terça-feira, 21 de setembro de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta




Texto e imagens
Mione Sales*


« Vento, ventania
Me leve prá qualquer lugar
Me leve para
Qualquer canto do mundo
Ásia, Europa, América... »
Biquini Cavadão


Cérebros-voadores: entre sons e desmistificações


Atos falhos existem. Os lapsos cuidadosamente monitorados por psicanalistas que o digam. Por isso, penso que vale a pena contar, a título de introdução, uma pequena historieta que explica o meu interesse pelo tema dos papagaios muitos anos antes de conhecer o Festival de Dieppe. Um dos motivos desse interesse conto logo. O outro, blog-leitores, vocês somente vão ficar sabendo ao final da matéria.



Pois bem. Desde que comecei a ouvir falar na França em « cerf-volant » - um termo que, no Brasil, equivale a « pipa », « papagaio » e mesmo « arraia » (no Ceará), certa homofonia impôs-se em prejuízo do sentido. Ao invés de perceber gamo (“cerf”) e voador (“volant”), decodificava sonoramente algo, dito muito rápido, como “cerveaux-volants”: “cérebros-voadores”. Para quem está aprendendo um novo idioma, há, por vezes, uma linha muito tênue entre o certo e o errado, em razão de uma escuta ainda não apurada, um ouvido não treinado suficientemente. Ambiguidades imperam solenes, posando com ares de certezas até ruírem como a areia de castelos na praia. Freud vem em meu auxílio, sugerindo uma outra explicação para o porquê dessa confusão fonético-semântica: os franceses são tão racionais e expressivos que tudo nos leva a imaginá-los, de forma fetichizada, quase sempre primordialmente como « seres pensantes ». Por isso, os cérebros-voadores !

Recentemente, um amigo, porém, me sugeriu uma outra possibilidade de homofonia: « cerveaux-lents », « cérebros-lentos »… Talvez, lá no fundo, a minha “lentidão kunderiana” contribua mesmo para esse tipo de mistificação.

Na verdade, conversando com Jean-Michel Petit, um dos participantes históricos do Festival Internacional do Papagaio de Dieppe, na França – que acabou de acontecer, entre 11 e 19 de setembro na Normandia - ele me explicou que a expressão « cerf-volant » provém de uma espécie de inseto. Penso, de imediato, num louva-deus, por sua fragilidade. Substituo, assim, cérébros ou cervos-voadores pela imagem de um inseto garranchudinho.

Faz sentido, visto que « papagaios » ou pipas têm uma estrutura frágil. No Brasil, por exemplo, a tradição consiste num losango de papel de seda sobre um delicado esqueleto em madeira fina, suspenso por uma linha, a ganhar coloridamente os céus.

No entanto, mais uma desmistificação se faz necessária: o inseto em questão é um coleóptero bojudinho ! Paro, espero e decifro, como recomendava Drummond, e percebo que o « cerf-volant » - o inseto - com as patas abertas, adquire uma forma que pode se assemelhar a uma modalidade de papagaio. Ele tem também na cabeça uns ferrões que lembram os cervos! De todo modo, como se diz por aqui, ce n’est pas évident … Imagem por imagem sou mais a « arraia » cearense !


Concluo, assim, que a etimologia das palavras é mesmo assunto para cérebros-voadores como o meu, que adoram viajar ! Mas falemos finalmente de Dieppe e do Festival de Papagaios.


Quantos céus um homem deve voar

"Que sont les cerfs-volants ?
Ils sont l'image de la joie sur le visage d'un enfant
lorsqu'il sent pour la première fois la traction qu'exerce le vent.
Ils sont l'image du miracle de ‘ça vole’.
Ils sont une façon d'exprimer l'inspiration artistique de chaque homme
lorsqu'il essaie de trouver un sens à son action et son existence.
Ils sont le miracle qui remplis le ciel de beauté…".*
(Don Mocke, USA)


Fonte : Association Turbulences

 
Jean-Michel Petit ou simplesmente « Jamie » é um francês de uns sessenta anos, recentemente aposentado, que quedou de paixão pelos papagaios, há uns 24 anos atrás, ali mesmo em Dieppe – que realizou agora o 30° Festival Internacional de Cerf-volant. Segundo ele, é o maior Festival da Europa. No caso de Jamie, foi paixão à primeira vista. Disse-nos ele - em entrevista especial para o blog Mídia e Questão Social -, que deparar com o céu repleto das cores dos papagaios foi algo tão impressionante que o conquistou para sempre.

