sábado, 11 de junho de 2011

Editoria Equipe do Blog Mídia e Questão Social

Saída pela esquerda

Uma homenagem do Blog Mídia e Questão Social a uma mulher à frente do seu tempo



 Foto: Jacqueline Beaulieu


“Um dia, os mais velhos não estarão mais por aqui. E será preciso
infelizmente decidirmos viver com os nossos contemporâneos.”

Patrick Modiano



O Blog Mídia e Questão Social está de luto. Jacqueline Beaulieu hoje segue por novos caminhos, certamente à esquerda em qualquer parte. Aos 86 anos, a jornalista francesa, comunista, judia não praticante e internacionalista, faleceu no último 31 de maio. Teve destaque como professora de jornalismo e membro do célebre jornal do Partido Comunista Francês, L’Humanité. Ser humano cheio de generosidade e disponibilidade intelectual, Jacqueline Beaulieu colaborou com a editoria Babel do Blog Mídia e Questão Social.

Queremos homenageá-la com o que ela sabia fazer de melhor : o jornalismo e suas polêmicas. Convidamos assim, vocês, blog-leitores, a revisitar o artigo “Muito barulho por nada », publicado em 27 de fevereiro de 2010, na Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta,o qual contou com a colaboração de Jacqueline. Sua participação traz a marca da vida, da política e da indignação que lhe eram peculiares. Em foco: uma polêmica na esquerda sobre o uso do veu, tendo como pano de fundo a França sarkozista obcecada pelo tema da identidade nacional.

Beaulieu compôs seu “olhar jornalístico” com o título “Os Hipócritas”.


Com admiração e saudades,



Equipe do Blog Mídia e Questão Social.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::

Reprodução :

Muito barulho por nada

Uma candidata do Novo Partido Anticapitalista é alvo de polêmica na França por portar um véu




« Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos (…)
E enchem-me de sons que não sinto
Das canções das suas terras
Que não conheço.
E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis (…)
Aprendo que os homens que inventaram
a confortável cadeira elétrica (…)
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem (…)
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki ».

« África »,
do poeta moçambicano José Craveirinha
Xigubo, 1964.


Quando até mesmo a esquerda radical deixa-se levar ou fica aturdida pela pressão do sensacionalismo midiático, há que se pensar seriamente sobre o que se passa em tal sociedade. Na verdade, a França sarkozista vê-se cada vez mais obcecada pelo tema da identidade nacional. Um longo e polêmico debate acaba de ter lugar nos fóruns políticos governamentais a esse respeito, com profunda repercussão social. O que já tivemos oportunidade de saudar recentemente aqui mesmo na editoria « Volta do Mundo » (VM) como cosmopolitismo, em função da presença de inúmeras nacionalidades estrangeiras em Paris, é visto por setores nacionalistas e reacionários, quando se trata de trabalhadores e pobres, como uma ameaça às origens « francas » e « gaulesas » dos franceses. 

O leitor do M&QS está agora mesmo a se perguntar sobre o que teria toda essa esparrela a ver com um partido de esquerda, ligado à IV Internacional. Poderíamos resumir provocativamente a questão dirigida a alguns dos militantes do NPA como: uma vez descendente do « racionalismo cartesiano »* francês, para sempre cartesiano! Mas seria simplificar as coisas, até porque nesse caso envolve-se também o tema das mulheres e consequentemente as conquistas do movimento feminista, a partir da segunda metade do século XX. 

Apenas para situar o leitor - visto que o nosso blog coletivo nasceu no ano passado e sendo toda essa polêmica bem mais antiga -, recomendamos ler os trechos da entrevista de Daniel Bensaid (também membro fundador desse partido falecido recentemente), divulgada, no mês de janeiro, em homenagem póstuma na VM. Ele situa, por exemplo, o apoio à luta pela Independência da Argélia associada à onda política e cultural que vai desaguar no Maio de 1968. Isto remete ao processo colonial, pois vários dos descendentes de magrebinos* que aqui moram provêm das antigas colônias da África do Norte, dominada durante muito tempo pela França. Trata-se, portanto, da lei do « eterno retorno ». Os povos ex-colonizados buscam abrigo na Velha Mãe européia. Até os anos 50, essa mão de obra era bem-vinda, mas, a partir do começo do declínio da dita « sociedade industrial », o que era uma solução começou a virar problema. Assim, hoje, os imigrantes argelinos, marroquinos e tunisianos, mesmo naturalizados, incomodam e prejudicam a « identidade nacional » francesa que não quer se misturar com sangue árabe nem africano, da mesma forma que Sarkozy opõe-se ardentemente à entrada da Turquia na Comunidade Econômica Europeia.

