quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Cinco dedos de prosa














Cinco dedos de prosa  
    
      Blog Mídia e Questão Social
_____________________________________

Prezados blog-leitores,

Com esta postagem, inauguramos uma nova forma de comunicação entre nós: a entrevista. Para alguns temas que a equipe de editores do blog selecionará, entrevistaremos convidados que nos tragam elementos para enriquecer nossas reflexões.

Dialogando com a cultura do batepapo informal, o nome desta nova série será “Cinco dedos de prosa”. Cada entrevistado responderá, portanto, a cinco questões e indicará ao menos um livro e um filme sobre o tema da entrevista.

Para começar, um tema quente: aborto vira polêmica no debate eleitoral

 

As atuais eleições presidenciais polemizaram e rebaixaram o nível do debate de várias questões. Uma delas foi o aborto. Esta desqualificação transformou o tema em questão religiosa. Vários candidatos começaram a dar declarações com o objetivo de ganhar (ou não perder) votos, desconsiderando dados que demonstram a seriedade do tema.

A própria mídia, após incentivar este clima despolitizado com vistas a favorecer a realização de um segundo turno nas eleições, parece querer fazer um “mea culpa”. Os dois maiores jornais brasileiros (Folha de São Paulo e O Globo) publicaram, no último final de semana, editoriais em que questionam o tom religioso do debate e voltam a defender que o Estado deve ser laico.

O Globo, em sua edição de domingo, 10 de outubro, publicou matéria de capa, com dados que demonstram que o aborto ilegal mata uma mulher a cada dois dias no país. Em que pese a atual criminalização do aborto, uma mulher o pratica a cada 33 segundos, apenas no Brasil. Uma em cada cinco brasileiras já abortou. A grande maioria delas, especialmente as de menor renda, não tem como buscar atendimento público e gratuito de saúde, submetendo-se a práticas perigosas e até fatais. Inevitável reconhecer, portanto, que este é um tema de saúde pública, embora, como veremos com nosso entrevistado de hoje, não se restrinja a este aspecto.

Para a equipe do blog, defender a legalização e a descriminalização do aborto é defender a vida com qualidade em todas as suas dimensões. Como nos alerta a intelectual e feminista norte-americana Judith Butler, é hora de a esquerda assumir amplamente esta defesa.


Aborto - “População não quer ver a mulher presa por isso”
Nossa entrevista 5 dedos de prosa com Maurílio Matos 


                                                                                                    Fonte: CFESS

Professor Doutor da Faculdade de Serviço Social da UERJ e assistente social do SUS / Sistema Único de Saúde em Duque de Caxias.

Autor do livro "A Criminalização do aborto em questão" (ed. Almedina, 2010), realizou pesquisa de campo em Portugal.

___________________________________________________________

 - O debate sobre o aborto polarizou parte das eleições presidenciais deste ano, de maneira bastante desqualificada. Que perspectivas você enxerga para o futuro deste debate no Brasil?

Maurílio Matos - Na política brasileira, os princípios são sucumbidos pelos votos. É lamentável que os principais candidatos desde o primeiro turno - sabedores das altas taxas de aborto no país - se posicionem contrariamente à descriminalização. Lamentável que, na véspera do primeiro turno, duas candidatas de origem de esquerda tenham se posicionado contra a descriminalização do aborto e tenham se acusado sobre o tema. Agora, no segundo turno, o aborto ganha também mais espaço no debate, mas - mais uma vez - os direitos das mulheres saem de cena para a obtenção de votos. Nenhum candidato defende a descriminalização do aborto. Saem de cena, na campanha, a luta por esse direito, mas a perversa realidade dos abortos clandestinos com riscos de morte, agravos à saúde e de prisão continuam sendo uma rotina para muitas mulheres que por motivos que só a elas cabe julgar, correm esses riscos. Por isso, é louvável a fala da candidata Dilma, no último debate na tevê, quando disse que alguns preferem prender as mulheres que provocam o aborto, ela prefere atender.