 
Jean-Michel Petit, da Association Turbulences (Dieppe, 2010)


Isto levou-o, alguns anos depois, a criar, em 1991, a « Association Turbulences » (Turbulências) [http://turbulences.cv.free.fr/invite.html], com vistas a reunir outros apaixonados por este esporte, que depende basicamente do espaço livre e do vento.


Outros membros de « Turbulences » (Dieppe, 2010)     


O que encanta nessa prática cultural e esportiva é, antes de tudo, o seu aspecto lúdico. Homens, mulheres e até famílias, portanto, podem libertar a criança que existe dentro de cada um. Os « cérebros-estressados » cedem a vez justamente à leveza do brincar e descontrair que o contato em especial com a praia permite.


« El tiempo passa »: Festival Internacional de Dieppe, 30 anos de história


Foto: Mione Sales


Dieppe é uma cidade portuária na Normandia. Uma parte do seu turismo hoje tem a ver com esse festival que começou ali despretensiosamente em 1980, sucedendo-se sempre a cada dois anos. No início participaram apenas 6 países da Europa e hoje já são mais de 40. Em 1988, pela primeira vez,
dois países distantes honraram o Festival com a sua presença: a China e a Tailândia. Talvez por isso, a Tailândia tenha sido em 2010 o primeiro país a ser homenageado pelos « cerf-volistas ».




Se em 1990, eles já reuniam um público de 120.000 participantes, para assistir, nos gramados de Dieppe, as manobras do competidores, em 2004 esse número saltou para 450.000 espectadores, consagrando a beleza e a leveza desse espetáculo aéreo. Como diz Jamie, da Associação Turbulências, o que atrai no papagaio e faz dele um prazer e uma diversão familiar é o seu caráter, ao mesmo tempo, ancestral e universal.


 País homenageado: balé tailandês, no sábado 11 de setembro.

Tradição circence francesa: « pernas de pau », domingo 12 de setembro

Essa « paixão pelo vento », a qual remonta historicamente a 3.500 anos atrás na Indonésia, segundo pesquisas mais recentes, deve falar ao Icaro que dorme dentro de cada um de nós. Se não podemos, pois, voar, por que não amar tudo o que voa? Ou como diria o poeta Mário Quintana:

"Se as coisas são impossíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las!
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Turbulências é filiada à Federação do Voo Livre e é parceira da organizadora do Festival, a Associação « Dieppe capital do Cerf-Volant ». Mas em que consiste esse Festival? Os participantes-concorrentes dos diversos países se inscrevem nas modalidades, por exemplo, « cerf-volant » acrobático e « cerf-volant » de combate (lembram das linhas das pipas brasileiras cheias de cerol ? Na França, ele se chama « manjha » e é feito com pasta de arroz e vidro triturado. Ganha, portanto, quem consegue cortar e eliminar a pipa adversária.)


                                                   Foto: Mione Sales


A partir de 2002, o Festival integrou os « cerf-volant » gigantes ou estáticos, que ficam suspensos  presos a uma base pesada. Um espetáculo realmente de tirar o fôlego!


Foto: Mione Sales


Dada a presença de diversos países, essas grandes figuras ganham formas as mais diversas, inspiradas nas culturas japonesas, tailandesas, francesas, americanas, belgas, entre outros [Ver também os links]. Como se trata de um Festival Internacional, as interpretações e criações são múltiplas e ricamente variadas. Ou seja,  soltar pipa também é cultura!


Foto: Mione Sales


Há também recortes temáticos. As mulheres já foram homenageadas e também o meio ambiente, por meio da fauna e da flora, assim como a música e o som.  Verdadeiras músicas do vento!





Esse « hobbie » conta com 11 festivais somente na França. No mundo, países como Inglaterra, Espanha, Itália, Japão, Líbano, India e, pertinho do Brasil, a Colômbia, têm também seus festivais.


