Não bula comigo*
Ou sobre a inocência cruel das criancinhas
Ou sobre a inocência cruel das criancinhas
Desenho: Agnes Chan
Mione Sales*
“Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem”.
CHICO BUARQUE
Pernambuco vem dedicando uma atenção especial aos direitos das crianças e adolescentes. Prova disso é o belo e criativo material da campanha Bons tratos, em que uma lindinha personagem morena, a Florisbela, sai plantando boas ideias e gestos por esses sertões afora de meu Deus. Os pernambucanos estão assim de parabéns. O trabalho de criação é coletivo, como nós aqui da Centopeia, mas tem ali um dedinho de uma assistente social, que agora também é « arteira »: Flávia Gomes. Ela e sua trupe comunicativa vêm contribuindo para pensar novas linguagens na difusão de uma reflexão cultural acerca do comportamento de todos e de cada um. Podemos, portanto, embasados em tais materiais didáticos críticos, nos ressituarmos frente às múltiplas refrações da questão social. O objetivo é romper com preconceitos e atitudes reiteradoras de velhos abismos produzidos socialmente: fome, pobreza e falta de alternativas.
Convido a todos a irem visitar o blog pernambucano CRIAR É CAMINHO…, mas combinei com ela, depois de elogiar a iniciativa, de que responderia aqui na Volta do Mundo, à moda dos repentistas nordestinos. Na verdade, não tenciono responder, mas aquecer o debate em primeira pessoa, aproveitando para exorcizar um pouco os medos e desconfortos todos que nos assolaram quando crianças. Morreremos ambas, sem dúvida, mais leves.
Um verme passeia…*
« Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima
não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração. »
CARLOS DRUMMOND
A imagem que atazanava a pequetita Flavia era o parentesco com o jumento e a rima com o seu sobrenome. Comigo, a associação partiu do meu nome. Mione, um nome incomum, provocava estranhamentos, sendo, assim, quase uma provocação em meio a tantas marias. Vemos quão difícil era e continua sendo o exercício do direito à diferença em diversas paragens. Na minha época de criança, nos anos 70, chic mesmo era se chamar márcia, adriana ou andréa. Só muito tempo depois é que viriam as carolinas e julianas. O leve bullying que me atingiu, principalmente junto à criançada da vizinhança, foi associarem o meu nome à « minhoca »**. Não fui a única criança brasileira a ser premiada com este tipo de apelidinho pejorativo, nem ali também, mas era tímida e depois dessa fiquei achando que qualquer pessoa poderia ligar o meu nome ao daquele bichinho lânguido e meio nojento…
O pior é que nunca tive um verdadeiro apelido para me proteger. Fui eu mesma que me atribuí o « Mimi », quando comecei a fazer movimento estudantil. Devia ter ares de adulta, pois nunca inspirei quando criança esta simpática abreviação. Foi somente lá pelos dezoito anos que ele pegou até chegar no sintético « Mi », que tanto gosto e que me traduz musicalmente. Aliás, alguém uma vez me falou de forma lisonjeira justamente isso: meu nome sugeria uma nota musical única, se pensado em inglês: « mi-one ». Belo consolo, embora tardio para quem teve que se esgueirar da proximidade do « mi » de minhoca e dele se desvencilhar infância afora…
Eles passarão, eu passarinho*…
Albert Einstein
Agora vejam onde repousa a perversidade do bullying sobretudo para quem o vive verdadeiramente na pele, o que nem de longe foi o meu caso: esses apelidos não têm importância alguma. Passarão como tudo o mais passa. Como passa até a lembrança da maioria dos amiguinhos de classe de quem esquecemos não somente o nome, mas também o rosto. No entanto, naquela altura da vida, essas coisas têm um peso e uma gravidade que são quase páreo em importância aos assuntos da agenda nacional e internacional, só que, no caso, na esfera subjetiva: a impressionística mente de uma criança.
Depois de Freud, foi Cazuza quem, no Brasil, deu o primeiro passo na desmistificação do nonsense infantil, quando, com a mais absoluta clareza, referiu-se à « inocência cruel das criancinhas ». Quantos adultos, até hoje, não ficaram desconcertados por uma dose cavalar de honestidade dos pequeninos? Do mesmo modo, à sua maneira, estes últimos, na infância, por vezes também acertam os seus iguais. Como na vida adulta, alguns são mais talhados para bater, outros para levar. Uns falam mais, outros menos.
Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça*
"A criança, nem submissa nem rebelde,
mas inocente e espontânea, fiel ao seu próprio ser"
OSHO.
mas inocente e espontânea, fiel ao seu próprio ser"
OSHO.
E aproveito a digressão para relembrar e homenagear uma amiga de colégio que se perdeu literalmente no tempo. Ela se chamava Nazaré. Sequer sei o seu sobrenome. Nossa amizade aconteceu por volta da segunda ou terceira série do primário, quando sequer tinha me dado conta da importância do sobrenome, como referência fundamental. É bom porque posso falar carinhosamente dela como se se chamasse Maria.
