sexta-feira, 19 de março de 2010

Editoria Jornalismo na Correnteza

*Favela Dona Marta: “Vendo assim de fora, está bom”*

Quem afirma é uma mãe, subindo o morro com seus filhos recém-saídos da escola.  Embora more na favela, ela acrescenta: “a gente não sabe como está por aí”... e faz um gesto amplo com a mão, tentando abranger toda a favela.


*Ana Lúcia Vaz


Quinta-feira, dia 18, moradores da favela Santa Marta, em Botafogo, com o apoio de várias ONGs de direitos humanos, lançaram a “Cartilha popular do Santa Marta: Abordagem Policial”. Um caderninho em tamanho de bolso, com algumas instruções como: “Os (As) policiais não podem gritar com você ou te xingar de ladrão(a), vagabundo(a), piranha etc. Isso é crime de injúria, difamação, calúnia e mesmo abuso de autoridade. Se te chamar de ‘PRETO safado’ estará cometendo crime de injúria racial. Ninguém pode te tratar como suspeito por causa da cor da sua pele ou da sua origem.”

       Ana Claudia, uma das organizadoras da cartilha.

Visto assim de fora, parece óbvio. Mas para os moradores do Santa Marta, a primeira favela “pacificada” pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, são direitos que ainda estão por ser conquistados. O direito de serem tratados como cidadãos e não como ameaça pública.

É confortável fazer reportagem numa favela “pacificada”. Durante o dia, a polícia nos recebe simpática, na entrada. Subi tranqüila, sabendo que não ia ser surpreendida por um tiroteio, não ia cruzar com um guarda do tráfico, nem com o caveirão. 

“As pessoas têm um sentimento de agradecimento. Não tem mais tiroteio, podem deixar os filhos na rua, isso é bom”, explica Cleiton Pereira. Mas, visto de dentro, o medo se apresenta. 

Cleiton explica que a rotina dos jovens que saem de noite é combinar de subirem junto, com medo da abordagem policial. “De madrugada a abordagem é muito pior”. “Se você põe uma bermuda, um boné, pra frente ou pra trás, eles (os policiais) já te param mandando por a mão na parede.” A quadra da escola de samba, está interditada. As festas, em qualquer lugar, vigiadas. “Eu às vezes trabalho com som, em festa”, explica Cleiton. “A polícia fica lá, do lado de fora, controlando. Daí, quando toca um funk, mandam tirar: ‘eu não gosto de funk’!”, é o argumento do policial, segundo Cleiton, que explica,logo em seguida, que ele não usa funk proibidão, nem apelativo... “Só toco funk *light*”.

Esse jeito defensivo de falar - de quem reclama seus direitos e imediatamente cuida de se explicar, se justificar - é a tônica das falas, durante o ato.Mesmo MC Fiell, um dos líderes do ato de lançamento da cartilha, reafirma ao microfone: “Esta ação é totalmente legal, totalmente pacífica!”

Relatório produzido pela Comissão de Direitos Humanos da ALERJ (AssembléiaLegislativa do Estado do Rio de Janeiro) mostra uma polícia que faz lembrar os tempos da ditadura militar, quando a juventude sabia que discordar, resistir ou simplesmente agir diferente da regra imposta pelo poder era risco de vida. Só que a regra, na favela, é definida pela polícia. Segundo MC Fiell, “90% dos policiais age de forma racista, preconceituosa e arbitrária”.

Alan Barcelos, artista do movimento Visão da Favela, conta que foi levar a namorada no ponto de ônibus, no pé da favela e, quando voltou, foi abordado por policiais que lhe pediram documentos. Como estava sem documento, foi coagido a entrar no carro da polícia e levado à delegacia. Muita gente na praça assistiu à cena. Mas “todo mundo fica quieto, acuado”, explica Alan. A cartilha, portanto, é mais um instrumento na luta pela mudança da cultura. Uma cultura que associa favela a violência e bandidagem, que faz dos moradores de favela, principalmente os jovens negros, suspeitos até que provem o contrário.

Alan Barcelos, do Visão Favela, diante das câmeras de segurança

Quem é culpado por isso? O Estado. A polícia. A mídia. Mas não só. Todos nós, moradores da cidade, temos nossa parcela de responsabilidade. Incluindo os próprios moradores da favela. Pesquisa do IBASE, publicada em novembro de 2007, afirmava que as críticas dos moradores à polícia “não se dirigem aos métodos violentos em si mesmos (as críticas não são propriamente à violência policial em si, mas sim à falta de seletividade de seu alvo)”*.

A cultura da violência, que autoriza a polícia a ignorar os direitos humanos diante de criminosos, faz parte de nossa herança histórica e é reafirmada diariamente pela ação do Estado, pela mídia, pelos comentários postados nos sites jornalísticos e pelas conversas de bar. A tragédia fica completa quando soma-se um outro elemento cultural: a criminalização da pobreza. E, desta correnteza, nem a esquerda escapa. Porque, para a esquerda, nem todo o pobre é criminoso. Mas é a pobreza, a grande explicação política para o crime. Sendo assim, fechamos o círculo vicioso do qual os jovens do Santa Marta se esforçam para escapar.

O que a experiência do Dona Marta não deixa mais esconder, mesmo para quem está de fora, é que o problema da violência nas favelas não é o tráfico. Já sabíamos que o tráfico não gera violência fora da favela, pois traficantes de classe média são presos sem troca de tiros. Mas a hostilidade policial e a falta de investimentos estatais nas favelas pacificadas deixam à mostra que a violência do Estado contra as favelas independe da presença do tráfico.

É possível viver em paz no Dona Marta. Contanto que você fique calado, não saia de noite, não circule por aí sem documentos, não invente de parar num bar para beber em horário de trabalho, não seja homossexual, não use bonés ou bermudas largas, não goste de funk e, se for negro, melhor se disfarçar de branco. Pacificar, ao que parece, para a polícia carioca, é parecido com higienizar. Não apenas reprimir o crime, mas a cultura da periferia.

Ainda assim, os mordores não perdem as esperanças.“A polícia veio pra encurtar a distância entre a favela e o Estado, né?”, pergunta Alan. “Mas eles só estão nos criminalizando”, lamenta. Em vez de investimento em saúde, educação, cultura e saneamento, como era a promessa da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), o único investimento que Alan viu entrar na favela foram as câmera de vigilância espalhadas pelos postes.

“Educação, cultura, acho que a salvação está aí”, reflete Alan, sobre o que pode evitar que os jovens optem pelo crime. De novo, o óbvio. Mas que precisa ser repetido insistentemente, quando se fala de dentro da favela.“Isso é nossa reivindicação maior!”

                                                           Oba! Fotografia!



*Ana Lúcia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.
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*Pesquisa: “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em buscade reconhecimento" – em: http://www.ibase.org.br/

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