domingo, 11 de julho de 2010

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Bibliotecas: da ficção à realidade


Mione Sales*


                       Fonte: Google

Muitas crianças e jovens desse imenso Brasil, « de coração mole e escorrendo », como diria Mario de Andrade, desejam muito precocemente ler. Não como algo imposto ou induzido pelo mundo adulto, mas simplesmente como uma intuitiva curiosidade e necessidade interna de sentido. Como diz uma máxima à qual fui apresentada ao longo da vida, « nunca está só quem possui um bom livro para ler e boas ideias sobre as quais meditar ». Uma perspectiva, à primeira vista, muito solene para uma criança, porém algumas delas descobrem-se diferentes e com vontades específicas, como a de ir mais cedo para a cama apenas para abrir com tranquilidade um livro, ou levantar mais tarde, esticando a manhã até acabar aquele capítulo ou mesmo se isolar no recreio da escola para tentar ler, sossegadamente, o livro ou a revista em quadrinhos favorita.

Mesmo em tempos de alta tecnologia, a tribo que tem sede das letras começa, desde a mais tenra idade, a se posicionar e a fazer escolhas atípicas para a maioria dos pequenos mortais – que preferem a ação e o movimento, o barulho e a companhia dos amigos em tempo integral. Quem gosta de ler, contudo, não é um ser bizarro ou estranho. Apenas tem outras fomes e necessidades (que podem ou não se somar àquelas dos colegas da mesma geração). Fome talvez do mistério escondido nas intrigas e relatos, dos modelos possíveis de futuro, explicações do passado, ou simplesmente de uma boa história que faça rir ou sonhar.

Se o livro pode ser visto como um direito da criança, até muito recentemente no Brasil, ele permaneceu um objeto de consumo caro, salvo exceções. Na conta pragmática do comer ou se instruir, muitos não têm dúvida e passam a régua nas necessidades do espírito em nome da sobrevivência do coletivo familiar. Dramática escolha esta!

Por isso, foi com imensa alegria que, mesmo à distância, tomei contato com a legislação brasileira (Lei Federal 12.244, de 24 de maio de 2010), que estabeleceu recentemente a criação de bibliotecas nas escolas públicas e privadas no país:

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que determina a instalação de bibliotecas em todas as instituições de ensino do país, incluindo públicas e privadas. De acordo com o texto, publicado no "Diário Oficial" da União nesta terça-feira (25), cada biblioteca deve ter, no mínimo, um título para cada aluno matriculado.

A organização, a manutenção e o funcionamento desses novos espaços devem ser definidos pelas instituições.

Ainda segundo a publicação oficial, as bibliotecas escolares devem contar com "coleção de livros, materiais videográficos e documentos registrados em qualquer suporte destinados a consulta, pesquisa, estudo ou leitura". O prazo máximo para a instalação dessas bibliotecas é de dez anos.

(Fonte: http://www.reporternews.com.br/noticia.php?cod=283615)

Sempre haverá os que enxergarão nessa medida algo arbitrário, imposto do alto, mas a difusão da cultura é uma responsabilidade pública. Mesmo se admiramos a experiência dos Pontos de Cultura, iniciativa nacional-popular desenvolvida pelo MinC, ainda sob os auspícios do ministro-cantor Gilberto Gil, entendemos que a cultura é algo que não se negocia única e exclusivamente pelas bordas. Deve ser uma política governamental, ou melhor, uma política pública, que ultrapasse os humores e preferências apenas de uma sigla partidária, donde a importância dessa lei que universaliza o acesso das crianças ao livro.

                               Fonte: Google  

Desse modo, crianças como a que eu fui nos anos 70 e a personagem de Clarice Lispector do conto « Felicidade Clandestina » [disponível para a leitura no final dessa matéria], ambas no Nordeste brasileiro, que precisavam contar com a boa vontade e generosidade da vizinhança e dos caprichos dos amigos para conseguir ler um livro que nos suscitava o interesse, vão poder desfrutar doravante do acesso democrático às bibliotecas escolares.


