terça-feira, 2 de março de 2010

Editoria Jornalismo na Correnteza

João Hélio X Ezequiel: um enredo jornalístico
  
Reprodução Google 

              







                      
                   





Ana Lucia Vaz

Embrulha o estômago ler as matérias e comentários publicados nos últimos dias, nos jornais e sites da mídia comercial, sobre a libertação de Ezequiel Toledo de Lima, um dos condenados pela morte do menino João Hélio. Não foi diferente há três anos, quando o menino morreu, arrastado pelo carro roubado de sua mãe, preso ao cinto de segurança. A mídia comercial correu para transformá-lo em mártir, a favor de sua própria causa (os mártires são úteis exatamente porque não podem contestar os significados que os vivos decidem atribuir-lhes): a defesa da redução da maioridade penal.

Os rapazes que conduziam o carro que matou João Hélio transformaram-se em monstros nas matérias jornalísticas, sob os aplausos entusiasmados de boa parte da população brasileira. Como sempre acontece, em momentos de comoção, em que a correnteza do discurso dominante se impõe com demasiada violência, as vozes em contrário apareceram, mas eram tímidas, defensivas, acuadas. Defender o Estatuto da Criança e do Adolescente, falar em recuperação social de criminosos, naquele momento, era como enfrentar de frente uma tsunami.

Três anos depois, termina o período de reclusão do então adolescente que participou do crime e a mídia, de novo estimulada por um público sedento de sangue, retoma sua campanha pela redução da maioridade penal. E abre o caminho para outra, ainda mais perversa, manifestada nos comentários dos leitores: a defesa da pena de morte.


Para agradar o consumidor

A mídia comercial não utiliza a morte brutal de João Hélio apenas para alimentar sua campanha pela redução de direitos sociais. O crime gera tanta notícia porque vende jornal! Ao interesse político soma-se o interesse comercial.

O jornalismo comercial estuda o perfil consumidor do seu público. Interessa o que o sujeito compra. O que faz com o que compra não interessa muito. Do último jogo do campeonato de futebol aos rastros de sangue deixados pelo corpo de uma criança, o foco central do trabalho diário do jornalista da mídia empresarial é produzir informação que venda jornal. O resultado social pode ser negativo, como o pânico alimentado pela espetacularização da violência, ou a apatia social diante de centenas de denúncias de corrupção pouco investigadas.

Dois requisitos fundamentais se combinam na produção da notícia comercial. Para agradar o consumidor, é preciso manter-se o mais próximo possível do senso comum, garantindo identificação do público com a notícia. Ao mesmo tempo, é preciso surpreender diariamente o consumidor. Como, sem escapar do senso comum?

Utilizando a mesma dinâmica que as novelas. Um desenrolar lento, embora aparentemente veloz. Muita coisa acontece, mas nada muda. Mudam os personagens, os lugares e datas, muda o lide. Mas o enredo se repete e o interesse do receptor dependerá da intensidade dramática e espetacular de cada episódio. Cuidadosamente medida diariamente.

A enxurrada de comentários violentos contra a garantia de direitos humanos a Ezequiel é o termômetro que vai pautar o jornalista nas próximas reportagens. Um círculo vicioso de violência e sangue. A mídia continuará, então, reproduzindo e reforçando a lógica de uma sociedade vingativa, que prefere criar bodes expiatórios e malhar o Judas, a reconhecer e buscar soluções verdadeiras para seus problemas.

Sob o ponto de vista comercial, a história de João Hélio e Ezequiel é ótima. Uma criança assassinada diante da mãe, rastros de sangue, corpo dilacerado. E um adolescente participando do crime. Espetacular em termos dramáticos! Está garantida a atenção do público para o velho enredo: a vítima inocente e suas perspectivas interrompidas, a dor e a indignação da família e a urgência de uma solução imediata: punição dos culpados. Não para que outros episódios desses não aconteçam. Pelo contrário! Apenas para saciar a sede de vingança do público e manter acesa a chama da intolerância que continuará oferecendo material de qualidade para a cobertura jornalística.


A perversidade “imparcial”

Muitos jornalistas que vivem o cotidiano das redações comerciais sofrem, mais ou menos, com a sensação desconfortável de alimentar vampiros sem querer. De viver eternamente a contradição entre o sonho de ajudar a construir uma sociedade melhor e a experiência diária de ajudar apenas a melhoras as vendas, a custa do sonho. Nos manuais, lhes exigem que mantenham distanciamento e frieza em relação aos fatos, em nome da objetividade. É uma armadilha para disfarçar as posições do jornal. Mas nossas emoções estão sempre conosco.

Um aluno me contou a dificuldade dos jornalistas de TV para fazerem a passagem de suas matérias ao lado do corpo esfacelado de uma criança. “O pessoal terminava a passagem e sentava no chão, exausto, tremendo, chorando”. Eu apostaria que, em geral, na ilusão de que haviam controlado suas emoções. Impossível! Ao conter suas emoções, o jornalista não as superou, apenas empurrou para dentro. Engoliu sem mastigar.