Para uma discussão sobre a mudança da lei temos, no Brasil, que juntar quatro argumentos: o grave problema de saúde pública; a autonomia da mulher e o respeito, num Estado laico, à diferença; a diferenciação das fases de gestação (diferenciar embrião e feto de vida humana); e chamar a atenção da população brasileira para a questão de se quer realmente que as mulheres que realizam o aborto sejam presas (todo mundo conhece ou sabe de alguma mulher que fez aborto). Sobre esse último ponto parece que não: a população pode até - de forma pouco refletida - ser contra a descriminalização do aborto, mas não quer ver a mulher presa por isso. Então: que lei é essa que se quer manter, mas que não se quer que seja cumprida?

 - Você estudou o debate do aborto comparando países como Brasil e Portugal. Como foi possível que Portugal, um país talvez hegemonizado pelo cristianismo, avançasse em relação ao Brasil no debate do aborto? Que avanços você identifica?

Maurílio Matos - Em Portugal foi realizado um plebiscito em 1998 e a população optou pela manutenção da lei punitiva. Logo após esse plebiscito, a lei começou a ser aplicada e isso assustou a população: houve julgamentos e condenações em massa. Isso criou um ambiente para a realização do plebiscito de 2007 que descriminalizou o aborto até a décima semana de gestação, a pedido da mulher. Além dessa experiência traumática, os portugueses mudaram a lei porque integram a União Européia e, exceto Malta, Polônia e Irlanda, todos os outros países europeus, de alguma maneira, descriminalizaram o aborto. A convocação de um novo plebiscito integrou a agenda política do governo. Com o argumento de que vários países vizinhos já haviam descriminalizado o aborto, Portugal pôde sair da falsa polarização entre ser contra ou favor e sim discutir os direitos e a laicidade do Estado no contexto da Razão e da Modernidade.

- Alguns argumentos que defendem a descriminalização e a legalização do aborto se centram em sua leitura como tema de saúde pública. Outros autores o discutem sob o ponto de vista do avanço das lutas das mulheres por ampliação de direitos. Para você, quais devem ser os eixos centrais deste debate?

Maurílio Matos - Recentemente, em um debate na OAB/RJ - realizado no dia 28 de setembro, dia latinoamericano e caribenho de luta pela descriminalização do aborto - esse tema veio à tona. Os pesquisadores e feministas presentes concordaram que esse dois pontos são importantes e um não deve secundarizar o outro. Tanto os riscos à saúde como os direitos das mulheres devem ser defendidos com o mesmo peso, a mesma pressa e a mesma relevância.

 - Você é um homem e estudou o tema do aborto. Qual o papel masculino neste debate?
Maurílio Matos - Estudei a questão do aborto por que trabalhei em uma maternidade do SUS e vi como as mulheres que procuravam a emergência, devido a complicações derivadas de um abortamento, eram tratadas. Em geral, eram tratadas como criminosas, eram a última prioridade no atendimento. A equipe de saúde pouco falava com essas mulheres, mas as criticava bastante pelos corredores. Essa situação lamentável me fez refletir, mais à frente, sobre essa questão. No livro que escrevi, falo de duas categorias éticas importantes para se analisar a questão do aborto. Uma é a liberdade e a outra a alteridade. Ambas fazem parte da nossa essência humana, independente do nosso sexo. Mesmo com toda a alienação, carregamos em nós a possibilidade da liberdade e da alteridade. Liberdade por meio das escolhas concretas que fazemos no cotidiano e por cujos resultados somos responsáveis. Alteridade como exercício sempre aproximado, nunca totalmente fiel ao que o outro vive, mas passível de ser vivenciado, uma vez que nos identificamos como pertencentes ao gênero humano.
Assim, independente do fato de que a mulher não engravida sozinha, estamos falando que o aborto é um problema de todos e todas.

