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Nelma Espíndola*
É no mínimo curiosa a maneira da grande imprensa brasileira assegurar a “liberdade de imprensa”, quando ela se choca, na prática, com o exercício da “liberdade de expressão”. Triste realidade vivida recentemente pela psicanalista Maria Rita Kehl, que foi demitida do jornal O Estado de São Paulo, após ter publicado na véspera das eleições (02 de outubro), em sua coluna, um artigo que fala sobre “a desqualificação dos votos dos pobres”, com o título “Dois pesos...”
Neste caso, sua “liberdade de expressão” contrapôs-se aos interesses do Grupo O Estado de São Paulo, o que lhe custou a censura e o corte do espaço que dispunha naquele jornal para comunicar-se com uma parcela significativa da sociedade.
Os limites da liberdade de imprensa ficaram bem explícitos com sua demissão, no último dia 06 de outubro. Isto significa que esse tipo de liberdade de imprensa possui, de fato, dois pesos. Constitui um direito e poder para a “máquina de fazer e reproduzir notícia”, de “informar” o que for de seu maior interesse, associado aos de outros grupos das classes sociais mais abastadas. Por isso, este conceito restrito de liberdade cabe inteirinho à imprensa burguesa.
A liberdade de expressão ou a liberdade de comunicação, como alguns conceituam, foi, por outro lado, literalmente expurgada de Maria Rita. Em entrevista com Terra Magazine < Política, no dia 07 de outubro, a jornalista definiu sua demissão da seguinte forma: “Fui demitida por um ‘delito’ de opinião”. E acrescenta: “como é que um jornal que anuncia estar sob censura [referência à perseguição desse jornal pela ala do PMDB com poder no Planalto], pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?”.
Terra Magazine < Política entrevistou no mesmo dia, Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado de São Paulo, que diz inicialmente que “não houve demissão”, simplesmente afirma que: “Colunistas se revezam, cumprem ciclos” e que “Não houve censura a Maria Rita Kehl”. Segundo Gandour, o projeto original do caderno C2 + música era o de constituir um “espaço em torno da psicanálise. Um divã para os leitores. Mas este não era o enfoque que ela vinha praticando e frequentemente conversávamos sobre isso.”
Desde quando é impossível em psicanálise falar sobre política? Viver em sociedade é viver num emaranhado político, com acordos, discordâncias, e correlação de forças. Mas tudo fica subitamente transparente, na medida em que o processo de demissão foi motivado por um artigo reflexivo e questionador, na véspera de eleição majoritária, sobre a “desqualificação” dos votos dos pobres por uma classe minoritária, mas com influência de “mando”.
Este fato nos faz ver como o “quarto poder” ou o que hoje ironicamente se conceitua como PIG – Partido da Imprensa Golpista – utiliza-se de seus meios de influências para fazer valer o seu pensamento e credo.
A Web@Tecno não poderia deixar de se solidarizar e re-produzir em seu espaço o artigo da colunista e psicanalista Maria Rita Kehl, que originou a sua demissão, por nossa responsabilidade em contribuir com o debate sobre a mídia, assim como sobre o que pode ser determinante no destino de nosso país, no próximo dia 31 de outubro.
Nem é preciso dizer que os ditos "desqualificados" - até recentemente « sem-cidadania », conforme diz Kehl - têm todo o direito constitucional de opinar e de também decidir sobre uma eleição por todos os meios e possibilidades disponíveis ao exercício da cidadania e justiça social, sem que isto seja apenas um jargão de marketing político.
* Nelma Espíndola é assistente social, webmaster e Colaboradora do Blog Mídia e Questão Social.
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Dois pesos...
02 de outubro de 2010 0h 00
CPFL Cultura/Divulgação
Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
Oi Nelma,
ResponderExcluirParabéns por dar visibilidade à demissão da Maria Rita Kehl. Liberdade de expressão é, realmente, uma estratégia usada pela grande mídia para sustentar sua credibilidade. Ao mesmo tempo em que aparenta-se uma abertura à pluralidade de pensamento, se esconde a aversão a certas visões que vão de encontro aos interesses econômicos e políticos do veículo. Isso precisa ser revelado, questionado, desconstruído, repudiado. Precisamos de um jornalismo transparente! Aí está a legítima credibilidade.
Grande abraço,
Lívia
Deixemos claro: Maria Rita Kehl não precisa do jornal O Estado de São Paulo. Quem precisa dela são os leitores daquele diário de notícias, ávidos de um ponto de vista inteligente e crítico, de alguém que não se fecha no « gueto » das especialidades, isto é, a uma disciplina intelectual apenas, no caso a Psicanálise.
ResponderExcluirPara quem não a conhece, M. R. Kehl, co-autora junto com Eugenio Bucci do livro “Videologias”, pertence a uma vanguarda paulista, da qual também fazem parte José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes e muitos outros, artistas e intelectuais, que removem camadas de conservadorismo e alienação dos cérebros brasileiros, que iniciativas como essa que resultaram na sua demissão querem reforçar.
Até hoje lembro e me emociono de tê-la assistido num grande telão, no bar Hipódromo na Gávea, quando do lançamento do livro “Ética”, da Cia das Letras, organizado por Adauto Novaes. Ela falava do lado, na Casa da Gávea e todos nós sedentos de filosofia e criticidade, deleitávamo-nos com a sua sensibilidade e inteligência, discorrendo sobre um tema que também lhe é caro: o feminino. Na ocasião, ela falava sobre o livro “Casa de Boneca” de Ibsen e sua personagem Nora. Em tempos de polêmica sobre o aborto, cortes de outra natureza se fazem: políticos, nada clandestinos e com consequências graves para a democracia.
Vida longa à Maria Rita Kehl e sua nobre indisciplina de falar sobre o que é relevante, seguindo o « feeling » de seu país e dos seus leitores: homens e mulheres cidadãos e recém-cidadãos.
http://il.youtube.com/watch?v=NiyWj9UOhQM&feature=related
E bravo, Nelma, por dedicar a sua Web@Tecno ao tema!
Grande abraço,
Mione*
(editoria Volta do Mundo,blog M&QS)