Pois bem. A candidata do NPA, Ilhem Moussaïd, uma jovem estudante de 25 anos, de mãe marroquina e pai francês, e também nascida no Marrocos, que veio para a França aos três anos de idade, lançou-se às próximas eleições pela região de Avignon, mais precisamente em Vaucluse. Vale lembrar, porém, que essa é uma área de disputa eleitoral da Frente Nacional de Le Pen, expoente da ultradireita nacionalista, para não qualificá-lo diretamente de fascista. Mas o problema é: se ao NPA não interessa o poder e ele questiona o « establishement », por que tanta preocupação com a reação indignada da velha França, em suas distintas vertentes racionalista e nacionalista? Estaria caindo na armadilha do discurso e argumento laico, utilizado em 2004 para proibir o véu (« foulard ») nas escolas públicas francesas, em nome do ensino republicano? Nesse caso, não se trata de crianças, passíveis de serem influenciadas, mas de uma mulher adulta, a quem se tenta ameaçar com cassação ou « impeachment » de sua candidatura pelo simples fato de ser « diferente ». A Justiça francesa, felizmente, deu em 17 de fevereiro, a partir do Tribunal de Marselha, voto contrário ao pedido de rejeição da candidatura de Ilhem Moussaïd, impetrado pela associação internacional AWSA (Arab Women’s Solidarity Association) - curiosamente defensora da participação das mulheres árabes na vida social-, supostamente por ferir os princípios da República. Sente-se de longe o cheiro da manipulação política, a qual levou, porém, a que muita gente, dentro e fora do NPA, saísse da toca e manifestasse os seus próprios preconceitos em relação ao tema.

Desde o 11 de setembro, pelo menos, sabe-se do peso da propaganda contra os muçulmanos, que viraram de um dia para o outro sinônimo de « terroristas », o que veio reforçar antigas tensões coloniais. Trata-se aqui, porém, de um caso que foge aos padrões do « pensamento único » e da ideologia de segurança norte-americana e francesa. O pivô da questão é uma mulher de esquerda que usa o véu, o que constitui um verdadeiro paradoxo, se considerarmos as análises reducionistas hegemônicas que associam sempre mulheres muçulmanas a sujeitos sem voz. Num outro contexto, o filme « Persépolis », que se passa no Irã, ajuda a ver que as mulheres que usam véu não constituem necessariamente um bloco religioso monolítico, sem divergências, expressão ou opinião. Ali, muitas mulheres são obrigadas a usá-lo, mesmo sem o querer. No caso em questão, a candidata do NPA mora em um país onde tem a liberdade de não usar, mas prefere fazê-lo, por uma escolha pessoal. O que parece ainda mais bizarro e paradoxal, aos olhos do senso comum « racionalista”, é que Ilhem Moussaïd professa os mesmos valores que as companheiras feministas que ameaçam abandonar o partido em nome do combate à opressão feminina, que, segundo elas, o véu representa.

Não seria esta atitude uma reinvenção do totalitarismo? Qual o direito que homens e mulheres de esquerda têm de exigir que uma mulher desfigure a sua identidade e estrutura pessoal, se ela mesmo se afirma « laica e feminista », embora porte um véu? Como declarou Pierre Godard, o cabeça da lista do NPA às eleições regionais e veterano das lutas sindicais, em solidariedade a ela durante uma entrevista ao jornal Le Monde: “Ilhem segurou as pontas até agora, mas o meu grande medo é de que a façam estourar. Ela foi projetada no meio de algo de uma violência inimaginável ». ["Ilhem a bien tenu le choc jusque-là, mais ma grande trouille, c'est de la péter. Elle a été projetée dans un truc d'une violence inouïe"]. 

