A culpa é nossa... (Ou a “Reinvenção do Brasil”)
Leandro Rocha*
Quinhentos e dez anos se passaram e a muita coisa aconteceu em nossa gloriosa “terra brasilis”. Segundo nossos representantes, os responsáveis por todos os males ocorridos desde então somos nós: o povo brasileiro.
Será que essa afirmativa procede? Se sim, em que aspectos somos culpados realmente? E, se é possível, como redimir essa culpa?
Questões difíceis...
Refletir sobre a culpa da população brasileira é, antes de tudo resgatar a história desse povo desde sua origem e, mais ainda, ir além da história tradicionalmente ensinada sob a ótica do vencedor, do colonizador, do detentor do direito à expressão.
Refletir sobre a culpa de um povo requer a disposição de colocá-lo como sujeito de sua história, porém não cair na “armadilha” de considerá-lo o único fator que a define e constitui como tal.
Nos livros de história com viés menos crítico, encontramos a descrição dos povos pré-americanos como primitivos que entregaram seus territórios de “bandeja” e que sofreram depois o processo civilizatório de seus benfeitores colonizadores (a catequização, a substituição de sua língua e costumes pelos trazidos de além mar, dentre outras atrocidades).
Com estas alegações, se justifica todo o massacre físico e cultural empreendido contra os indígenas residentes em todo o território pré-americano. Mais ainda, usando esta visão “evolucionista” também se considera que os poucos sobreviventes ao “massacre civilizatório” devam também se tornar menos “primitivos”, abraçando plenamente nossos hábitos e costumes. Também justifica a negação de terras a estas pessoas, uma vez que seus antepassados as “cederam” de bom grado, em troca de bugingangas diversas e da possibilidade de evolução cultural...
E menos não foi destinado aos negros trazidos à força da África com o intuito de servir de mão de obra escrava na época colonial. A eles também foi destinado seu quinhão de culpa na trajetória histórica de nossa sociedade...
Alegações de que a escravidão já era uma prática comum entre tribos africanas são bradadas ainda hoje quando se discute o tráfico de escravos. O que não se contextualiza quando esta alegação vem à tona é que a escravidão, prática comum entre nações em guerra em tempos idos, mesmo sendo condenável ainda não tinha a conotação de comércio de pessoas, dada a ela no período referente às colonizações americanas.
Na discussão ocorrida este ano sobre o sistema de reserva de vagas no ensino superior (popularmente conhecido como sistema de cotas), senadores e deputados tentavam argumentar que a miscigenação do povo brasileiro não possibilitaria a reserva de vagas para negros porque a mesma ocorrera por livre e espontânea vontade das negras que escolhiam se deitar com seus “donos” durante o período colonial...
Mas não só no passado se encontra a culpa do brasileiro... Nas recentes chuvas que açoitaram o estado do Rio de Janeiro, mais uma vez foi visto um claro exemplo da culpa da população, quando nossos governantes foram a público afirmar que a culpa pela queda de casas e pela situação caótica agravada pelas chuvas era da população que morava nas ditas áreas de risco. Ou seja, a culpada pelas mortes, dor e caos é mesma população que há séculos vem sofrendo com a desigualdade social proveniente da acumulação cada vez mais predatória de riquezas.
Sob esta ótica, é desconsiderada qualquer possibilidade de responsabilização de governos e dos segmentos mais abastados da sociedade. Uma vez que estes cumpriram seu papel ao dizer que aquelas áreas não deveriam ser ocupadas, principalmente as próximas às áreas ditas “nobres”. Como se em nossa realidade fossem asseguradas as condições básicas para que todas as pessoas tenham opção de morar onde lhe convier.
Muitos anos se passaram e ainda há muito que precisamos mudar...
Casos de culpabilizão da vítima ainda são tão comuns em nossa sociedade, que acabam sendo reproduzidos sem a menor reflexão...
“Ela quase foi estuprada? Mas também você viu a roupa dela?”
“Ele foi assaltado porque tava dando mole com aquele celular...”
“A família toda morreu, mas foi porque a construção foi feita numa área de risco...”
“Ela apanha toda noite, mas não vai embora... Essa deve ser mulher de malandro!”
“Ele foi morto no confronto da polícia com os traficantes, mas também quem manda uma criança à padaria naquela hora?”
É preciso tomar muito cuidado com essa reinvenção, essa distorção da realidade, onde transformamos a vítima praticamente em co-autor do mal que a afligiu, muitas vezes desresponsabilizando os atores realmente responsáveis pelos fatos e situações ocorridas.
E a nossa responsabilidade?
Essa reside em buscar sempre conhecer mais de cada história do que a “versão oficial” passada pelo “vencedor”. Compreender o passado é fundamental para viver plenamente o presente e construir um futuro diferente, quiçá melhor.
Reside em nos apropriarmos do nosso papel de sujeitos e não de objetos do destino, atuando ativamente na construção de uma história que rompa com os conceitos conservadores de culpabilização do povo, principalmente daqueles que não tem voz audível numa sociedade que escuta com os bolsos.
Nossa responsabilidade consiste em não aceitar passivamente a condição de descartáveis que nos é imposto pela lógica capitalista de produção.
Em não reforçar/referendar aqueles que tentam há anos se manter no poder à custa de nosso suor e sangue.
Aproprio-me agora das palavras do músico “Gabriel – O Pensador” para lembrar a cada um de nós sobre nosso poder e responsabilidade e perguntar: até quando você vai levando porrada? Até quando vai ficar sem fazer nada?
Leandro Rocha, assistente e "insistente" social, pós-graduado em Psicologia Jurídica pela UCAM, integrante da Comissão de Comunicação e Cultura do CRESS-RJ. Contato: e-mail: leorochas@hotmail.com
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Link do videoclip:
Léo,
ResponderExcluirGostei muito da sua reflexão-balanço sobre a "culpa"! Leve e densa, ao mesmo tempo. E pensar que se passaram 10 anos desde a comemoração dos 500 anos do Descobrimento! O tempo voa, mas as respostas pùblicas são lentas, para tanta ânsia de viver, que advinhamos na canção do "Pensador".
Um grande abraço, Mione*