Cultura viva: o livro e a educação infantil na França

                        Escola Maternal em Paris - Foto: Mione Sales

Escrevo de um país que, apesar de todas as mistificações simbólicas, políticas e culturais acalentadas por brasileiros e estrangeiros do mundo todo, atravessa uma grande crise social e econômica, o que vem impondo sacrifícios paulatinamente à cultura. No entanto, uma França que foi construída sob os auspícios do modelo republicano e democrático ainda resiste e se encontra de pé. Hoje o incremento dessa ou daquela política tem contado muito com os administradores, diretores de escola e professores, que ainda acreditam num ideal igualitário. O investimento nas escolas e na qualidade do ensino tem ficado assim ao sabor das magras finanças da Educação Nacional e da dedicação deste ou daquele funcionário mais comprometido com o projeto da nação e patrimônio cultural franceses.

São investimentos interligados, pois requerem espaço físico, arquitetura, pessoal especializado, livros e, como tal, o incentivo à produção editorial, o que aquece um mercado historicamente em crise, não obstante a capacidade de leitura ainda acima da média dos franceses. Aproveito, assim, o ensejo para juntar as pontas dessa conversa sobre biblioteca com a da educação infantil e ensino da cultura. Os escritores franceses, vale dizer, são difundidos desde o maternal. Lê-se e trabalha-se La Fontaine com as crianças, cultivando precocemente a memorização (exercício que vai contribuir lá na frente para os que seguirem a carreira de atores). E como este, também os poetas que emprestaram sua pluma aos poemas para a infância, à maneira de Jacques Prévert et Robert Desnos. Respeita-se o limite da idade da criança, bem entendido, mas nunca com um sinal de menos. A criança é elevada em suas capacidades múltiplas, sendo estimulada a valorizar o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas e a literatura, a partir dos três anos de idade.

Os professores produzem projetos e correm atrás de financiamento para realizar exposições ou pequenas viagens ou passeios com os alunos. Trata-se, portanto, de um sistema de mão dupla, em que o Estado dá e estabelece parâmetros, mas também os profissionais da educação propõem contrapartidas, ajudando a esculpir a qualidade, segundo uma determinada concepção de ensino.

                      Imagem de divulgação

Os pais também participam da vida escolar. Há associações de pais, inclusive. Fui durante três anos « parent délégué ». No caso específico dos livros, eventualmente, há pais que são ilustradores ou autores de livros para crianças e eles são convidados a socializar isso com os pequenos. A minha filha, que convive com livros desde sempre, ficou orgulhosa de ter conhecido na escola, por exemplo, uma ilustradora de obras de literatura infantil. A turma produziu, com o apoio dela e da professora, um interessante jornalzinho – lançado e exposto numa associação afim do bairro -, em que cada criança participou das ilustrações: comunicação e imagem juntas! Ou seja, o livro deixa de ser um objeto distante e inacessível e as crianças são estimuladas a desvendar os segredos do seu ofício.

Minha filha, que tem sete anos, acabou de concluir a alfabetização (CP/cours primaire). Estudou em sala de aula três livros de literatura para criança ao longo do ano. Além de irem avançando na leitura e escrita propriamente ditas, as crianças são convidadas desde cedo a interpretarem a compreensão do texto e a escreverem seus próprios livros em equipe. Reescrevem um livro que trabalharam segundo a sua própria imaginação. Além disso, são estimulados a realizarem a cada página do livro uma ilustração. Dão, assim, a sua versão pictórica pessoal para cada trecho da história. Talentos vão se revelando e sendo incentivados desde cedo, e a cultura vai sendo apropriada como algo fundamental.