Não custa lembrar que antes de ingressar no NPA, Ilhem militava numa Associação de Jovens contra a Discriminação. Diz ela que o seu bairro estava entregue às tensões inter-étnicas, tratadas pelo Estado apenas pelo viés da segurança pública. Não havia espaço para o debate da questão social e das políticas públicas, para não falar de cultura. O apoio que esses jovens receberam do NPA foi uma luz no fim desse túnel de isolamento – ou « solidão », para lembrar a bela referência de Hannah Arendt, ao isolamento na esfera pública -, em que querem mergulhar os estrangeiros ou descendentes de imigrantes das ex-colônias francesas.

Foi com surpresa, assim, que tomei contato nesse mês de fevereiro com essa atitude vacilante do NPA. Julgava que a « novidade » dessa nova sigla residia justamente na capacidade de acolher os temas emergentes no século XXI – ecológicos, de orientação sexual, imigração, sem-abrigos, entre muitos outros -, para enfrentar e saber resistir à pressão do status quo. A novidade do NPA estaria em se colocar como uma alternativa de leitura crítica e propositiva aos velhos problemas produzidos pelo sistema colonial e ainda objeto de rancor e revanches intermitentes. Como bem exprime outra das lideranças do NPA, Omar Slaouti, ao apontar o cerne da polêmica e que dá a tônica da atmosfera política e cultural francesa: “Um partido que defende os árabes e os negros perde votos » [« Un parti qui défend les arabes et les noirs perd des voix »]. 

Como dizem Isabelle Stengers e Philippe Pignarre (ver link abaixo), se a criação do NPA tem um sentido, este é justamente - tal como propôs o movimento feminista originalmente - o de « fazer política » de outra maneira e não como os demais partidos clássicos, que pretendem que os problemas se resolvam pela simples iluminação de ideias puras ou pela imposição arbitrárias de leis. Os problemas, reduzidos a esses termos, certamente não são capazes de mobilizar novas respostas. Caberia, segundo eles, encontrar maneiras diferentes de formular essa questão e não dar simplesmente acolhimento a esses sujeitos e suas demandas. O desafio residiria, portanto, em contribuir para engendrar movimentos sociais, inspirados nas práticas e valores de todos os que lutam contra a desordem capitalista e o Estado policial.

A expectativa deles e nossa é de que o NPA não ceda à pressão - embora sejam muitas as divergências internas -, em nome do conforto das ideias « seguras » ou da tentação da facilidade. O projeto político libertário e anticapitalista que ele representa e acena como promessa de futuro - numa França com uma esquerda cindida e por ora sem muitas chances nacionais eleitorais frente ao sarkozismo - exige, ao meu ver, ser capaz de reunir mulheres com ou sem véu e traçar caminhos comuns, não obstante escolhas pessoais distintas. Logo, é preciso não se deixar dividir pela pressão política e midiática externa que pretende tudo saber acerca do feminino, a qual tem induzido muito mais ao « falseamento » da complexa emancipação feminina. Ao meu ver, não é rejeitando uma militante de esquerda da arena política, pelo uso de um véu, que se estará contribuindo para um futuro sem opressão feminina.

Convidamos, nessa VM, duas amigas a colaborarem, para multiplicar os olhares sobre a questão: uma delas, genuinamente francesa, comunista, do alto dos seus 85 anos e de uma longa experiência de jornalismo, junto ao « L’Humanité – Dimanche » [um dos veículos de comunicação do partido comunista francês, que circulava aos domingos] insiste em pensar diferente. Também na contracorrente, uma brasileira psicanalista, de Minas Gerais, que tem normalmente o dom de pesar com sensibilidade os dramas humanos, pensa-o agora pelas lentes e experiência de quem mora há 9 anos na França.

