terça-feira, 12 de março de 2013

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta


RETRATOS FALADOS
ou sobre alteridade e esperança
  


   

  
Mione Sales*

« Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
(…)
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens »
.

FERNANDO PESSOA

« Mulher lendo » - Picasso

Folheava meio a esmo um livro de crônicas e comecei a ler algo que me interessou. Era de Clarice Lispector. Gosto muito do jeito corriqueiro, quase banal que ela empresta aos seus escritos… Sempre algo fortuito a conduz para o labirinto profundo dela e de nós mesmos. Nessa leitura rápida, gostei em particular da crônica « Uma Encarnação Involuntária », talvez por já ter experimentado sensação semelhante. Dizia a personagem-narradora:

As vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela, me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queria o retorno a mim mesma.

Num ônibus carioca certa vez fui tomada de enorme empatia por alguém que eu jamais vira antes. Tratava-se de um homem. Um jovem trabalhador, como tantos outros. Uma pessoa comum. No entanto, a dureza percebida nos seus traços, a falta de beleza, uma espécie de desamparo existencial tocaram-me. Sua presença ali a pouco mais de um metro conferia-me a certeza de que aquela pessoa era real e tinha, como eu, uma vida, por mais difícil que fosse a sua: uma vida que de algum modo lhe dava um sentido para levantar, trabalhar, lutar ou simplesmente se revoltar por tudo isso.  Eu não o conhecia e nem por isso, ele deixava de existir. Fechava e abria os olhos e ele continuava ali, na minha frente, existindo. Como aquele homem, milhões. O mundo vai continuar girando, cada vez mais veloz, a despeito de mim e de nós. Por mais que a consciência das coisas seja marcada por uma indelével pegada subjetiva, as coisas e o mundo existem à revelia de mim: aquele trabalhador, o ônibus, ou os versos e tabuletas de que falava o poeta Fernando Pessoa.


Essa consciência do outro era a um só tempo onipotente, ante um pequeno grão dentro da poeira infinita de indivíduos, e também gritava de impotência: quem sou eu afinal e o que posso fazer por essa pessoa, que nem sabe quem eu sou, mas eu sei quem ela é?


« Mulher numa poltrona vermelha » - Picasso

Embora aturdida por minha descoberta, por tamanha proximidade transformada de repente em abismo, aliviava-me o fato de que não era piedade o que eu sentia. O que eu experimentava era um profundo amor fraterno por um desconhecido. Contudo, deveria calá-lo, pois seria loucura confessar a um estranho: « eu me importo com você, com sua vida, sua família, suas preocupações, desatinos, com a sua fadiga, sua impaciência e me comove este seu sorriso! » Não podia lhe dizer que tinha a sensação de pertencermos todos a uma grande fratria, mas que nos perdêramos… Ele entenderia se eu falasse que uma organização social injusta nos separou?

Aquele instante me dava assim em grandes goles e vertiginosamente uma consciência profunda da realidade daquele ser humano à minha frente. Exercitava a alteridade sozinha, como uma estrangeira a viajar num ônibus num outro país. Ele seguramente não entenderia a minha língua tampouco o meu discurso nem o meu interesse. Estranharia a minha intimidade como um astro de novela olha com surpresa e indiferença a fã que lhe pede um autógrafo num caderninho. Ela o conhece, enquanto ele sequer desconfia da sua existência, tão material e ameaçadora subitamente.

Este tipo de imagem-emoção em movimento me levara instantaneamente a pensar, ainda no ônibus, em Sartre e no debate da esquerda acerca do humanismo. Pela grande influência filosófica católica que se teve na França, Bélgica e demais países dessa mesma extração religiosa, o humanismo fora considerado, pela esquerda, durante um longo período, uma corrente ambígua. Nem de direita nem de esquerda. Perigosamente indefinida e escorregadia. Poderia, pois, servir a múltiplos propósitos.




