CRITICA DO FILME
Mione Sales
« On n'est jamais à 100 %, dans le sport comme dans la vie »*.
Mandela
Ok. « Invictus » traz um título kitsch e há momentos em que se percebe quase um esforço a mais na tentativa de comover o espectador. No entanto, apesar dos protestos de tédio de certa crítica cinematográfica especializada brasileira, enxergamos, contrariamente, nessa mais recente e trigésima produção de Clint Eastwood um excelente filme.
Nós que integramos o blog M&QS não nos dispomos, como vocês blog-leitores bem sabem, simplesmente a nos alinharmos à correnteza do senso comum. Sondamos, espreitamos, desafiamos e até descemos corredeira abaixo, mas precisamos estar convencidos disso. Queremos, então, inspirados na nossa sensibilidade e experiência com a questão social, mas também em nossas exigências pessoais e profissionais para tratar um tema de tão grande monta como o racismo e o apartheid na África do Sul, comentar por que apreciamos e achamos importante assistir a esse filme.
« Invictus » não constitui apenas um mero drama nem traz em seu enredo nenhuma enquete policial. Fala em amor, mas pelo ângulo do que acabou e não tem conserto. A exceção da prestimosa secretária do presidente Nelson Mandela, as demais mulheres são praticamente figurantes. Mas se a vida amorosa de Mandela – seu apelido – não tem mais jeito ou se ele não possui mais condição de nela interferir, ele vai se dedicar a reconciliar uma nação. Talvez seja esse, inclusive, um dos últimos relatos épicos de (re)fundação de uma nação, à porta que estávamos, em meados dos anos 90, da emergência espetacularizada da « globalização », com outros apelos e determinações. Entendemos que a crítica cobra de Eastwood um posicionamento heróico relativo ao passado recente da África do Sul, que ele não teria tido na ocasião, pois ainda portava sua couraça de ator «cowboy americano». No entanto, essa mesma crítica não consegue perceber a fundo a gama de nuances que o atual cineasta Eastwood põe em cena nesse filme que fala essencialmente de política. Essas são as lentes fundamentais para apreender o sentido dessa película: gostar e entender de política, pela sua margem esquerda.
O rugby é apenas a página de rosto de um trabalho, delicado e atento – ficcional e real, visto que se trata de um fato ocorrido em 1995 -, de reparação das marcas dolorosas do regime afrikaner. Penso que nem mesmo o livro Cidade Partida (Zuenir Ventura, 1994) que retrata a experiência de divisão da cidade do Rio de Janeiro, nem o ápice da crise da violência carioca no contexto do massacre da Candelária e da chacina de Vigário Geral, ambos em 1993, conseguem se aproximar a fundo do que foi o drama do apartheid. Aliás, o derramamento de sangue nos massacres de Sharpeville em 1960 e, depois, o de Soweto, em 1976, foram os sinais de que aquele regime, ali implantado em 1948 (paradoxalmente a data da Declaração Internacional de Direitos Humanos da ONU), precisava sem mais demora ruir. O mundo comoveu-se e mobilizou-se paulatinamente contra ele.
Portanto, Eastwood soube escolher, mais uma vez, um tema da maior pertinência. Desde que ele passou a se dedicar mais ao outro lado da câmera, o seu foco e grau de precisão crítico-políticos têm se refinado e se acentuado cada vez mais. Não adianta, portanto, invocar novamente o « mocinho » e o « bandido » que ele representou inúmeras vezes para promover o divertimento do espectador, pois Eastwood assumiu desafios e fronteiras narrativas novas e amplas. Não se resigna em ser pedagógico, mas também não deixa de propor inéditas leituras do real e do humano. Faz arte, porque consegue discorrer sobre a questão social sem deixar de ser poético. A história é assim como um rio que corre em suas tomadas, planos e enquadramentos. Acha-se sempre presente, ainda que de forma figurada.
Desse modo, num tempo em que a política acha-se desmoralizada e cuja tendência maior das pessoas é a preferência pelas « águas espelhadas » do lago, em detrimento do seu mistério e profundidade, ele insiste em revisitar um tema que ainda incomoda. O racismo não é pauta vencida. Ele pulsa no seio da violência que se reproduz na Africa do Sul com a velocidade de um raio e estragos de um ciclone. Para as novas gerações que têm a memória curta ou simplesmente nada vivenciaram da imensa fissura em preto e branco daquela nação, o filme pelas mãos talentosas de Eastwood revela-se uma ótima pedida, na perspectiva do (re)encontro dos sulafricanos e dos jovens do resto do planeta que contam ir à Copa do Mundo de 2010 com a dura lembrança da experiência do apartheid.
