunção e sua irmã, minha xará Claudia (nesta
viagem pude revê-las depois de 25 anos!) que há uma Secretaria Municipal específica que
oferece centros de convivência e atividades culturais para idosos, em
consonância com o Estatuto do Idoso. Fiquei sensibilizada em ver como seus pais
encontraram o caminho para um estilo de vida saudável, apesar das dificuldades
de viver em um grande centro e da violência urbana. Fiquei curiosa de conhecer
a experiência desta Secretaria, mas não tive tempo, quem sabe algum colega ou
blog leitor me manda notícias....
Enfim,
voltei para casa refletindo sobre a qualidade de vida em Salvador, nas
condições que nós (família, sociedade, governos) oferecemos aos idosos, para que
tenham seus direitos garantidos e uma vida feliz. Refleti sobre que velhice
quero para mim (o que fazer depois da aposentadoria? onde morar?) e como anda a
vida de minha mãe, de 73 anos, ainda cheia de energia apesar das limitações
físicas, numa cidade ainda mais limitada em termos de políticas públicas como
Salvador.
Rômulo Almeida: um raro
brasileiro
Minha
viagem coincidiu com a solenidade de entrega pela Petrobras, no dia 17 de
janeiro, em Niterói, do navio “Rômulo Almeida”. Detalhe: O
Rômulo Almeida será o primeiro navio brasileiro com duas mulheres no comando. A
paraense Hildelene Lobato Bahia, que será a comandante, foi a primeira mulher
brasileira a atingir o posto mais alto da hierarquia da Marinha Mercante. A carioca
Vanessa Cunha será a sua imediata. Claro que me enchi de orgulho de nós mulheres, que
enfim ocupamos espaços historicamente dominados pelos homens e com competência
vamos conquistando o poder em setores estratégicos.
Confira
no link abaixo mais detalhes sobre a embarcação e o trabalho que desenvolve na
matéria veiculada no portal da Petrobras.
O primeiro navio
brasileiro com duas mulheres no comando: o navio Rômulo Almeida, a quarta
embarcação do Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), tem 183
metros de comprimento e capacidade para 56 milhões de litros de combustíveis.
Quer saber mais? Confira no nosso blog:http://fatosedados.blogspetrobras.com.br/2013/01/14/comeca-a-operar-o-quarto-navio-do-promef/
Baiano
de Salvador, com origem familiar em
Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo do estado, Rômulo faleceu repentinamente
em 1988 deixando uma lacuna enorme. Foi um homem público honrado e estudioso
sobre o Brasil, respeitado pelo profundo conhecimento do planejamento econômico
e estratégias de desenvolvimento, ele teve participação efetiva na criação de
várias instituições de peso como a
Petrobras, o Banco do Nordeste, o Instituto Brasileiro de Administração
Municipal - IBAM, Eletrobrás, BNH e outras. Na Bahia foi mentor do Polo
Petroquímico de Camçari e do Centro de Planejamento Econômico da Bahia -CEPAL e
ocupou cargos de diretor no BNDES e no Banco do Nordeste.
Como
um político raro, patriota sem demagogia e preocupado com as questões sociais,
ele chegou a ser deputado federal mas não conseguiu se eleger senador em 1981,
e dedicou-se à causa pública através de empresas e consultorias. Foi Presidente
do PMDB na Bahia, quando o partido era uma força política contra os desmandos
promovidos na era Antonio Carlos Magalhães.
Tive
o privilégio de conviver com Rômulo
entre 1984 e 1988 quando estava casada com Eduardo Almeida, seu filho. Guardo a imagem de um homem sereno, de hábitos
simples, muito generoso e sempre disponível para compartilhar seu vasto
conhecimento, concedendo entrevistas a jornalistas e estudantes com muita
paciência e didática, participando de eventos e campanhas políticas ou
manifestações populares.
Sobre
o trabalho e o perfil de Rômulo, indico algumas obras como “A serviço do
Brasil”, de Aristeu Souza e J.Carlos Assis, além do site www.irae.org.br do Instituto de Altos Estudos
Rômulo Almeida, do qual sou Diretora de Comunicação.
O herói da Independência
Descobri
na esquina da Rua Visconde de Pirajá com a Garcia D’ávila, em Ipanema, uma
estátua de Luis Lopes. Curioso é que raramente vemos este tipo de homenagem
fora das praças e avenidas mais famosas das cidades. Ainda mais raro é dar
status de herói a personagens históricos sem origem na classe dominante ou de
patente elevada. O homenageado foi corneteiro da tropa brasileira que lutou em
Salvador, exatamente no bairro de Pirajá, em novembro de 1822, pela
Independência do Brasil das amarras do império português. Segundo consta na placa
fixada ao lado da imagem, ao invés dele executar, a mando do comandante, o toque
de recuar, entoou o de avançar e a tropa brasileira saiu vitoriosa nesta
batalha contra as forças portuguesas.
