quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Editoria O Efeito Quixote

Notícias de um conflito urbano particular

Leandro Rocha*

Medo.

Essa é a palavra que mais ouço.
Nas ruas, na TV, no rádio...

Este parece ser o momento mais propício para que a “cultura do medo” ganhe espaço nas mentes e corações da população. O medo muda nossas rotinas, nos limita, impossibilita que avancemos... O medo paralisa e é assim que a cidade se encontra quando eu acordo para ir ao trabalho: paralisada com medo do que poderá acontecer no próximo segundo.

Ligo a televisão e fico atento a informações sobre as ações ocorridas no estado. Vejo os informes de ônibus e carros incendiados. Os trechos impedidos de trânsito se tornam a pauta do telejornal e o apresentador mostra sua indignação por uma opressão que secularmente atinge as comunidades menos abastadas ter se estendido a toda a cidade. Eu lamento que um espaço tão importante de expressão e informação seja ocupado por alguém que não possui a capacidade de entender que a covardia destes ataques é na verdade uma expressão da covardia e perversidade de um sistema de produção que oprime, explora e descarta pessoas. Lamento que as desigualdades sociais, inerentes ao modo capitalista de produção e potencializadas pelo abandono de um Estado neoliberal a determinados segmentos da população, sejam vistas apenas como uma questão de cunho policial, onde a força utilizada muitas vezes em substituição a várias políticas necessárias, mais pune aqueles que se encontram no lado mais fragilizado, do que busca a superação desta realidade.

Termino o café e saio para o trabalho. As ruas movimentadas da cidade agora estão vazias e as do bairro do Méier, onde moro, não poderiam estar diferentes. Poucas pessoas se arriscam a sair de casa em meio a toda a insegurança. Com medo dos ataques perpetrados a suas frotas, as empresas de ônibus diminuem drasticamente a quantidade de coletivos e as pessoas que se espremem nos poucos veículos que ainda fazem os percursos desejados. Eu consigo um lugar e sento no banco ao lado da janela de emergência. Fico a fitá-la boa parte da viagem, decorando como abri-la em caso de necessidade. Para minha sorte não precisei por em prática suas instruções...

Ao mesmo tempo, olho os rostos de meus companheiros de viagem: uns agitados, outros sorumbáticos... Curiosamente, ninguém dorme nesta viagem..

Como trabalho no Hospital federal de Bonsucesso, um dos hospitais de alta complexidade mais próximos de alguns dos locais de maior conflito, não tardo a presenciar a chegada de ambulâncias e veículos blindados policiais com feridos e quase mortos. As famílias nos procuram em busca destes e de outros desaparecidos. Alguns dos familiares de outros pacientes vêem a movimentação, especulam se seriam parentes de “bandidos” ou coisa do tipo, formulam hipóteses, cochicham opiniões... Para mim e para meus companheiros de trabalho isso é o que menos importa. As orientações são dadas, os familiares encaminhados e tenta-se manter a rotina...

Durante o expediente recebo recados e telefonemas de amigos preocupados com a situação. Mantenho contato com meus pais, que residem a duas ruas da Vila Cruzeiro e estes me relatam o medo de sair de casa que rivaliza com o medo de ficar no meio de todo o conflito. Peço para eles irem para minha casa, quando conseguirem sair, mas não havia a promessa de um cessar fogo antes do anoitecer.

Mais tarde, minha irmã me liga, querendo saber como estou. Digo que estou bem, trabalhando, pergunto do meu sobrinho (ela está grávida de seis meses) e ela me diz que havia passado mal hoje devido a um susto que levou quando uma bala atravessou o teto da academia onde fazia hidroterapia, na Vila da Penha. Recomendo repouso, dou meu apoio e a faço prometer me ligar em qualquer situação.

Minha esposa me liga preocupada e ansiosa, relata mais carros e ônibus queimados e pergunta como farei para retornar pra casa. Digo que na hora verei e tento deixá-la mais tranqüila.

Na volta pra casa, vejo o contraste da rua vazia com um bar cheio de estudantes que perderam a aula e não têm como voltar pra casa. Alguns bebem cerveja e tentam não pensar na situação. Simplesmente sigo em frente.

Mais adiante uma jovem pergunta-me se eu estou indo pra faculdade que se localiza naquela rua, já me avisando que ela está fechada. Agradeço a informação e saio pensando que em momentos assim algumas pessoas ainda procuram se lembrar de olhar ao redor, tentando se solidarizar com quem vão encontrado no caminho.

Chego ao ponto de ônibus e por poucos segundos perco o ônibus que me levaria até minha casa. Reclamo, “bufo” e depois só me resta aguardar a próxima condução. Logo em seguida chega uma Kombi e rapidamente se enche de passageiros que querem sair das ruas o mais rápido possível. O motorista vai se comunicando pelo rádio com os colegas e obtendo informações sobre o percurso mais seguro. Ao meu lado, um senhor diz que o exército deveria assumir a segurança do Estado, um jovem sentado no banco da frente diz que a polícia nunca admitiria isso, porque pareceria um sinal de incompetência, outro homem polemiza falando sobre a supressão dos direitos civis.

