Em silêncio sob o fogo cruzado
Fonte: Google
Ana Lucia Vaz*
Domingo cheguei da Ilha Grande, após cinco dias de muita floresta, cachoeira, mar e amor em família. Voltava de alma lavada, de um verdadeiro retiro espiritual.
Foi pelo Facebook que fiz contato com os primeiros sinais da histeria que começava a dominar o Rio de Janeiro. Na quarta-feira, como a correnteza insistia, decidi circular pela internet atrás de entender o que realmente acontecia. Ou melhor, o que se dizia, sob pontos de vista diferentes.
O mantra da quarta-feira era “arrastões”, mas para minha felicidade, cheguei rápido numa entrevista do professor Inácio Cano, alertando para os excessos do espetáculo. Não houve arrastão, não dava pra ter tantas certezas quanto o governo do estado já garantia ter... Enfim, li e fui cuidar da minha vida, segura de que não era para embarcar na correnteza do medo.
Mas o medo é uma das correntezas mais perigosas e sorrateiras que conheço. Ela invade qualquer espaço, passa pelo buraco da fechadura, pela fresta da porta e, se a gente vedar tudo, atravessa as paredes da casa e de nosso corpo.
Quarta-feira à noite eu tinha compromisso religioso. Eu e minha companheira, que chegou em casa, sugerindo que não saíssemos. Consegui acalmá-la, não sem antes me irritar. É incrível como podemos observar em nós mesmas esta relação simbiótica entre medo e raiva!
Já estávamos na porta de casa quando o telefone tocou. Mal tive tempo de dizer "alô", a voz do outro lado, aflita, me atropelou: "eu acho que vocês não deviam sair de casa! Estão dizendo que...". Era a sogra! Não consegui ouvir o resto, já cega pela minha própria agressividade que lutava desesperada para não escancarar o peito ao medo. Apesar da violência com que as palavras borbulhavam em minha mente, deu tempo de passar adiante o telefone antes de devolver alguma má-criação do tipo: "Desliga a TV e não enche!!!".
Capturada
Enfim saímos, mas um pouco do medo já havia penetrado meus poros.
No terreiro, a atmosfera era totalmente suave. Quando minha mãe ligou preocupada, já me encontrou pacificada. Preparava-me para um tratamento de limpeza dos chacras e pude dizer, com total tranquilidade, que eu estava segura e que, para ela se sentir melhor, era bom desligar a TV. Ela concordou. É muito raro, quando falamos com verdadeiro amor, que o outro discorde de nós.
Saímos de São Cristóvão por volta das 11h da noite. Ruas desertas como se fosse madrugada. Muitos carros da polícia. Tijuca, Rio Comprido. Tudo muito, muito vazio. Blitz dentro do túnel Rebouças. Os carros paravam assustados, querendo voltar. Sentia, no peito, o medo brigando com a paz profunda que me envolvia.
Chacras abertos
Quinta e sexta-feira foram dias de curso no centro da cidade. No curso, fechada num auditório subterrâneo do Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, me sentia numa espécie de mundo separado. Tranqüilo e acolhedor, embora em pleno Largo da Carioca. Saí para um encontro de meditação e percebi multidões que se juntavam diante das TVs como se fosse final de campeonato de futebol. Era a ocupação da Vila Cruzeiro. Na volta, correria no Largo da Carioca. Alguns falavam em tiros. Vi (ou pensei ver?) um PM com o revólver na mão, apontado para baixo. Mas não ouvi nada. E o medo já não me ameaçava. Mas uma espécie de perplexidade.
À noite foram horas acalmando uma das organizadoras do curso, moradora do Complexo da Maré, que chorava com medo do que poderia estar acontecendo com seus parentes. Cheguei em casa exausta e com dor de cabeça. Acordei sobressaltada pelo telefone que me mobilizava para levar salvaguardas espirituais a um soldado do BOPE, que tinha sido convocado para a operação no Complexo do Alemão. Um verdadeiro rodamoinho, difícil de nomear, me engoliu. Imagens de policiais invadindo casas na favela. Imagem de um soldado em meio ao tiroteio. Imagens mil, desconexas, conflitantes. Nada a dizer, sem condição de entender, muito menos de explicar.
