sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

« Eu preciso dessas palavras escrita* »


                                                          Artur Bispo do Rosário

Por Mione Sales


Artur Bispo do Rosário (1909-1989), o autor da frase-poema-manifesto acima, ao longo dos 50 anos em que esteve internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, desfiou tecidos e com a linha coseu, em paciente exercício de criação artística e de autocuidado do seu inconsciente, imagens de animais, plantas, mas especialmente palavras. Coseu com a paciência e perseverança digna de Penélope, à espera de Ulisses em sua Ítaca. Artur Bispo esperava a si próprio e ao mesmo tempo legava à humanidade a revelação da necessidade de expressão que cada homem ou mulher guarda dentro de si. Ele, outrora marinheiro e depois trabalhador doméstico numa residência no Rio de Janeiro, salta dessa condição para um mergulho nos arquétipos e personagens do seu Sergipe natal, figuras míticas com seus fardões e estandartes. Artur Bispo produz assim uma arte entre os muros da instituição hospitalar, uma arte que atravessa tempos e continentes, somando e multiplicando elementos regionais e características universais.

Pensemos aqui em especial sobre o significado de seu apelo quanto ao direito à palavra: oral evidentemente, mas sobretudo o direito à palavra escrita e consequentemente à leitura. O belo e o sublime nessa inscrição é que, no fundo, trata-se mais do que de um apelo; é a manifestação de uma necessidade visceral de expressão, que os homens e a forma como se organizam econômica, política e socialmente não lhe permitiram usufruir no contexto da sua vida útil e disciplinada de trabalhador. A sua sede de comunicação transbordou, levando-o a um paradoxal isolamento, que lhe permitiu dizer muitas coisas e sentimentos ao mundo. Todos os que conheceram a sua obra de perto e leram a sua biografia não têm como deixar de se emocionar pela sua tenacidade e criatividade, que nem chegou a ser alvo - diferentemente do artista plástico Fernando Diniz -, do maravilhoso trabalho terapêutico desenvolvido pela grande Nise da Silveira. Arthur Bispo foi autodidata até no seu tratamento pela arte, que acontecia paralelamente ao trabalho de vanguarda que se desenvolvia também no Rio de Janeiro, dessa vez no Hospital Pedro II.

Aproveito o mote da figura de Artur Bispo do Rosário, cuja obra foi homenageada pelo Conselho Federal de Serviço Social, na edição de 1997 do Código de Ética do Assistente Social, para iniciar uma conversa com um pé na teoria e outro na política. Trata-se da minha descoberta recente de uma autora conhecida de círculos feministas e literários, Gayatri Spivak, que publicou um livro célebre, Podem as subalternas falar? (Can the subaltern speak?, 1988), traduzido recentemente para o francês, pelas edições Amsterdam. Este é um texto impactante e polêmico, mas que faz pensar. No momento, quero, porém, apenas expressar o meu incômodo com a provocadora pergunta de Spivak, cujo texto não constitui uma fala isolada, mas se insere num grupo, os « subaltern studies» com base na Índia e ramificações na Inglaterra, Estados Unidos e mesmo na América Latina.

Certo, Artur Bispo é homem, mas fala, ou melhor, cria e escreve, comunica-se, transcende fronteiras com seu português imperfeito, vide o seu « Eu preciso dessas palavras escrita »*. No entanto, em resposta à pergunta de Spivak acerca dos subalternos, trata-se de algo que, homem ou mulher, não precisam de autorização e se, em estado de dominação, exploração ou falta de liberdade, terminarão por quebrar as correntes e desafiar as sombras da caverna. Assim, fazem-no e têm feito em momentos cruciais da história do Brasil e mundial os movimentos sociais.

Mas quem pode livrá-los da pecha de subalterno(a)s, se ela se inscrever na vida, olhar e corpo de cada um deles? Como muito bem lembrou Olga Arruda, citando Graham Greene, no livro Mídia, Questão Social e Serviço Social (org. Sales e Ruiz, 2009), « palavra não se cura ». Oprimidos ou explorados são condições, estados duradouros ou temporários, ou ainda situações sofridas pelos trabalhadores ou por determinados homens, mas cuja nomeação – no contexto da luta e leitura teórico-crítica dos que preconizam a sua superação - não avilta, nem reforça uma desqualificação ontológica daqueles sujeitos, que intuímos na categoria mobilizada por Spivak. Que o digam a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire ou o Teatro do Oprimido do querido Boal, que fizeram escola e cujas ideias percorreram o mundo. Vão me lembrar que foi o bom e velho Gramsci que no cárcere recorreu à categoria de subalterno. O que somente mostra que ninguém é perfeito. Se ele cunhou a genial expressão « filosofia da praxis” para burlar a censura, ao se referir ao marxismo, não teve a mesma felicidade com o outro termo em substituição ao proletariado. Prefiro, assim, quando ele se refere aos « simples » e aos « de baixo », cuja caracterização não é nada indigna, sobretudo quando o próprio Gramsci lhes atribuía a possibilidade de filosofar - qual o nosso Artur Bispo, o artista plástico paciente da Colônia Juliano Moreira, um complexo e sensível homem do povo, do Brasil do século XX.

Aproveito o ensejo polêmico e catártico para apresentar a quem ainda não conhece o Café Filosófico (TV Cultura) e especialmente a filósofa e poeta Viviane Mosé, que de forma brilhante nos fala sobre « O que pode a palavra »… Fica aqui o nosso agradecimento à colaboração de Graziella Comisso, amiga e interlocutora.




Para ver e saber mais

- « O Bispo ». Série Vídeo-cartas Fernando Gabeira. http://www.youtube.com/watch?v=x9wc-_XoCcw
- « O Bispo do Rosário ». (Brasil, 1991) http://www.youtube.com/watch?v=3n01GTVVYig&feature=related
- « O Senhor do Labirinto » (Brasil, 2008) http://vimeo.com/6970596

http://www.agencia.se.gov.br/noticias/leitura/materia:8185/filmagens_de_o_senhor_do_labirinto_chegam_ao_fim_em_sergipe.html

Mione Sales é assistente social, professora de Serviço Social (Uerj), doutora em Sociologia e graduada em Literatura Comparada. Contato: mionesales@gmail.com.

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