A opinião delas vem se somar ao nosso pleito e ao de Roland Barthes, quando diz, em Fragmentos do Discurso Amoroso, que o século XXI será feminino ou não será. Isso significa saber integrar todas as facetas do ser social, bem como sua porção indivíduo (que era nossa intenção abordar nessa VM, mas tivemos que ceder espaço às reviravoltas do real). Dele fazem parte a religião e a cultura, cujo tratamento pela esquerda no passado foi marcado pelo descaso e rigidez, o que rendeu cisões irreparáveis e prejuízos incalculáveis na Rússia, Leste europeu e também na China. Como dizem mais uma vez Stengers e Pignarre, somos, diante da problemática do véu, conclamados « a não bancarmos os juízes, mas a ousarmos viver a aventura da democracia, que é feita certamente de coexistência, diferenças e aprendizagem mútua ».

Relembrando o velho Trotsky, quando falava a respeito de «a nossa moral e a deles », o que importa, assim, não é o que pensa a direita ou o « cartesianismo francês » sobre o véu, mas o que pensa e defende um partido de esquerda. Aspiramos, real e utopicamente, contra a sombria desesperança de um mundo dividido por guerras religiosas e inter-étnicas, que um « parti de gauche » prime pela democracia, pela alteridade e pelos direitos humanos, em especial os direitos da mulher. 


Mione Sales é assistente social, professora universitária (FSS/UERJ) e doutora em Sociologia (USP). E-mail contato: mionesales

::::::::::::::::::::::::::::::::

Pequeno GLOSSÁRIO

« Racionalismo cartesiano » ou « cartesianismo » - referem-se à rigidez que pouco a pouco adquiriram os princípios em defesa da Razão, politicamente abraçados pela França, desde o movimento Iluminista e que se esboçaram na Revolução Francesa, amparados nas teses do filósofo René Descartes (1596-1650). Mesmo se muito dos grandes filósofos e cientistas do passado acreditavam em Deus, procurando, inclusive, justificá-lo em sua perfeição e abstração, matematicamente, pouco a pouco, a racionalidade fundada na ciência reinvidicou-se progressivamente laica ou mesmo atéia. Nada contra não fosse a intolerância e preconceito que advêm contra os que praticam religiões. A intolerância parece, inclusive, fecundar na contemporaneidade a olhos vistos de parte a parte. A crítica ao cartesianismo e seus reducionismos na abordagem do corpo, do tema do antigo colonialismo e das religiões aproxima as lutas dos movimentos feministas, negros e ecumênicos, exceto quando um véu os separa.

Magrebino – Relativo ao Magrebe, região da África que compreende, principalmente, a Argélia, o Marrocos e a Tunísia, mas também a Líbia e a Mauritânia.

Lei da Laicidade – refere-se à lei N° 2004-228, de 15 de março de 2004, enquadrando, sob o signo do princípio da laicidade o porte de símbolos ou vestimentas manifestando uma aparência religiosa nas escolas, colégios e liceus públicos franceses.
::::::::::::::::::::::::::::


Olhar JORNALÍSTICO
Os Hipócritas

Jacqueline Beaulieu*
Se eu tivesse um mínimo de coragem, amanhã eu sairia com um véu sobre a cabeça; não uma burca, embora quando a gente envelhece (ou pior, quando se é realmente velho) pode ser até bem conveniente. Refiro-me muito mais a um pedacinho de tecido, elegante  tanto quanto seja possível, que dissimulasse minha branca e já esparsa cabeleira.

           Fotomontagem: tema « Cabelos e acessórios femininos no Ocidente »

