segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Editoria Jornalismo na Correnteza

O ESPAÇO DA CRÔNICA


Ana Lúcia Vaz*


A classificação dos diferentes gêneros jornalísticos nunca foi assunto que me interessasse muito. O resultado é que, depois de 20 anos de jornalismo, 11 também como professora de jornalismo, continuo compreendendo mal a tal classificação. Portanto, não me arriscarei, aqui, a explicar o que é a crônica, muito menos a dissertar sobre seu espaço ou importância.

Apenas sei que, se existe algum lugar no campo da produção jornalística, para o que publico a seguir, é o lugar da crônica.

Se existe algo capaz de caracterizar todo o tipo de jornalismo, em sua dimensão ideal, é a busca da verdade. O que, depois de Marx e Foucault e a globalização da comunicação, ninguém mais pode acreditar como algo universal. Então, resta ao jornalismo buscar, não a Verdade (inatingível), mas o verdadeiro. Em minhas experimentações, ando, neste momento, convencida de que o texto verdadeiro é aquele que nasce da própria experiência. Que, longe de buscar generalizações a partir desta experiência, se permite mergulhar fundo no que há de único, e ao mesmo tempo compartilhável, em cada experiência. Esse é o lugar da crônica.


Sobrou pro pé




- Caraca Ana! O que houve? Cheguei agora e me disseram que você foi atropelada?! Foi saindo lá de casa?

- Pois é. Na Praia de Botafogo.

- Mas foi uma bicicleta?

- Não. Um carro.

- Ah! Me disseram que uma bicicleta tinha te atropelado. Mas você saiu de lá de bicicleta, né?

- Foi. O carro atropelou a bicicleta.

- E machucou muito?

- Não. Só o pé. Acho que torci.

- Ai, tô me sentindo super culpada.

- Deixa de bobeira! Cada um tem seu carma.

- Mas você foi lá só pra me ajudar no trabalho da minha filha.

- É, mas fica tranquila que eu tenho minhas questões também. E muitas!!!

- É? Vou tentar. Ah? Peraí!... A Beth está mandando você tomar um banho de descarrego.

- Qualquer um? Como é o banho de descarrego?

- Ih! Espera que ela já sumiu. Vou achar e te ligo.

- Oi minha filha!

- Oi, Beth.

- Anota aí: Desata-nó, aroeira,...

- Beth! Eu não consigo andar. Como vou arranjar essas ervas?

- Ah! O que você tem aí?

- Boldo, sal grosso, amônia, tenho as ervas pro banho que a Velha receitou.

- Então faz a limpeza com amônia, depois o banho da Velha.

Estes foram os primeiros socorros. Além do gelo, evidente. No final estava exausta, mas finalmente em paz comigo e com os últimos acontecimentos. O pé já não doía parado, embora não conseguisse pisar. Descansei um pouco e fui ao Centro, pendurada em muletas, para o primeiro atendimento de emergência. À base de ervas, suspiro e tamborzinho xamânico.
No dia seguinte foi a vez do ritual médico. Emergência do Quinta D’or. O pé fazia lembrar aquelas luvas de borracha, tipo de cirurgião, quando a gente enche de ar para fazer balão, com os dedinho abertos e inchadinhos.



Apresentamos os documentos. A moça da recepção chamou. Fornecemos os dados para preenchimento da ficha. Mais espera. Outra moça chamou. Esta usava jaleco branco. Me levou por uma porta onde me sentaram numa cadeira de roda e um daqueles homens de dois por dois metros, vestindo terno preto e com o ouvido plugado, barrou minha sobrinha. – Aqui não pode acompanhante!

Na sala de triagem, a moça me perguntou o que houve enquanto apertava meu braço com o aparelho de pressão, enfiava um termômetro debaixo do meu suvaco. O pé, mesmo, ela só olhou para ter certeza de que não faltava um pedaço ou coisa parecida. Preencheu outra ficha e prendeu uma fitinha verde com uma etiqueta cheia de informações no meu pulso.

Devidamente etiquetada, fui para outra sala de espera. Toda sala tem uma televisão passando um programa idiota, para nos manter imbecilizados enquanto os médicos cuidam do nosso corpo. Ou melhor, da nossa doença ou avaria.

Finalmente fui chamada. O ortopedista que me atendeu carregava uma dezena de fichas nas mãos. A minha era a primeira da pilha. Olhou meu pé, sem tocar, e mandou pro raio-x.

Foram seis chapas! Enquanto esperava ser chamada novamente, consegui que o rapaz que me carregava pra cá e pra lá na cadeira de rodas me estacionasse num corredor onde a televisão passava futebol. Menos mal!