 - Argumentos contrários à descriminalização e à legalização do aborto dizem que se aprovadas elas tendem a aumentar sua prática. O que você pensa a respeito? Que relação elas podem ter com medidas também no campo da educação?

Maurílio Matos - O aborto não é uma escolha fácil para uma mulher. Não é um método contraceptivo e as mulheres sabem disso. O aborto é um recurso, uma escolha necessária dentro do contexto de vida da mulher naquele momento. Não consigo acreditar que seja um evento banal na vida de uma mulher e que, por isso, possa se tornar corriqueiro. O número de abortos por repetição em Portugal, onde o aborto é descriminalizado até a décima semana de gestação, é baixo e demonstra que o aborto é um episódio único na vida da grande maioria das mulheres.

Além disso, cabe lembrar que a descriminalização do aborto não pode se dar isoladamente. Com a descriminalização iniciam-se novos desafios, como a implementação do atendimento no serviço público, com qualidade. Importante, também, é desenvolver um trabalho educativo sobre a saúde reprodutiva como um todo, de forma intersetorial e interinstitucional.

Dicas do entrevistado

                                                                                           Fonte: CRESS-MG


Um filme

Indico dois. Um documentário brasileiro e outro de ficção norteamericano (esse último muito fácil de ser encontrado):

- “O aborto dos outros”. Direção: Carla Gallo. Ano: 2008. País: Brasil. Duração: 72 minutos;



- “Regras da vida” (The cider house rules / Em Portugal: “As regras da casa”). Direção: Lasse Hallstrom. Elenco: Tobey Maguire, Michael Caine, Charlize Theron. Ano: 1999. País: EUA. Duração: 125 minutos.


     








Um livro

Em defesa da vida: aborto e direitos humanos, organizado por Alcilene CAVALCANTE e Dulce XAVIER (São Paulo, Católicas pelo Direito de Decidir, 2006). O livro conta com artigos de vários especialistas no tema.











¤ Produzido pela equipe do blog Mídia e questão social /outubro de 2010.

5 comentários:

  1. Parabéns à equipe do Blog e ao querido Maurílio. Está na hora de aprofundarmos o debate enfrentando o pior do pensamento reacionário.

    ResponderExcluir
  2. Boa noite.
    Esta noticia foi postada no blgo Serviço Social Brasileiro.
    Qualquer duvida, favor entrar em contato conosco.
    Abraço

    ResponderExcluir
  3. Com certeza esse debate sobre a questão do descriminização já devia estar acontecendo a muitos anos neste país chamado BRASIL, mas com certeza pensar o tema requer analisar outros mil e um elementos que estão envolvidos, que certamente perpassa pelos direitos das mulheres,pela questão religiosa, pela saúde, planejamento familiar, pela questão educacional, pela mídia (cujo os programas incentivam diariamente as pessoas a fazerem sexo e nunca trata da questão da consciência e muito menos sobre a prevenção). E por fim, cabe ressaltar que vale o comparativo com Portugal a nível do avanço da legislação, mas o Brasil ainda tem muito que crescer e educar os seus cidadões para uma discussão madura, com legislação que realmente seja protetiva em relação a mulher e não fazer as coisas na base do ôba-ôba para ganhar votos as ´vésperas da eleição,como sempre TUDO NESTE PAÍS VARONIL.

    ResponderExcluir
  4. O tema, o livro, o debate ,a entrevista, todos são oportunos. Chega de moralizar este assunto com noções hipócritas. Maurílio, que conheci na militância estudantil, continua provocador, inquieto. Seu traballho nos instiga a pensar mais profundamente no aborto em todas as dimensões, o que sempre enriquece nossa inserção profissional. Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Parabéns ao blog pela nova estratégia das entrevistas e ao Maurílio pela coragem de uma abordagem tão clara do tema. Bela entrevista! beijos,
    Elaine Behring

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário e/ou impressão...