Elas retornarão em ódio, rancor, depressão ou qualquer outro sentimento destrutivo. Em matérias onde ele vomitará o ódio, a violência e a perversidade que existe em cada um de nós, reforçando-os. As manchetes e reportagens dos dias seguintes, e até hoje, oferecem um espetáculo de horror: o linchamento dos rapazes, condenados não apenas à cadeia, mas ao lugar de Judas. Bodes expiatórios de nossas perversidades reprimidas.


A guerra jornalística

A mídia comercial tem seus interesses políticos e os defende ardentemente. Ao divulgar o fim da pena de Ezequiel, O Globo aproveitou para recolocar o debate sobre a redução da maioridade penal. Todo o problema passou a ser o fato de o rapaz ter tido que cumprir apenas 3 anos de prisão porque era menor de idade na época.

Então as mídias alternativas retomam, também, a defesa dos direitos da criança e do adolescente, dos direitos humanos e, principalmente, o ataque à lógica perversa e violenta da mídia comercial. E é neste último aspecto que acho que erramos a mão. Erramos porque, embora com conteúdo diferente, reproduzimos o princípio fundamental que rege o jornalismo comercial: o confronto entre o bem e o mal, onde só uma das partes pode sobreviver à batalha final. Localizamos o bem e o mal em lugar diferente. Mas também deixamos escorrer do canto da boca o desejo de aniquilar o “mal” em nome do “bem”.

A cultura maniqueísta, que organiza o mundo divido em bem e mal, vistos como dois extremos antagônicos e inconciliáveis não foi inventada pelo jornalismo. Ela está entranhada na tradição cristã. E talvez venha de antes.

O jornalismo, por sua vez, tem suas próprias técnicas de reconstrução da realidade, bem sintonizadas com o senso comum da eterna luta entre o bem e o mal. Afinal, se não fosse o Diabo para nos aterrorizar, de onde o Papa tiraria seu poder? Se não fossem os bandidos e corruptos, quem daria crédito à polícia e à imprensa?

Mas ao atacarmos a mídia comercial com o mesmo desprezo por ela, que ela demonstra pelos pobres, estamos, afinal, reforçando a intolerância e a violência, da qual o capitalismo sempre soube se alimentar brilhantemente. Lutaremos até o fim de nossas energias, sem que o inimigo recue um milímetro sequer.

Não é muito difícil perceber, no confronto entre os Estados Unidos e a Al-Qaeda, que fundamentalismo islâmico e imperialismo norte-americano são dois lados de uma mesma moeda. Que os Estados Unidos precisam de um inimigo para viver. Assim como a Al-Qaeda só existe graças aos Estados Unidos.

De longe é mais fácil de enxergar, mas toda lógica de confronto tem esse dom de alimentar o adversário. Porque precisa dele para viver. É conseqüência natural da ação.

Isaac Newton já nos ensinou que a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e direção, em sentido oposto. Aprendemos na escola essa lei, mas resistimos a enxergá-la na sociedade. Como se os seres humanos e sua sociedade não estivessem submetidos às leis da natureza.


De volta a Ezequiel

Não sei ao certo como podemos escapar a este círculo vicioso da guerra jornalística. Também estou enredada. Ao criticar o jornalismo atual, não escapo de exibir minhas próprias intolerâncias. Mas gostaria que a suíte do momento fosse Ezequiel, não João Hélio. E muito menos a mídia. Quem é este rapaz de 19 anos, recém-saído do Degase? Quais suas chances de sobrevivência? E de reabilitação? O que foi, para ele, o crime que cometeu? O que passou no Degase? Também outros menores em conflito com a lei, outros casos de proteção a criminosos ameaçados de morte.

Mas, como chegar à fala desses personagens desconhecidos e normalmente ignorados por nós? Falamos sobre eles, por eles, em nome deles. Mas raramente ouvimos suas vozes, mesmo quando nos permitimos entrevistá-los. Dificilmente eles poderão se livrar das garras de nossas próprias crenças, de nosso mundo polarizado entre o bem e o mal. Mas na vida real não existem monstros assassinos, nem vítimas inocentes. Apenas nos enredos de filmes e novelas. E em nossos textos rápidos, enxutos, contundentes e, por isso tudo, superficiais, quase sempre espremidos entre as paredes estreitas do maniqueísmo cristão, alimentando infindáveis guerras santas.



*Ana Lúcia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.
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Mais informações:

- Este artigo está disponível no site da RENAJORP, desde o dia 01de março de 2010.

- Para saber mais sobre o caso, busque na internet por 'João Hélio'. Ezequiel, como a maioria dos rapazes como ele, raramente tem nome nas matérias dos jornais comerciais.

Um comentário:

  1. Olá!

    Eu li, gostei e escrevi um texto no meu blog sobre o assunto. No fim, me dei a liberdade e coloquei um link pra esse aqui.

    http://leonafinlandia.blogspot.com/2010/03/ezequiel-no-fantastico-e-imediato-circo.html

    Boa análise!

    Léo, Finlândia.

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