Embora consciente da importância da polêmica, inquietava-me: posso ou não, afinal, ter empatia por essa pessoa, apesar dela ignorar quem eu seja? A sua existência concreta me comove. Posso dizer que a amo, a despeito de tudo, como a milhares de pessoas desconhecidas, humildes e fortes, que lutam para sobreviver, respiram com barulho, por vezes cheiram mal, mas sobretudo desprendem o calor de corpos vivos? Em tempo, porém, lembrava que fora Sartre mesmo quem escrevera que « O Existencialismo é um humanismo ». Marx não escrevera literalmente, mas eu mesma reunira, durante o meu mestrado, elementos do seu pensamento e pude afirmar que o marxismo era também um humanismo. Se não fosse, como bem lembrava Adam Schaff, de que adiantaria lutar por uma nova sociedade que não contivesse de alguma forma uma visão de homem movida por um projeto de felicidade?

De todo modo, Marx e Engels escreveram uma das frases que constam entre as mais belas do Manifesto Comunista : « É preciso encarar com serenidade as condições reais de existência ». Guardado o seu caráter poético, este apelo não compactua com nenhum tipo de conformismo, pelo contrário, assinala a necessidade de se pensar com objetividade e mais de não se desesperar, por maior que seja a nossa revolta e indignação. Pode-se estender esta reflexão à necessidade de organização política e sindical, mas também à importância de uma análise realista, sem, todavia, perder-se o idealismo.


Sartre – Gramsci - Marx

Assim, apesar do meu encanto pelas artes e pelo conhecimento - valores, símbolos e experiências em geral florescentes sob a égide das classes dominantes - sempre tive uma grande simpatia pelos pobres. Suas vidas me pareciam menos óbvias e consequentemente mais intrigantes. Assistente social, de esquerda e talvez também por minhas influências católicas da infância, cresci acreditando que o sofrimento tempera e forma as almas. O tempo e a experiência, mais a reflexão filosófica e os anos de psicanálise me ensinariam, porém, a ser menos irredutível e menos romântica, aprendendo a enxergar os dramas e conflitos humanos para além do esquema ideológico cerrado da luta de classes. Moral e ideologia, como descobri, nem sempre coincidem no interior dos indivíduos. Isto se chama perceber as contradições humanas no andar de baixo e, por vezes, também nas alturas, sabedora de que são perenes e ao mesmo tempo se renovam as pulsões, motivações econômicas e paixões que inspiram, incitam, ajudam a construir, mas também corroem e minam relacionamentos, pessoas e coisas.




A constatação de um certo beco sem saída da humanidade foi justamente tema de muitas obras de arte e, dentre elas, de uma das grandes peças de Bertolt Brecht, A alma boa de Setsuan. A grande coincidência, em relação aos dias de hoje, é que o cenário da peça do dramaturgo alemão é a China. Ali seres de outro planeta teriam ido averiguar se haveria chance de encontrar alguém no mundo ainda passível de atitudes generosas. Milena Carasso resume com maestria o que pretendeu o escritor alemão:

A questão ética que o belíssimo texto de Brecht levanta é a da bondade e generosidade, não em seu aspecto mais óbvio e clichê, mas sim discutindo a liberdade que se tem ou não em ser bom e generoso e a viabilidade destas virtudes no mundo real e moderno. Será possível ser bom num mundo em que se passa fome? E, acima de tudo, qual é o tamanho da fome que justifica cruzar o limite da ética? A resposta pretendida por Brecht, ao que parece, é positiva, mas não ingênua.

A generosidade, embora um valor indiscutivelmente louvável, deve ser acrescida de firmeza. Sim, a gentileza deve ser firme para que possa sustentar-se e, em ação, promover produtos e não perdas.

Aquele que é gentil e que compromete assim sua própria integridade, acaba por desistir da bondade ou perder sua capacidade material e psicológica de exercê-la. Dando tudo e ficando, consequentemente, desprovido de recursos, o gentil torna-se inútil até para si mesmo, além de promover a manutenção perversa das relações de ingratidão e abuso. O que consegue ser gentil, porém firme, pode, no entanto, continuar exercendo generosidade sem que para isso precise dar mais do que tem, ou ainda, o que é importante, do que quer dar. (« 
A alma boa de Setsuan e a bondade », 30/03/2010).