Nenhuma fratura, pra estranheza do próprio médico, impressionado com o tamanho do hematoma. Uma semana de pé pra cima. Gelo, anti-inflamatório e uma semana de licença do trabalho. Esta, aliás, era a parte boa. O estresse do trabalho, no último período, chegou ao ponto de me fazer aceitar a receita de ansiolítico, dada pela endocrinologista.

Passada uma semana, o pé ainda doía muito para pisar. Lá fui, de novo, a uma emergência! Documentos, ficha, triagem, etiqueta. Desta vez um ortopedista que, pelo menos, examinou meu pé. Mais radiografias, hipóteses, novas radiografias, agora do outro pé, para comparação. Nenhum diagnóstico! Como a burocracia dos planos de saúde não deixa o pessoal da emergência pedir exames mais complexos, o doutor me mandou para um especialista de pé.

Pesquisando na internet, cheguei à conclusão que todo especialista em ortopedia de pé é, na verdade, um cirugião de pé. Tô fora! Quem escapa à tendência de procurar, no mundo, os problemas que melhor sabemos resolver? Nem eu, nem o padre, nem minha mãe-de-santo, nem o médico. Eu é que não ia começar a corrida atrás de um diagnóstico por um cirurgião!!!

A essa altura os hospitais já acumulavam nove radiografias do meu pé esquerdo e três do direito. Nenhuma fratura! A alternativa era a ressonância magnética para analisar os tecidos moles. Fui no primeiro ortopedista, especialista em qualquer coisa, do plano de saúde, que pode me atender. Mais um ortopedista com nojo de pé! E olha que eu mantinha o meu bem limpinho! Deu duas apertadinhas tímidas no coitado, só olhou para o outro porque eu insisti e garantiu que não era nada grave – “Ou você não estava sassaricando por aí assim tranquila!”

Quer dizer, não tinha chegado ao consultório dele, calçando uma bota ortopédica, pendurada em duas muletas?

Finalmente a ressonância! E quatro dias para conseguir que a burocracia médica parisse o resultado: duas fissuras ósseas, no primeiro e quarto metatarsos.

O quarto ortopedista, desta vez numa clínica ortopédica, apertou meu pé com um pouco mais de interesse. Mas sem exageros! Olhou a ressonância e mandou imobilizar o pé por, no mínimo, três semanas.

Mostrei o exame à fisioterapeuta, que me acompanha há anos, e todo o tempo insistia que, pelo tipo de hematoma, devia ter fratura. Diferente dos ortopedistas, ela já apalpou muito pé, inclusive o meu.

Mas também gosta de um exame de imagem.

- Tá vendo? Ainda tem bastante hematoma. E é muito interno. Um monte de líquido, mas tudo pelo meio do pé, olha só! – comentou espantada.

Na imagem invertida, um monte de manchinhas de luz, pontos em branco, mostrava os líquidos espalhados pelo interior do pé.

A imagem dos líquidos espalhados pelo meio do pé me fizeram voltar a Ewá e à âncora esculpida em purê de batata-doce, a pouco antes do acidente.

Quando cheguei à casa do Eraldo, a batata-doce tinha acabado de cozinhar. Descasquei e amassei com as mãos, até virar uma massa de modelar. Sentei num canto do chão com a massa, um prato branco e uma vasilha branca de água. Comecei a modelar a âncora que seria oferecida em ritual a Ewá.

Enquanto esculpia a âncora, fui sendo tomada por uma umidade escura, aconchegante e profunda.



 
- Quem é Ewá? É da profundeza das águas, né? – Perguntei à Mãe-Pequena.

- Não, é da floresta.

- E por que a âncora?

- Não faço a menor idéia! – respondeu enquanto escancarava a boca numa risada frouxa.

Voltei à minha umidade escura, agora sentipensando a umidade escura das florestas fechadas, densas. Algo de umbilical.

Saí de lá ainda um pouco fora de fase. O corpo tomado pela quietude escura e aconchegante da floresta úmida. A mente, ultimamente super-acelerada, correndo na frente do corpo.

Chegar em casa, tomar banho, almoçar e correr para o Centro. Na Praia de Botafogo, os dois carros embicados na direção da rua Farani se preparavam para entrar à esquerda. O Doblô, que estava à direita, com a seta piscando à esquerda, já se colocava à frente do carro preto à sua esquerda. Decidi atravessar, apesar do sinal fechado para mim. Já no meio da rua percebi que o carro preto chegava em velocidade. Bateu desespero. Não acredito! Diante de mim, um tapume de obra, na esquina, não deixou espaço de fuga. O carro pegou a roda de trás da bicicleta. Na queda, meu pé, junto com o chinelo de dedo, se torceu no asfalto. O motorista me socorreu, mas eu mal conseguia apoiar o pé no chão.