Em
Salvador e em alguns municípios como Cachoeira, o 2 de julho, feriado estadual,
é muito comemorado como a data da
Independência do Brasil na Bahia. A festa é marcada com desfiles de
filarmônicas e do cortejo que exibe carros alegóricos as imagens da cabocla e
do caboclo, símbolos da luta pela liberdade e autonomia nacionais.
A
população lota as ruas, muitos movimentos sociais e sindicatos desfilam, a
Igreja Católica organiza o “grito dos excluídos” e muitos políticos usam a
festa como vitrine para se exibir.
O nome do nosso aeroporto internacional (2 de
julho) foi mudado para Deputado Luis Eduardo Magalhães (falecido, filho de
Antonio Carlos Magalhães que reinou como tirano por 30 anos) por decisão do
Congresso Nacional. Existe um projeto de lei tramitando na Câmara Federal para
que a medida seja revogada devido a repercussão negativa da mudança. Aliás,
esta mudança do nome do aeroporto expressa bem a concepção de herói que
predomina na sociedade que temos, onde os segmentos populares estão sempre
colocados na condição de coadjuvante ou figurante.
Daí
o significado da homenagem a Luis Lopes: de figurante a herói neste fato
histórico ocorrido na minha terra. Me dei conta que não lembrava deste capítulo
da nossa história e deste personagem. De repente eles estavam bem perto de mim,
quase na porta do Edificio onde me hospedei em Ipanema, graças a generosidade
do meu sobrinho baiano-carioca Thiago e a laços que permitem aproximar Salvador
e Rio como cidades irmãs, ex-capitais do Brasil.
Esta
viagem também serviu para eu perceber melhor a beleza natural de Paraty, seu
rico patrimônio histórico e seu potencial turístico. Assim como Salvador e Rio,
ela requer atenção, investimento público para preservar sua riqueza e
proporcionar a moradores e turistas, de qualquer idade ou classe social, o
direito de usufruir de bens que são coletivos. Salve o Rio! Salve os heróis
anônimos do Brasil!
Cinquenta tons de cinza
Confesso
que não me interessei em conhecer a famosa trilogia “Cinquenta tons de cinza”
(50 tons de cinza, 50 tons mais escuros e 50 tons de liberdade) da inglesa
E.L.James. Os livros provocaram um debate polêmico nas redes sociais e nas
rodas de conversa, o que sempre funciona como boa estratégia de marketing. Os
temas eróticos e tudo que envolve a sexualidade humana sempre despertam
curiosidade e agendam as discussões nas ruas, o que gera notícias na mídia.
Claro que nem sempre o que é importante para a sociedade é retratado na mídia,
mas certamente tudo que é interessante dá audiência.
Me
chamou atenção a decisão do juiz Rafael Campos, da 2ª Vara de Família, da
Infância, da Juventude e do Idoso de Macaé-RJ de determinar que as obras sejam
vendidas lacradas. A decisão rendeu matéria em vários jornais cariocas. Não deu
outra: após a medida, as vendas triplicaram e só em um dia, vinte exemplares
foram vendidos na Livraria Nobel, no principal shopping local. A curiosidade
foi despertada com a cobertura que a mídia deu para a decisão judicial e há denúncias
de exageros. Em uma livraria em Macaé a oficial de Justiça fez seu trabalho
fiscalizador com dois PMs armados de fuzil e recolheram 16 exemplares de outros
livros de conteúdo erótico.
Será
que não há nada mais urgente para o Poder Judiciário coibir? Será que as
centenas de denúncias de maus tratos contra crianças e idosos no Brasil estão
sendo apuradas com agilidade? O Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo
respeitado? E o que os poderes públicos fazem diante da exploração sexual e do
trabalho infantil?
Cheguei
a pensar que a intenção é que as publicações que vão resgatar os bons costumes
e os valores morais previstos na lei sancionada no Rio se tornem best sellers
no Brasil. Assim, os tons da moralidade serão disseminados e todos salvos do
inferno... Que tal canalizar esta energia para garantir direitos humanos e
instituições públicas que cumpram seu importante papel nos três poderes? Talvez
assim a população se livre dos maus costumes de gestores públicos e
parlamentares.
Até
mais, ou até a próxima viagem por esse Brasil de contrastes e contradições!!
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*Claudia Correia, assistente social, jornalista,
Mestre em Planejamento Urbano. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br
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meu depoimento é suspeito por ser sua mãe. mas, o fato de vc se interessar, pela vida que os idosos estão tendo e as muitas informações aqui mencionadas, já me deixa cheia de orgulho.
ResponderExcluirFicar antenada ao que ocorre ao nosso redor mão tem idade nem classe social. Viemos para melhorar o mundo e todos são responsáveis beijos mãe