Qualidades humanas, portanto, são exigidas dos indivíduos não apenas na vida privada, mas em interrelação e sobretudo na vida pública. Talvez para escapar deste mesmo tipo de impasse e combater o ceticismo no seu tempo, Antonio Gramsci, pensador marxista italiano do século passado, produziu uma reflexão muito difundida no seio da esquerda, acerca do « pessimismo da razão » que deve supostamente se combinar ao « otimismo da vontade ». Um não deveria, assim, existir ou funcionar sem o outro. Difícil não concordar com o pensador italiano.

Todavia, pelo fato talvez de morar hoje em um país e num continente onde o pessimismo é a tônica, em decorrência, dentre outros, da forte crise econômica combinada à primazia do cartesianismo, sinto-me inclinada a nutrir-me cada vez mais da seiva do otimismo, para escapar da voragem do pessimismo e despero cultural que assola essas paragens europeias numa época tão seca de esperanças. Ler seguidamente notícias sobre suicídios, cometidos até por adolescentes e crianças!, é algo que me enche de temor e espanto, e ao mesmo tempo que me impulsiona a buscar saídas para os impasses deste século que nem bem começou já se mostra tão velho.


 « Conversa » - J. Muñoz

Por isso, quis, inspirando-me na curiosidade de Clarice e de Brecht, inquirir aleatoriamente alguns conhecidos sobre pessoas reais, que tenham sido marcantes em suas vidas. Se já não podemos mais acreditar nos deuses, pergunto: é possível acreditar no homem e na mulher de carne e osso, do passado ou do presente? Reproduzo, portanto, alguns testemunhos, pequenos flashes de admiração e respeito por algumas « almas boas » do nosso tempo, no Brasil e alhures. Este esforço encontra-se longe de privilegiar qualquer estereótipo de « pessoa de sucesso » ou « perfeita » - como bem refutou o poeta Fernando Pessoa: « nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo. (…) Arre, estou farto de semideuses ! Onde é que há gente no mundo ? » (Poema em linha reta). Tais testemunhos referem-se a pessoas que, de algum jeito, nos impressionaram, ajudaram a perserverar e a não perder a capacidade de sonhar:
  
« Meu padrinho era uma pessoa linda e muito importante para mim. Ele parecia uma árvore de tão forte. Nunca pensei que poderia perdê-lo ». ( S., mulher, 42 anos)

 « Ontem, no aniversário de morte de 10 anos do meu pai, dei-me conta do quanto ele me ensinou. Ele era um homem tranquilo, calado, mas que amava se proporcionar pequenos prazeres: uma bicicleta nova, comer em restaurantes, comprar bons livros, livros de arte… Somente agora penso que estou conseguindo me autorizar a ser como ele e experimentar viver a vida com seus prazeres frugais ». (C.,mulher, 47 anos)
  
«Admiro muito uma grande amiga de infância com quem tenho contato até hoje, por sua temperança, serenidade e sabedoria para analisar e lidar com múltiplas situações, enquanto eu era e muitas vezes ainda sou tão impulsiva. Essa amiga enfrentou grandes barras familiares, mas sempre reagiu com leveza, dignidade e inteireza. Lidou com morte e com vida de cabeça erguida. Muito corajosa, muito sensível e muito humana essa minha amiga: em suma, uma grande mulher”. (M., mulher, 46 anos)

