10º ENCONTRO DE CULTURAS TRADICIONAIS da Chapada dos Veadeiros
Texto
Mione Sales*
Fotos e vídeo
Frédéric Hugon
« O caminho mais curto de chegarmos a nós mesmos
é aquele que dá a volta ao mundo" »
Montaigne.
Não poderia deixar de registrar a feliz coincidência de ter ido passar uns dias na Chapada dos Veadeiros – Goiás, na vila de São Jorge, em Alto Paraíso, justamente na ocasião do 10° Encontro de Culturas Tradicionais. Para quem nunca ouviu falar, trata-se de uma espécie de festival de cultura popular com ares de uma bela festa do interior. Mesmo se é justo descrevê-lo assim, é pouco para traduzir esse encontro com cara realmente de um evento do século XXI, ou seja, um encontro de culturas. Não de países diferentes, mas brasileiras mesmo. Pelo componente inovador e ao ar livre, talvez se aproxime do espírito intergaláctico zapatista daquele que foi o primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo (1996), em Chiapas, mas quem dá as cartas ali não é a política, mas a cultura (rodas de prosa, oficinas, feira de oportunidades sustentáveis, etecetera).
A diversidade passa o chapéu e convida a todos à exuberância e simplicidade da inventividade popular fomentada nas mais longínquas comunidades e povoados do país. Como exemplos, podemos citar a capoeira, o congo, o mamulengo, batuques, catireiros, violeiros, tambores e orquestras populares, presenças confirmadas na festa desse ano. O festival começou em 16 de julho e segue até o dia 31.
Além da corrida, houve ainda demonstrações artísticas especiais desses povos e cidadãos da floresta, capazes de emocionar corações mais sensíveis frente à beleza da sua liberdade. Ali se encerrava a IV Aldeia Multiétnica.
Ver todos aqueles índios – homens, mulheres, adultos e criancinhas - se divertindo, com seus trajes e pinturas, à vontade e em integração descontraída com os demais brasileiros na pacífica cidade de São Jorge fez-me pensar que o nosso país parece realmente ainda ter jeito.
Vídeo especialmente registrado para o blog M&QS
O astral na pequena São Jorge era dos melhores, com a presença de muitos jovens, naquele que era quase um Woodstock antropológico. Muitas cores, vivacidade e um jeito hippie e popular de povoado interiorano se coadunavam ao espírito ecológico e cultural da agenda do século XXI. Muitas penas, pinturas, tatuagens, cabelos pretos longos e peles morenas revelavam indígenas e mestiços entre os demais transeuntes.
O segundo flash a que assisti no sábado, (24), foram apresentações de comunidades Kalunga. O povo subiu literalmente no palco, a cantar suas canções em toadas, que fazem pensar no “repente” nordestino e no contemporâneo “rap”. Homens e mulheres a partilhar o palco, cheios de cores, exibindo, porém, uma performance em ritmo quebrado e tons despreocupados da afinação profissional. Havia uma intenção de comunicação que se impunha, plena e cheia de si.
Gostei do fato de que aquela festa não quisesse imitar a televisão ou o mundo do show business. Havia um misto de profissionalismo e improviso, mas ninguém estava ali almejando se tornar uma celebridade ou projetar uma outra. O quase anonimato daquelas figuras em azul, com chapéu de couro, e daquelas mulheres com sua desenvolta simplicidade - combinado ao resgate da legitimidade dessa e de tantas outras práticas múltiplas, muitas vezes invisíveis - parecia constituir, por isso mesmo, a própria razão de ser e o caráter inovador do encontro de culturas tradicionais.
Mural do artista Moacir
O Festival tem dez anos de existência e foi um « gol de placa » na homenagem às tradições brasileiras. Culturas tradicionais – longe de qualquer conservadorismo - é algo que faz pensar nas nossas raízes, aquilo que não foi nem deve ser mumificado - como infelizmente muitos leigos costumam fazê-lo -, sob a alcunha de « folclore ». Constituem, sim, um patrimônio vivo ou imaterial, segundo formulação jurídica e teórica mais recente, conforme me esclareceu Elaine Monteiro, professora da UFF de Pádua e membro do Pontão de Cultura do Jongo. A história dessa construção do patrimônio histórico brasileiro, como se sabe, remonta, porém, à década de 30, ainda sob os auspícios vanguardistas e lúcidos do saudoso escritor Mario de Andrade.
Mural do artista Moacir
Ver aqueles índios partilhando o mesmo território geo-criativo de caboclos, negros e neohippies, numa rica fusão cultural e intersubjetiva fortaleceu a minha convicção de que a cultura é um tema chave da construção de qualquer projeto societário que se pretenda efetivamente democrático. Não é um porvir. É um presente de mãos dadas com o melhor do seu passado. É um agora. É também um possível futuro, desde que acreditemos que vale a pena ceder espaço a valores menos midiatizados, menos consumistas e mais reais, menos ao sabor das modas e mais ao gosto do povo. Perdoe-me encerrar com um bordão, mas « o povo não é bobo ».
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Mione Sales – é assistente social, professora de Serviço Social (FSS/Uerj) e doutora em Sociologia/USP. Contato: mioneecia@hotmail.com
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LINKS
Para navegar
http://www.encontrodeculturas.com.br/2010/index.php
Para ler
http://site.dm.com.br/noticias/dm-revista/onde-as-comunidades-do-brasil-inteiro-se
http://www.tribunadobrasil.com.br/site/?p=noticias_ver&id=24913
http://www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/patrimonio-e-monumenta/patrimonio-imaterial/
(sobre patrimônio cultural imaterial)
http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/temas/cul_tema.php?t=9
(site português da UNESCO historia e cita documentos atinentes ao patrimônio imaterial)
Para descobrir
http://www.pontaojongo.uff.br/o-que-%C3%A9-o-pont%C3%A3o
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