Estou aqui de passagem*
Os sem-domicílio fixo (SDF) na região parisiense
Foto de divulgação do filme Os Amantes da Pont Neuf
“vazio agudo
ando meio
cheio de tudo”
PAULO LEMINSKI
Mione Sales*
Acaba de ser divulgada uma pesquisa sobre a população de rua na Île de France, que engloba a região parisiense. Ela vem confirmar e desmentir alguns clichês sobre as ditas pessoas sem-domicílio fixo (SDF). Uma informação que chamaria atenção de um leitor brasileiro é o fato de não ter crianças na rua, salvo excepcionalmente em grupos de famílias ciganas, mas que circulam esporadicamente sobretudo em trens e metrôs para pedir esmola. Por vezes, pais ou mães de origem árabe também pedem esmola nas escadarias internas do metrô com uma criança ao colo. Na verdade, eles não pedem, apenas estendem as mãos em atitude de súplica. Pela presença da criança ou pela postura corporal submissa e destituída de direitos, pois são forçosamente imigrantes ilegais, essa imagem choca.
No entanto, nos meus sete anos de Paris, fui me habituando a ver muitos idosos, pessoas alcoolizadas, homens e mulheres negros, africanos ou das Antilhas, com distúrbios psiquiátricos, e também uma expressiva massa de homens imigrantes do Leste Europeu e de outros países em conflito. Nas ruas, encontramos ainda punks e seus cães, um fenômeno mais cultural que social, mas que se integra à paisagem de bancos de praças, jardins públicos, calçadas e caniveau (sarjeta).
Ao longo desses anos, a crise social e econômica se intensificou, o que repercutiu duramente sobre o financiamento das políticas sociais e sobre as ajudas sociais às associações célebres na ajuda aos sem-abrigo, como o Restaurante do Coração e a Fundação Abbé Pierre.
Dois filmes franceses contribuem para que se tenha uma ideia do que significa morar na rua numa metrópole como Paris: um lendário é Os Amantes da Ponte Neuf (1988), filme com Juliette Binoche, tão duro quanto lindo. Como se trata de uma película do final do anos 80, encontra-se um pouco defasado, no entanto vale a pena ser visto pelo ângulo complexo, trágico e amoroso dos casais que compartilham a rua e que nem sempre as pudicas pesquisas demográficas enxergam em sua contagem individual. Um mais recente, La Faute à Voltaire (2001), do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, na verdade, fala dos trabalhadores de rua, no caso vendedores de rosas, muitos dos quais imigrantes ilegais, mas que têm acesso aos abrigos da prefeitura. Ele oferece um painel bem atualizado desta modalidade de alojamento social e suas contradições, por meio de seus personagens de origem tunisiana.
Traduzimos abaixo uma pequena matéria publicada no Jornal Metro Paris, da última quinta-feira, 27 de outubro, especialmente para os nossos blog-leitores. Vale a pena depois comparar os dados da pesquisa francesa com as questões apresentadas pela assistente social Hilda Corrêa Oliveira, em entrevista a este blog, na sessão 5 Dedos de Prosa (24/08/2011), sobre a população em situação de rua fluminense.
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Um basta nos clichês sobre os sem-abrigo
PESQUISA – Segundo um estudo, a maioria dos sem-domicílio fixo da Île de France não apresenta problemas psiquiátricos graves. Esquizofrenia e depressões severas são, todavia, sobrerepresentadas.
Foto: Mione Sales
O estereótipo do sem-abrigo alcoolizado e louco é antigo. No entanto, um estudo sem precedente apresentado quarta-feira pelo INSERM (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica) e pelo Observatório do SAMU Social de Paris obriga a rever certos preconceitos. O documento é o resultado de uma enquete de grande fôlego sobre a saúde mental de 859 sem-abrigos da região Ile de France, entre fevereiro e abril de 2009.
É verdade que 21.176 pessoas, ou seja, um terço desta população da Região, estão afetadas por problemas psiquiátricos graves. Uma porcentagem três ou cinco vezes mais alta que aquela observada na população total. Os problemas psicóticos (13%, dentre os quais 8% de esquizofrênicos), os distúrbios de ansiedade (12%) e as depressões graves (7%) são as principais incidências. «Nestes casos, a doença constitui um elemento anterior à perda de alojamento», indica Pierre Chauvin, epidemiologista do Inserm. Segundo Marie-Jeanne Guedj, psiquiatra do centro hospitalar Sainte-Anne, «a esquizofrenia é dez vezes mais presente entre os sem-domicílio fixo» e gera uma espécie de «aposentadoria social», o que acelera a passagem para a rua. Além do mais, um terço dos sem-abrigos consome regularmente substâncias psicoativas, essencialmente tabaco (53%), álcool (21%) e maconha (16%).
Mas dois terços dos SDF, ou seja, a maioria distingue-se muito pouco da população em geral. Contrariamente aos sem-abrigo que sofrem de problemas psiquiátricos graves, esta maioria não conheceu muitas experiências de fugas, violências sexuais, conflitos entre pais e problemas de alojamento na sua juventude. « Neste caso, os problemas depressivos e as adicções são essencialmente consequência de uma vida sem-domicílio fixo », conclui Pierre Chauvin.
O estudo precisa ainda que, entre os sem-abrigos de 18 a 25 anos, as mulheres são maioria, 91% têm pelo menos um nível de escolaridade secundário, e mais de dois terços nasceram na França. Entre esses jovens, aproximadamente 40% apresentam problemas psiquiátricos graves, um entre cinco sofrem de dependência ao álcool, e um quarto consome maconha regularmente.
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Mione Sales – é professora e pesquisadora de Serviço Social (FSS/Uerj). Doutora em Sociologia (USP), têm diálogos fecundos com a Comunicação, Antropologia, Filosofia e Literatura. Contato: mionesales@ gmail.com
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- Verso da canção « Eu não sou da sua rua », de Arnaldo Antunes e Branco Mello, mais conhecida na voz de Marisa Monte.
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Links
http://www.metrofrance.com/paris/l-etude-qui-demonte-les-cliches-sur-les-sdf/mkjz!fIzzWcIUa1QY/
[« L’enquête qui démonte les clichés sur les SDF »]
[« L’enquête qui démonte les clichés sur les SDF »]
[Resto du cœur]
[Site do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica]
[Site do SAMU Social de Paris]
[Matéria no jornal Le Monde sobre a pesquisa do INSERM]
[clip 1 dos Amantes da Ponte Neuf]
[clip 2 dos Amantes da Ponte Neuf]
[Rita Mitsouko, da trilha sonora dos Amantes da Ponte Neuf]
[Trailer 1 de Faute à Voltaire]
[Trailer 2 de Faute à Voltaire]
E viva a mundialização do capital...
ResponderExcluirC@ro @nônimo ou @nônim@a,
ResponderExcluirDigamos que este é realmente o saldo perverso da mundialização do capital: a expansão do desemprego e da miséria. A espiral da competição por uma simples vaga no mercado de trabalho gira cada vez mais veloz, deixando um lastro de destruição, inclusive, no âmbito das relações interpessoais. Felizmente, nem tudo é mau e as informações também circulam mais rapidamente, assim como a indignação. Iniciativas interessantes e inovadoras das massas e de movimentos organizados em todo o mundo em reação a este estado de coisas têm surgido, do mundo árabe ao movimento "occupy Wall Street". Perseveremos em nossas lutas e sonhos!
Abraços e obrigada pela visita,
Mione*
ps: tb não consegui postar com o meu nome! :-(