Pois bem. Essa menina espontaneamente partilhava seu lanche comigo e por vezes pagava algo da cantina para mim. Eu era muito « dura », mas administrava com dignidade a minha escassez. Essa colega, no entanto, com muita sensibilidade exercitava comigo já, naquela altura, a arte da partilha. Nunca usou nem abusou desse gesto. Senti-me acolhida, percebida em minha necessidade e desejos habituais infantis, como um simples picolé, por exemplo. Grande pessoa a Nazaré. Tem tudo para ter se tornado uma adulta solidária, uma cidadã cearense de ótima monta.
Grandeza do ínfimo
De volta ao tema da provocação acerca do meu nome, consegui fazer as pazes com o dito animalzinho invertebrado e com a « minha criança », de várias maneiras. Adoro jardinagem e sei o quanto essas danadinhas são benéficas para a saúde da terra. Mas nem pensar em topar diretamente com uma delas. E talvez seja este um dos meus limites à prática da arte da pesca de anzol, hobby que tanto admiro por sua afinidade com o silêncio e a meditação filosófica. Não há como não pensar e pensar até que o peixe morda a isca: qual a espera por uma ideia ou uma invenção, que subitamente nos sacode e rompe com a monotonia e a falta de surpresa do cotidiano.
Agora o resgate total e a superação definitiva deu-se meio por acaso e graças ao concurso da arte. Leitora que era no Rio de Janeiro do Jornal do Brasil nos anos 90 não pude deixar de acompanhar as tirinhas do escritor Luís Fernando Veríssimo, em especial « As cobras ». Em meio a tantas, duas em particular fizeram parte da minha redenção, já adulta, agora com novos combates agregados: além da recusa de toda forma de discriminação, a crítica à vaidade do poder e do esnobismo político e intelectual - ambos infelizmente ainda atualíssimos.
Isso foi bem antes de conhecer a força poética de Manoel de Barros que convida a descobrirmos a grandeza do ínfimo em larvas e lesmas, numa aposta ética e estética contra a hiperbólica ode darwinista - animal e humana - ao mais forte, mais belo, muito visto e valorizado. Eis uma pequena mostra do poeta matogrossense, em O livro das ignorãças:
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de
mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de
mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
Já desde « As cobras » do Veríssimo, ia eu me reconciliando, pois, com as minhas pequenas grandes virtudes: ajudar discretamente a arejar, a semear e a pescar. E a « criar caminho », como « canta lá » a nossa colega pernambuca! E eu « canto cá », inspirada em Patativa do Assaré e no poeta carioca Vinícius de Moraes. Como este último, « eu não ando só. Só ando em boa companhia »: nazarés, doras, lilis, irês, zâtis, flavinhas, grazielas, nelmas, nalus, jeffersons, paulinhos, márcias e muitos outros, que me acompanham, fecundam e florescem minha estrada.
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Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia e professora de Serviço Social (FSS/Uerj). Em seu exílio (in)voluntário na França, tem cada vez mais se encantado com a língua-pátria: o português ou « o brasileiro », como sonhou Mário de Andrade.
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VOCABULÁRIO
* Verbo bulir – muito empregado no Nordeste do Brasil.
v.t. Agitar, mover, tocar levemente; mexer.
Fig. Bulir com, implicar com, caçoar de, mexer com: vive bulindo com os colegas.
** Minhoca – S. Verme anelídeo que cava pequenas galerias no solo úmido, de que se nutre, contribuindo para sua aeração e fertilidade. Possui em média 10 cm de comprimento.
CITAÇÃO
citação incidental de Mário Quintana, por meio de seu Poeminha do Contra: « Todos estes que estão aí atravancando o meu caminho. Eles passarão eu passarinho. »
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LINKS
http://www.bonstratos.org.br/
http://criarecaminho.blogspot.com/2011/08/apologia-ao-jumento.html?spref=fb
[Blog CRIAR É CAMINHO…]
http://www.youtube.com/watch?v=yMC8Wr8B7AQ&feature=related
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http://www.youtube.com/watch?v=yMC8Wr8B7AQ&feature=related
[« Só as mães são felizes », Cazuza]
http://www.youtube.com/watch?v=shx82rjv2z4&feature=related
[“Ciranda da Bailarina”, com Adriana Calcanhoto. Desenhos e ilustração: Danilo Castro]
http://www.youtube.com/watch?v=MZYg1aGxOWA&feature=related
[« Flores Astrais », com Secos & Molhados]
http://www.youtube.com/watch?v=FH-LxGXklco
[« Chuva, Suor e Cerveja », com Caetano Veloso]
http://www.youtube.com/watch?v=shx82rjv2z4&feature=related
[“Ciranda da Bailarina”, com Adriana Calcanhoto. Desenhos e ilustração: Danilo Castro]
http://www.youtube.com/watch?v=MZYg1aGxOWA&feature=related
[« Flores Astrais », com Secos & Molhados]
http://www.youtube.com/watch?v=FH-LxGXklco
[« Chuva, Suor e Cerveja », com Caetano Veloso]
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