Cansei de escutar todos os nossos bons apóstolos assustados pela presença - na lista do Novo Partido Anticapitalista (NPA) para as próximas eleições regionais - de uma jovem mulher equipada com uma minúscula « bandana ».
Declaro imediatamente que não sou membro desse partido e que não votarei nele. Não que algumas de suas ideias não sejam interessantes, mas, aos meus olhos, talvez as motivações do NPA não sejam exatamente puras, ao aceitar essa pessoa na sua lista. Uma atitude que faz pensar no governo Sarkozy, ao exibir seus ministros « originários de minorias visíveis », apenas por ser de bom tom nomeá-los.
Mas enfim no que acreditam todos estes indignados virtuosos? Que a laicidade é a rejeição das crenças, e singularmente a dos muçulmanos que praticam a segunda maior religião da França.
Estamos numa França retrógrada que, depois de ter estigmatizado os judeus no século passado, não ousa mais fazê-lo e descarrega agora suas baterias sobre os árabes. Isto é sempre mais fácil e bem visto pelas autoridades do que falar em desemprego, no problema de habitação inadequada, nas seiscentas mil crianças que vivem abaixo da linha de pobreza, nas insuficiências dos sistemas escolar e universitário.
Cada um se protege, fazendo da laicidade uma espécie de escudo, mas sem ousar erguer a bandeira de uma França judaico-cristã. Sou laica da ponta dos pés até a raiz dos cabelos. Sempre vivi num meio « laico », como também meus filhos e netos. Mas a minha laicidade consiste, primeiramente, em respeitar a República: sua escola, sua justiça, seu sistema hospitalar, seus serviços públicos, as crenças de uns e de outros. Noções que o nosso governo se esforça, com grande dinamismo, em liquidar a preço de banana.
Todavia, a laicidade não consiste para mim em rejeitar uma jovem que prega a igualdade homem/mulher, a contracepção e mesmo o aborto e que, para o horror de muitos, esconde os seus cabelos. « Vai de retro, Satanás! Você não é nem pode ser laico!»
Mas, de fato, ela o é e melhor que muitos dentre nós, pois ela ousa ter uma religião e desafiar suas interdições para ser uma cidadã como você e eu.
Por isso perguntamos: quem chegou a se chocar por ver, outrora, o abade Pierre, deputado de Meurthe e Moselle [região da Lorraine], participar, entre o final dos anos 40 e começo dos anos 50, às sessões da Assembleia nacional (agora Câmara dos Deputados) em trajes religiosos?
Quem se choca hoje de ver nosso Presidente fazer o sinal da cruz durante uma cerimônia oficial em uma igreja, uma inovação que os seus predecessores não tinha jamais praticado?
Quem se choca com as considerações feitas por Fadela Amara* - à frente de um cargo inútil, mas exibida como um troféu pelo governo Sarkozy -, que semeiam ainda mais a desconfiança a propósito de uma pessoa mais coerente que ela?
Nada de mais enriquecedor que as culturas que se interpenetram. O que os franceses arrogantes desdenham. Eles estimam que somente sua cultura dita « ocidental » é digna de penetrar o outro, pronta a esmagá-lo.
Nossos contemporâneos e contemporâneas esqueceram que foi somente em 1945 que as mulheres francesas tiveram direito ao voto. Um direito que elas levaram um certo tempo a exercê-lo com toda independência. Ninguém lembra mais que a autoridade « parental» somente substituiu a autoridade «paterna » nos anos 70. Que a mulher somente pôde abrir uma conta bancária pessoal apenas por volta de 1965. E que permanecemos ainda longe da repartição das tarefas domésticas entre homem e mulher. E que a famosa bandeira « a trabalhos iguais, salários iguais » continua a ser um sonho revestido pela bruma.
Sim, se eu fosse corajosa, portaria um véu para caçoar de todos os nossos bons espíritos. Mas eu não sou e, para cobrir os meus cabelos grisalhos, contento-me em usar uma chapka*.

Jacqueline Beaulieu – é jornalista. E-mail de contato:
:::::::::::::::::::::::::::

Pequeno glossário



Abade Pierre – em francês Abbé Pierre (1912-2007), foi o fundador do Movimento Emaús (organização laica de luta contra a exclusão), que tem como umas das frentes de luta principais o direito à habitação digna para os desfavorecidos. Padre católico franciscano, Abbé Pierre participou durante a Segunda Guerra Mundial do movimento de resistência, tendo sigo logo depois eleito deputado.