Do combate à arte: pipas e questão social no Brasil


Fonte : Blog Insoonia


E por falar nisso, o Brasil estava no festival, representado por um casal, um carioca e uma paulista, os quais mantinham um stand todo verde e amarelo, como bem se pode imaginar. Havia ali uma grande pipa homenageando as festas juninas! O “cerf-volista” carioca disse já ter tentado criar um festival semelhante no Rio, mas na altura em que tentou, a Prefeitura não se interessou nem autorizou. Talvez em razão da má fama adquirida pelas pipas, depois que elas começaram a servir de « aviso » não aos navegantes, mas aos traficantes, quanto à chegada da polícia. Mais uma vez cabe recorrer ao poeta, dizendo : « Ora! Não é motivo para não querê-las! ».



Fonte : Blog Insoonia


Cabe decididamente resignificar e nos reapoderarmos dessa arte eólica, primitiva, natural e lúdica. Em pesquisa pela Internet, conseguimos identificar alguns eventos realizados em São Paulo, onde há, inclusive, um Pipódromo, e em Minas Gerais, mas sob o comando da Companhia de Energia Elétrica / CEMIG.  Se os meninos do Rio e do Brasil, tivessem à sua disposição mais recursos educacionais e criativos, menos se envolveriam com as atividades ilícitas.

Uma outra limitação quanto à brincadeira com os papagaios pela criançada brasileira é o risco de acidentes com a fiação elétrica. Impõe-se, portanto, a necessidade de criar espaços livres e seguros para o exercício dessa prática pelos meninos e meninas do nosso país. Uma prática que permite que tenham opções de lazer longe das telas de tevê, que é ao que se resume muitas vezes o cardápio cultural das classes trabalhadoras pauperizadas.

Céu livre


« Me leve para
As bordas do céu
Pois vou puxar
As barbas de Deus »
Biquini Cavadão


O Brasil é reconhecido mundialmente como um dos países praticantes do papagaio tradicional. No Rio de Janeiro, segundo dado divulgado no site do Festival de Dieppe, são vendidas 40 mil pipas todos os anos, voltadas à prática do cerf-volant de combate.

Prafraseando o poeta, “voar é preciso, viver não é preciso”. Pensemos, então, na imensidão do litoral brasileiro, em especial no Nordeste, quantas praias e cidades não poderiam abrigar festivais dessa monta ? Pense-se em toda a rede de sujeitos envolvidos, investindo numa sociabilidade artística popular, com a realização de oficinas, trocas de experiências e muita linha solta no céu?

E por falar no Nordeste, a professora e cronista que vos escreve, reivindica em nome de todas as meninas e mulheres brasileiras o direito de soltar pipa. Quando criança, morando num dos subúrbios de Fortaleza, era totalmente proibido ou mal visto uma menina soltar « arraia ». Só experimentei uma vez e rapidamente graças a um paquera, quando tinha uns dezesseis anos. Essa é sem dúvida uma das injustiças de gênero!


Foto: F. Hugon  


Trocando ideias com amigas de outros estados (Rio de Janeiro e Minas Gerais), inclusive no contexto do Festival de Dieppe, descobri que essa era uma característica sobretudo da educação repressiva no Nordeste. Menos mal. Nunca é tarde para se exercer a liberdade ! Soltei finalmente pipa, agora, junto com a minha filha em Dieppe.


Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora da FSS/Uerj. Contato: mioneecia hotmail.com

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Tradução

* "O que são as pipas?
Elas são a imagem da alegria no rosto de uma criança,
quando ela sente pela primeira vez a tração que exerce o vento.
Elas são a imagem do milagre do ‘isto voa’.
Elas são um modo de expressar a inspiração artística de cada homem
quando ele tenta encontrar um sentido para sua ação e sua existência.
Elas são o milagre que enche o céu de beleza…".

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Glossário

Homofonia - palavras que se pronunciam igual, porém se escrevem de forma diferente são homófonas.

Fonética – é o ramo da linguística que estuda os sons físicos do discurso humano, especialmente a sua produção e recepção.

Semântica – é o estudo do sentido das palavras de uma lingual.

“Lentidão kunderiana” – referência ao livro A lentidão do autor tcheco Milan Kundera.

Etimologia – estuda a origem das palavras.

Cerf-volista – praticante da arte de soltar pipa, papagaio ou “cerf-volant”.

Cerol – mistura de cola e vidro moído, aplicada à linha das pipas.

Eólico – diz-se daquilo que é movido pela força do vento.