"Vou falar de minha mãe, pessoa que, a cada dia, tenho a consciência de que foi uma mulher admirável. Desde menina lutou por um ideal: ser professora - as plantas, segundo ela, eram seus alunos; foi revolucionária nas ‘lutas de classes’ no município em que trabalhava, no fim dos anos setenta, sem que tivesse, efetivamente, o conhecimento teórico da esquerda, mas posicionava-se graças ao seu olhar sobre as injustiças, desmandos e coronelismo praticado nesse território, pelas más condições de trabalho na educação e salários injustos. O que, aliás, se perpetua até hoje. Ficou um período afastada do exercício profissional, e mesmo quando a alternância de poder foi efetivada, recusou, um cargo de direção em sua escola, por dois motivos principais: queria voltar ao seu cargo de professora, além de reconhecer em outras colegas de trabalho, maior  qualificação para o cargo, sem que, com isso, a tornasse menos importante. Outra qualidade sua que me marcou era sua capacidade de amar a todos de sua família; mesmo com brigas homéricas, esse amor não era abalado. Doava-se a todos nós, aos amigos, conhecidos, desconhecidos, sempre  com muita generosidade. O exemplo mais forte dessa capacidade de amar se fez presente em sua própria vida: quando pra ela  já não havia mais esperança de cura de um câncer de mama, se fez forte, para partilhar coisas boas com as pessoas que atravessavam a mesma situação e também para se dedicar aos cuidados da saúde de sua mãe, de 85 anos. Esta última, embora, sem perspectiva de recuperação, devido ao seu estado físico e pelo diagnóstico médico, se recuperou, vendo depois com imensa tristeza a minha mãe partir." (N., mulher, 49 anos).

« Uma pessoa que me marcou muito foi minha professora de piano. Ela é japonesa. Bastante exigente, mas sabia me encorajar e era muito carinhosa, ao mesmo tempo. Sinto falta dela ». (J., menina, 10 anos)

« Duas pessoas viviam nas ruas, em praças de grandes cidades. Uma mulher, entre 25 e 30 anos, obesa. Ao acordar, em meio a todos os transeuntes pegava um pequeno espelho e passava um batom nos próprios lábios. Preservava algo de sua identidade em meio à imensa população que não a enxergava. Um jovem, num carnaval, ‘me cantou’ e vivenciamos encontros afetivos absolutamente inesperados. ‘Dos pequenos frascos vêm os melhores conteúdos?’ " (L, homem, 47 anos)

« Meu ídolo chamava-se Z. Ele foi o grande amor da minha mãe. Era uma pessoa muito libertária, um intelectual, boêmio e maravilhoso tradutor de cinema que me iniciou na sétima arte. Foi um grande amigo e me inspirou pra fotografia, pras leituras… Eu realmente o admirava muito! » (F., homem, 47 anos)

« Quando eu era criança, eu adorava a minha irmã mais velha. Gostava mais dela do que da nossa mãe. Ela me levava para o cinema e cuidava de mim. A gente cresceu, depois envelheceu. Quando voltamos a viver juntas, não a reconheci. Não sei onde foi parar aquela irmã… Talvez nós simplesmente mudamos. » (Y., mulher, 76 anos)


O fato é que, como disse o poeta Caetano Veloso, « ninguém é comum »:

Sou um homem comum /  Qualquer um / Enganando entre a dor e o prazer / Hei de viver e morrer / Como um homem comum /  Mas o meu coração de poeta / Projeta-me em tal solidão / Que às vezes assisto / A guerras e festas imensas / Sei voar e tenho as fibras tensas  / E sou um/ Ninguém é comum / E eu sou ninguém.”

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Mione Sales – é assistente social e doutora em Sociologia (USP), com formação em Literatura Comparada (Paris 3). Tem investido nas redes sociais como um dos espaços possíveis de militância. Feminista insurgente, fundou o grupo de discussão « Lutas Lobas » no facebook.

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Links

ARTIGOS E TEXTOS





Sales, Apolinario Mione. “Marxismo, ética e socialismo”. Dissertação de mestrado. ESS/UFRJ. 1993. (mimeo).




MÚSICA

[Peter Gast, de Caetano Veloso]

[E agora, José ?, de Paulo Diniz]

[Pequeno Perfil de Um Cidadão Comum, de Belchior]

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