Foi assim que cheguei ao curso sexta-feira. Exausta e com dor de cabeça, já de manhã. Tristeza. Uma tristeza profunda se apoderou de mim. No final da tarde saí do auditório protegido para umas compras. O rosto das pessoas era tenso. Eles saltavam sobre mim, como se eu visse tudo em quatro dimensões. Como a imagem 3D salta fora da tela bidimensional e parece que vai nos atingir. Assim eram os movimentos e expressões que eu enxergava nas pessoas voltando pra casa. Voltei ao curso subterrâneo como quem corre da tempestade para a proteção da caverna. Cheguei com as energias exauridas.
Sábado acordei triste, me arrastei até o curso, voltei correndo pra casa, chorando pela rua sem entender por que.
Silêncio de paz ou tristeza?
Só aos poucos vou entendendo o que se passa com a cidade e comigo. Desde sábado retomo lentamente o controle sobre meu próprio território. O único que realmente possuo: meu corpo. Banhos de limpeza e algumas proteções para os chacras. Acupuntura, cuidados com a alimentação, com os pensamentos e com as palavras.
Compro jornais e revistas como quem guarda documentos para uma pesquisa que sinto necessária, mas ainda não compreendo. Por enquanto, leio perplexa, atenta ao mal estar que as manchetes me provocam.
A Centopéia me pede para escrever sobre o assunto. Os alunos pedem minha opinião. Num esforço, saem dois ou três comentários dispersos, embolados em sentimentos pouco conhecidos. Desejo profundo de ficar em silêncio. E, às vezes, uma explosão de irritação contra bobagens do cotidiano.
Penso no vídeo que assisti várias vezes, num curso de meditação budista. O vídeo mostra a experiência de realização do curso em presídios da Índia. No início, imagens de homens atrás das grades são acompanhadas por um texto mais ou menos assim: Todos nós já tivemos desejo de roubar, agredir, ferir ou matar. O que nos separa deles (os que vemos atrás das grandes) é que eles deixaram que esses pensamentos chegassem ao nível da ação.
No budismo, se diz que há três níveis de manifestação: o pensamento, a palavra e a ação. O pensamento é a forma mais sutil, mas não sem consequências. A ação é a mais densa. E, na cultura ocidental, costuma ser o único nível que percebemos minimamente.
Na sala de aula, um aluno me provoca, perguntando se não teria sido justo atirar naqueles bandidos filmados fugindo da Vila Cruzeiro. Olho pra ele sem palavras. Finalmente, consigo apenas perguntar-lhe: em que a sua vida ficaria melhor, caso aqueles caras tivessem sido chacinados? Ele titubeia um pouco e desfia uma lista de motivos “morais” para matar os caras. Eu insisto: Você só me respondeu sobre eles! Sobre a vida deles. Eu perguntei sobre a sua. Então ele escorrega e diz que foi só um impulso do momento: “Quando vi a cena pensei: Atira pô! Atira!”
Talvez alguns milhões de cariocas tenham pensado o mesmo. Acho que ainda pensam e sentem. Um vídeo game já está na internet permitindo que cada cidadão “de bem” descarregue seu desejo assassino sobre os bandidos em fuga. Sem fazer mal a ninguém, acredita-se.
Continuo precisando de proteções para andar nas ruas de minha cidade. Proteção contra a torrente de pensamentos e palavras violentas que tenta nos afogar na correnteza do medo e da intolerância. Proteção contra meus próprios pensamentos e palavras de medo e agressão.
E, afinal, não sei se vale realmente a pena compartilhar essas palavras que talvez ajudem a espalhar a tristeza e desesperança. Ou talvez, o caminho da paz exija, mesmo, incursões pela tristeza, pela depressão reflexiva. Talvez seja inevitável um mergulho na tristeza, se quisermos compartilhar algo de verdadeiro.
*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.
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