                               Fonte: Mione Sales       

O mais bonito nessa história toda é que isso não se passa numa escola apenas para os filhos da elite, mas numa escola pública ainda de qualidade, mesmo que a sofrer os duros golpes do neoliberalismo. Os filhos de imigrantes, mais os das famílias em situação difícil (inclusive, famílias sem domicílio fixo, homeless ou sem-teto) e demais crianças francesas, todos frequentam a mesma escola. [Infelizmente, começa pouco a pouco haver uma migração de crianças das classes média e alta para escolas privadas, fruto do sucateamento do ensino público. Lá onde a qualidade baixa, inevitavelmente inicia-se um discreto e progressivo processo de « debandada » dos alunos e suas famílias, complexificando e piorando o processo de integração cultural dos estrangeiros e oriundos das antigas colônias francesas]. Há crianças negras, brancas (francesas e europeias, em geral), árabes e asi¬áticas, a compartilharem as mesmas descobertas da matemática, da leitura, das artes plásticas, da música, do esporte e do mundo.

Tanto na escola pública maternal quanto na na escola primária, há bibliotecas, pequenas, mas suficientemente abastecidas com livros, franceses e outros traduzidos dos mais diversos continentes e culturas. Os professores constroem uma agenda de frequência semanal à biblioteca, com o apoio de « animadores » (profissionais pagos pela Prefeitura, regularmente presentes no cotidiano da vida escolar), que partilham deveres e tarefas com os profissionais da Educação Nacional (professores pagos pelo governo federal). No último ano do maternal, às sexta-feiras cada criança levava para casa um livro que deveria devolver na segunda-feira. Essa é uma ocasião para que a família invista numa leitura em conjunto ou acompanhe a criança ao dormir. Algumas famílias, todavia, não são alfabetizadas em francês, o que impede a fruição coletiva, mas certamente esta é uma política de investimento simbólico no conteúdo e na forma do livro, como um bem comum.

As bibliotecas públicas municipais merecem um capítulo especial. Posteriormente, posso dividir com vocês, blogleitores, mais essa experiência cultural no velho continente.

Pelo direito das crianças brasileiras e do resto do mundo deixarem de ser « bookless » ou “sem-livros”! Todo apoio à universalização das bibliotecas nas instituições de ensino públicas e privadas do País.
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Mione Sales – doutora em Sociologia e professora adjunto da Faculdade de Serviço Social da Uerj. Contato: mioneecia@hotmail.com

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Para ler

Felicidade clandestina

              Fontes: Google

Clarice Lispector


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Ás vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. ***

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Para navegar


http://bsf.org.br/2010/05/25/lei-n%C2%BA-12-244-dispoe-sobre-a-universalizacao-das-bibliotecas-nas-instituicoes-de-ensino-do-pais/

http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI4465487-EI8266,00-Pais+tera+de+criar+bibliotecas+por+dia+para+cumprir+nova+lei.html

http://www.letramento.iel.unicamp.br/portal/?p=1360
http://www.revistabrasileiros.com.br/secoes/balaio-do-kotscho/noticias/1174/

http://www.todospelaeducacao.org.br/

Para ver

http://www.youtube.com/watch?v=W-bbWFTYZkM

[Entrevistas com administradores e profissionais da educação sobre a nova medida]

http://www.youtube.com/watch?v=F5v3lcnoofY&NR=1

(projeto Mar de Letras no Maranhão e outras experiências nas capitais brasileiras)

http://www.youtube.com/watch?v=cC7i98SXGpY&feature=related

[filme Nunca te vi sempre te amei (1987), com Anne Bancroft e Anthony Hopkins, para quem ama livros & cartas]

http://www.youtube.com/watch?v=0sEblPq5iU8

[Filme O nome da Rosa, uma história de mistério na biblioteca]

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Para descobrir

http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok

(Entrevista com Clarice Lispector)

http://www.armelleboy.com/noiretblanc/index.php?gLangue=fr

(ilustradora francesa citada no texto)

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