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Links

Para navegar

(site da Association Turbulences)

Federação francesa do Voo Livre)

(clube francês do « cerf-volant » )

 (sobre o « cerf-volant » de combate)

(Artigo em francês sobre a prática dos « papagaios » na América do Sul e Central: Brasil, Colômbia, Chile e Guatemala)

(« Papagaios » na Índia)

(uma outra Associação « Vento Cortês », que existe desde 1978, dessa vez em Woincourt, na Picardia - Norte da França)

(para dar uma ideia dos « cerf-volistas » ou mais amplamente « eolistas », em referência às várias curtições ao vento)

(outros festivais, dessa vez em Berck sur Mer, em Pas de Calais, também dos lados da Mancha)


Oficinas de pipas

(o belo site Ecoarte)


No Brasil

(Festival da CEMIG – companhia elétrica de Minas Gerais)

(Com muitas fotos e tipos de pipas nacionais e internacionais)

(site paulista de pipas)

(site carioca de pipas)


Em Portugal



Para ouvir

(música eólica)

(reportagem sobre música eólica)

(Clip-vidéo de « Le vent nous portera », música do grupo Noir Désir)

(Outra bela versão da mesma canção)

(A emblemática « Vento Ventania » do Biquini Cavadão)

4 comentários:

  1. OS Cérebros-voadores, assim como as pipas buscam em toda sua simplicidade trazer beleza e cor à vida.
    Se as últimas o fazem no campo estético, os primeiros ficam com a nada fácil tarefa de trazê-lo ao espírito humano através de idéias e constatações que, de tão simples, atingem uma sofisticação ímpar.
    Que todos nós consigamos a proeza de nos permitir voar.
    E que às crianças, principalmente, sejam garantidas as condições para conhecer e praticar um esporte tão interessante com segurança e sem preconceito.
    Parabéns pelo belo artigo!

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  2. O movimento do seu texto faz lembrar algumas de minhas trajetórias urbanas, em especial a minha época de guri. A realidade hoje das brincadeiras aqui na periferia é outra, essas ações, mesmo as mais infantis, já foram incorporadas no abecedário da chapa quente, é, triste realidade a nossa, onde passar o cerol não é só passar cola de madeira diluída em água na linha rococó ou na linha 10 e as pipas, papagaios e morceguinhos não vão mais para o céu só para anunciar a diversão da molecada, hoje anuncia os “homens, com suas fardas, cacetetes e camburões... desrespeitado as leis com suas poderosas credenciais”. Bem, mas, eu quero falar do meu gozo estético de ver um dia desses, em Duque de Caxias na saída do CIEP onde leciono à noite, a moçada reunida na Praça empinando as suas pipas sem a menor preocupação com “os hômi”, simplesmente brincando... crianças, jovens, homens, cada um com a sua raia ou o seu morceguinho, preocupados apenas com a beleza das cores e do movimento. Fiquei olhando aquilo com tanto gosto que por pouco não perdi o ônibus (risos)... Quanta nostalgia em uma paisagem quase literária! Faltava a literatura, bem, não falta mais.
    A imagem somada ao seu lindo texto fez a minha linha do tempo recuar, me afastei e logo me levou às cenas e lugares familiares: a rua, os pés descalços no asfalto, o corpo completamente desprovido de limite, confesso que era muito agitado para soltar pipa e ficar horas e horas passando cerol na linha ou olhando para o céu, mas, é claro que a pipa me leva para um cenário de fim de tarde, na volta do colégio, de entrar em casa feito um raio e tirar a roupa imunda do colégio, rumo à apoteose dos carrinhos de rolimã, das bolas de gude, do garrafão ou a deliciosa pelada com o golzinho marcado com sandálias ou Kichute. Bem, só tenho a agradecer pelo lindo “revival”.
    Obrigado Mione pelo lindo texto... que me fez voltar a ser o Ricardinho (risos).

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  3. Querida amiga cronista,
    Adorei! Gosto de descobrir a etimologia das palavras, as suas essências, seus reais significados e os vários “apelidos” que atribuímos a elas. Descobrir que os “cérebros-voadores” franceses podem colorir o céu da França, assim como podem cortar os céus dos subúrbios brasileiros e fazer a festa da meninada, que entre cerol e fios da rede elétrica, “peleiam” em suas “guerras”infantis. Melhor encher os céus da Normandia com pipas coloridas aos milhares de aviões de combate do “Dia D”. Ah, também, sofri opressão de gênero, só os homens da minha família podiam soltar “papagaio”. Moral da História: tenho um cérebro voador, literalmente... Beijo grande.
    Andréa Lima

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