Uma garota sentada no banco de trás diz que estava indo a uma entrevista de emprego, mas que, diante daquele quadro, não sabia se iria. Os demais passageiros aconselham-na a ir pra casa e ela desce no ponto mais próximo de sua residência.

Pouco depois, ao passarmos por uma das ruas do Cachambi, vejo o ônibus que perdi totalmente queimado. Ao redor, bombeiros, policiais, repórteres e curiosos. O motorista da Kombi se vira e diz que o transporte alternativo é o mais seguro no momento. Ninguém responde. Não há muito o que dizer no momento. Meu telefone toca, atendo e ouço a voz de minha esposa perguntando se está tudo bem. Respondo que sim e não falo nada sobre o ônibus. Não ajudaria muito falar a respeito naquele momento. Ela me informa que minha outra irmã, que mora com meus pais, viria do trabalho para a nossa casa.

Desço na rua Dias da Cruz pra comprar algumas coisas para o jantar e vejo nas padarias e bares um acúmulo de pessoas que acompanham passo-a-passo a ação policial, transmitida nos mínimos detalhes pelas câmeras de televisão. Os repórteres se esmeram na apresentação do “Estado de medo” e da “batalha épica para levar a paz ao Rio de Janeiro”: apresentações teatrais, tentativas de mostrar cada gota de suor no rosto dos policiais envolvidos nas ações... Parecia que a Globo estava lançando a segunda edição do Big BOPE Brasil (a primeira edição teria acontecido durante o seqüestro do ônibus 174, na mesma cidade), cuja cobertura seria de 24 horas sem sair do ar. A transmissão tomou toda a programação e em nenhum momento questionava o que viria depois ou o que veio antes da ação que era mostrada. O que importava era garantir a audiência e reforçar que, com força, “o bem sempre vence o mal”.





Algumas pessoas vibram na padaria durante a transmissão. Conversam como se assistissem ao filme “Tropa de Elite 3”. Um senhor comenta que “infelizmente não mataram mais porque a televisão atrapalhou; afinal, se mata na TV, o pessoal dos direitos humanos ia encher o saco”. Esboço uma resposta, mas o telefone toca novamente e eu me afasto dali.


Chego em casa finalmente e meus pais ligam informando que pretendem vir pra cá amanhã cedo. Contam que ficarão pouco tempo, pois tem havido ocupação das casas vazias pelos bandidos que ainda se escondem na comunidade. Relatam o caso de um vizinho que foi expulso da sua própria casa, pelo fato dela estar localizada em ponto estratégico para os traficantes. Esse mesmo vizinho, ao ligar para seus pais informando o que acontecera, acabou perdendo o pai vitimado por um infarto, em decorrência de forte emoção.

Esse foi um dia para não esquecer na vida! Vi muita solidariedade, luta e força. Vi muito amor, amizade e muita garra.

Um dia em que a violência, expressão palpável da questão social, atingiu a todos de forma extrema e implacável.

Um dia em que todos nós poderíamos refletir sobre que projeto de cidade, estado, país e sociedade queremos.

Um dia em que tivemos elementos concretos para ver que é preciso mudar urgente esse sistema, que coisifica as pessoas e marginaliza a população.

Um dia que poderia ser visto sob vários prismas, mas que acabou sendo mostrado por toda a mídia como um dia apenas de medo, afinal o medo vende e justifica toda e qualquer ação.

Seguimos lutando por um mundo diferente deste e para que haja segurança sim! Mas, além de segurança, queremos paz e dignidade e um projeto de sociedade que não contemple apenas as sequelas uma “cidade partida”, que não criminalize o pobre, nem militarize as políticas sociais, em que o Estado não “ocupe” as áreas mais pobres da cidade apenas com a força policial.

Estamos em guerra?

Só se nos referirmos à que é fabricada por uma classe que pretende legitimar sua permanência no poder através de uma guerra aos que ela mesma rotula como terroristas, extremistas ou qualquer outro segmento que possa ser rotulado como a “encarnação do mal”.

Enquanto isso, nós estamos em luta por um mundo, onde a equidade e a justiça social não sejam apenas palavras citadas em entrevistas e teses acadêmicas, e sim uma realidade vivenciada no cotidiano de toda a população, sem exceções. E nessa luta devem ser investidos todos os esforços até que a vitória seja alcançada.



Leandro Rocha, assistente e "insistente" social, pós-graduado em Psicologia Jurídica pela UCAM, integrante da Comissão de Comunicação e Cultura do CRESS-RJ. Contato: e-mail: leorochas@hotmail.com 

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