Na volta para casa, o balanço inevitável. Havia duas semanas, vinha percebendo momentos, na bicicleta, em que pequenas imprudências me colocaram em riscos desnecessários.

Andar de bicicleta, no Rio de Janeiro, tem que ser exercício de meditação. Se não, vira atividade suicida. As ruas e calçadas esburacadas, o trânsito impermeável à ordem. Ocupamos os espaços que sobram da luta violenta entre ônibus enlouquecidos, pedestres estressados ou desligados com suas músicas enfiadas nas orelhas e carros afobados. Nesta guerra, a bicicleta é invisível. Não lhe pertence à rua, nem a calçada, nem as ciclovias fictícias que a Prefeitura desenha pelas calçadas ou ruas.


Van estacionada na ciclovia em Ipanema

A sobrevivência, como ciclista, depende da consciência de nossa insignificância e do permanente estado de vigília e permeabilidade.

Usar chinelo, por exemplo, é uma estupidez. E o que é pior, consciente. Percebi que estava de chinelo, quando saí de casa. Mas tive preguiça de trocar. “Vou só até ali rapidinho e volto!”, pensei. Só da Fonte da Saudade, na Lagoa, até a Senador Vergueiro, no Flamengo.

Avançar sinal é burrice. “Deduzir” o movimento dos carros e confiar nisso, como eu fiz, coisa de quem perdeu totalmente a noção do perigo. A raiva do arrependimento chegou a se manifestar. Mas já cheguei em casa ciente de que precisava agradecer por ter apenas torcido o pé, a tempo de perceber meu enlouquecimento.

No Centro, o primeiro atendimento de emergência empurrou muita lágrima para fora. A criança da Mãe-Pequena encharcou meu pé em banho de ervas. Depois começou a esmigalhar suspiros e esfregá-los, produzindo uma lama pegajosa, que mataria de asco os ortopedistas. Meus olhos se fecharam e voltei àquele lugar úmido e escuro, meio como um útero. Uma espécie de tristeza muito profunda, muito antiga e desconhecida, quase ancestral, transbordou pelos olhos. O tamborzinho xamânico, na mão da criança, chamava os espíritos da floresta. Ao final, a Mãe-Pequena me explicou que Ewá é a deusa das florestas das ilhas virgens, aquelas que nunca foram pisadas pelos homens. Uma entidade ancestral, já quase esquecida. Desaparecida como as florestas virgens.

 
Ewá


Com o pé para cima, o ritmo foi desacelerando. Depois de dez dias quase sem me mover de casa, acordei com a sensação desagradável de quando a gente toma remédio pra dormir. Mesmo dormindo bem, o corpo pesava para sair da cama. Parei de tomar o ansiolítico. Algumas noites foram um pouco agitadas, mas no geral continuo dormindo muito.

A clausura se transformou em retiro espiritual. Estudo, escrevo, me comunico com o mundo, mas dedico muitas horas aos cristais, ao silêncio, ao auto-cuidado. A vida vai ganhando sentido à medida que perde velocidade. A sensibilidade também se amplia.

Depois de duas semanas voltei ao centro. Desta vez para gira de exu. Recebi passes maravilhosos, alguns apenas através do olhar. As mensagens se repetiram: você precisava parar!

Esta semana, de novo no centro, Maria Padilha, que comanda as festas de exu, olhou meu pé e disse que eu já podia tirar a bota. Mesmo esperando que o médico me autorizasse a tirá-la no da seguinte, vacilei. Não sou de sair jogando muletas para o alto porque um santo ou entidade me disse: “levanta e caminha!” Mas voltei para o meu lugar mais confiante, começando a apoiar o pé (com bota!) no chão. Então foi o meu Tranca Rua que veio tirar a bota para dar um passe e iniciar a fisioterapia.

No dia seguinte, no médico, tive que fazer algum esforço para não dar a perceber que já sabia o resultado da consulta.

Andei procurando na internet quem me ensinasse sobre Ewá. Algumas belas histórias, muito diferentes entre si. Nada que me tocasse profundamente. A gratidão que cresce em meu corpo, por esta energia que fez vazar águas profundas, se alimenta dos rituais a que me dedico no cotidiano. Não importa os nomes e estórias que lhe atribuam.


 
Ewá

Em breve retorno ao trabalho. Nesta última semana de licença, todo ritual está focado em recuperar os movimentos e músculos do pé e descobrir o jeito de manter a consciência da floresta, de volta às ruas e à sala de aula.

Salve Ewá!


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*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.

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