Mandela precisava agir e rápido, logo após ter assumido o governo, depois das esperanças criadas em torno do seu nome, desde os tempos da prisão. Mandela vê, então, no rugby, que apaixonava e dividia os sulafricanos a chance do resgate daquela nação. Há que se ver o filme, para saber o que se passa, mas penso que vale a pena destacar a extrema habilidade de Mandela. Enquanto presidente, ele precisaria, naquela altura, falar horas a fio com seu povo. Seriam necessários rios de discursos, mais muito papel e tinta. Diante de um impasse e duro recomeço de um país cindido, ele deixa-se guiar por sua intuição grandiosa e pela sabedoria de « homem velho » e experiente (tal como Eastwood, do alto dos seus quase 80 anos), em que aparentemente a racionalidade política parece ficar de lado, para apoiar e torcer pelo fraco time da casa, o Springboks. Como bem sublinhou Vicent Julé, assiste-se na grande tela do cinema, mais do que o encontro de Mandela e o capitão do time François Pienaar, e da política com o esporte, ao encontro de « um país e seu destino ». Muita coisa vai acontecer, então. Toda uma reconstrução simbólica, política e humana será posta em marcha.
Naquele clima de início de governo em que tudo ainda está por ser feito, Mandela escolhe o caminho da paz – ou o do « meio » - (após uma história pessoal de lutas e inclusive de defesa da luta armada nos anos 60, antes de sua prisão em 1962), e mais que isso, o investimento numa experiência esportiva que falava à alma e às visceras de brancos e negros. O resultado é um congraçamento, em que cada cidadão sulafricano se vê refletido no sorriso do outro. Era apenas o ponto de partida ali de uma longa história intersubjetiva e inter-racial, mas um verdadeiro “match point” em matéria de estratégia política, que afinal serve para isso: para o Outro, para o país e não apenas para o mero locupletamento pessoal e eleitoreiro. Em “Invictus”, a escolha política bem como a cinematográfica são sutis. Requisitam novos olhos, lentes e homens.
Ao final de tudo, até que não é tão ruim assistir à partida de rugby. E se foi bom passear pelo lado menos turístico da Cidade do Cabo, vendo crianças, que podiam ser brasileiras, a jogar num campinho, melhor ainda foi valorizar a fina sensilidade e arte em que consiste fazer uma grande política. Mandela deu asas à reconciliaçao daquele país e alento novo aos que militam na esquerda e no movimento negro ali e alhures. Nesse último, contudo não menos importante, quesito, aliás, como diz Olivier Barlet, em « Invictus », «opera-se uma inversão: o roteiro estabelece uma distância em relação ao esquema habitual do filme hollywoodiano, onde o branco costuma se sacrificar pelo negro, mas sem lhe dar a palavra. Mandela é claramente o tema e o centro do filme, sua clarividência e sua determinação são os motores do roteiro. É ele quem vê claro (…) e se impõe” [Ver abaixo em Africultures.com]. A política parece, assim, ainda valer muito a pena.
Mione Sales – é assistente social (UECE), Mestre em Serviço Social (UFRJ) e doutora em Sociologia (USP). E-mail : mionesales@gmail.com
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Curiosidades importantes sobre o filme
Morgan Freeman (ator de Mandela) há muitos anos queria fazer um filme inspirado na autobiografia de Nelson Mandela Um longo caminho para a liberdade, cuja produção extrapolaria em horas certamente as possibilidades de um longa metragem. Foi ele, assim, um afro-americano, que propôs a Clint Eastwood, diretor de talento confirmado, a realização deste filme, calcado em evento emblemático da nova história da África do Sul.
« Invictus » é baseado na obra Playing the enemy – Nelson Mandela and the game that made a nation (Penguin Press HC, 2008), de John Carlin, autor e jornalista escocês, que trabalhou na África do Sul, de 1989 a 1995.
O roteirista, Anthony Peckham, é de origem sulafricana, como boa parte da equipe técnica e a maioria dos atores.
O filme foi inteiramente rodado na Cidade do Cabo e arredores.
Cinema
“Malcolm-X” (1992), de Spike Lee. (participação especial de N. Mandela)
« Um grito de liberdade » (1987), de Richard Attenborough
“Goodbye Bafana” (2007), de Billy August.
Música
(Canção “Free Nelson Mandela” (1983), por The Specials)
(Disco Nelson Mandela (1986) - Youssou N’Dour
(Canção “Mandela Day” (1988) pelo Simple Minds)
(Canção “Mandela” (1989), pelo famoso guitarrista Carlos Santana)
(Canção « Freedom now » (1989), por Tracy Chapman)
(Canção “Mand’ela” (1996), por Chico César)
Mais:
Canção « O homem velho » (1971), por Caetano Veloso.
Livros
MANDELA, Nelson. Un long chemin vers la liberté (Long walk to freedom). Fayard, 1995.
SAMPSON, Anthony. Mandela: The Authorised Biography. Harpercollins publishers, 2000.
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. SP, Companhia das Letras, 1988.
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Tradução citação
* “Não se é jamais 100% nem no esporte nem na vida”.
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