Fadela Amara – Secretária de Estado encarregada da Política da Cidade, junto ao Ministério do Trabalho, das Relações Sociais, da Família, da Solidariedade e da Cidade. Francesa, mas de origem argelina, ela ganhou notoriedade justamente à frente do movimento “Ni Pute Ni Soumise” [Nem Puta nem Submissa] ligado a uma associação de mulheres de mesmo nome (NPNS), fundada em 2003, que reivindicava o direito de escolha e liberdade das mulheres da periferia, expostas à cultura machista local. Como se pode ver, ela foi cooptada, desde 2007, pelo Governo Sarkozy, como parte da estratégia denunciada no artigo de J. Beaulieu. Nesse ínterim, a Associação NPNS viu partir seu quadros militantes fundadores, em razão da inequívoca perda da independência política e também sobretudo por esse governo estar associado à discriminação e estigmatização dos imigrantes moradores dos ditos “bairros sensíveis”.[http://www.gouvernement.fr/gouvernement/fadela-amara]

Chapka – elegante e quente chapéu de pele tipo russo, o qual possui uma versão esportiva com proteções longas para as orelhas, semelhantes a um chapéu de aviador.
[http://photos.codes-sources.com/r/trouve.aspx?r=chapka]

::::::::::::::

Olhar PSI

E por falar em véu: 
polêmica sobre uma diferença fundamental


Soraya Minot*



"E aquilo que nesse momento
Se revelará aos povos
Surpreenderá a todos
Não por ser exótico
Mas pelo fato de poder
Ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio"

Milton Nascimento. "Um índio"


Por que o uso do véu pelas mulheres árabes e de religião muçulmana ganhou ares de polêmica e se tornou uma problemática? Na minha opiniao, essa questão “vela” e revela várias outras, emblemáticas do ser humano. Aponta para o mistério da mulher, ou seja, o mistério do outro. Proibir o uso do véu vai, assim, corroborar com um desejo de apagar as diferenças e denegar o desconforto causado pela alteridade.

Uma evidência surge: o uso do véu concerne apenas às mulheres. Haveria, por conseguinte, no corpo feminino algo que, paradoxalmente, poderia se mostrar apenas por meio do artifício do que está oculto?

Se levantarmos, então, o “véu” em torno da questão do véu, o que se revelaria?

Revelar-se-ia certamente o olhar de alguns homens satisfeitos libidinalmente, por terem inconscientemente realizado um desejo infantil, como aquele de levantar subitamente a saia de uma menina e descobrir, com excitação e não sem algum horror, a diferença dos sexos. Recordação terrificante do corpo materno proibido e, portanto, desejado. O que provoca medo no corpo das mulheres, tendo que ser dissimulado sob burcas, véus, cintas-ligas ou meias-arrastão? São aparatos que mascaram algo que não deveria ser visto? Evidentemente a resposta é simples a formular e complexa a pensar: nada. O nada, a falta, a constatação da castração. Das duas categorias de humanos: os que têm e os que não o têm, a mulher é aquela que não tem. Basicamente tanto os homens, como as mulheres sabem que são castrados, não sabem, porém, que é a entrada na cultura e a linguagem que nos constitui como seres de falta. Proibir o porte do véu, constranger mulheres, apagar as diferenças: por detrás desse desejo, encontra-se um outro que é o de recusar a nossa própria castração enquanto seres humanos.

Na minha opinião, a resposta que vai ao cerne da questão não viria de uma legislação referente ao uso do véu, mas do investimento no apoio e decifração do processo de integração da diferença homem/mulher e na reflexão sobre a falta constitutiva do sujeito.



Soraya Minot – é psicanalista. E-mail de contato: sorayaminot @mail.com

:::::::::::::::::::::::

Para ler mais




(artigos da imprensa francesa sobre o caso de Ilhem Moussaïd)

(ensaio em português que analisa o fenômeno do uso do véu)

(pronunciamento do NPA a respeito, não obstante as divisões internas)

(Olivier Besancenot, líder do NPA, e candidato às últimas eleições presidenciais, pronuncia-se em vídeo a respeito dessa polêmica. Para ele, as convicções religiosas não constituem um obstáculo à entrada e representação política em um partido de esquerda)


(sobre o documentário “Les Français” (Dir: Guy Girard/ França, 2009)

Para ouvir

http://www.youtube.com/watch?v=awATmnNmkIE

(Blowing the wind, na voz de Diana Pequeno)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário e/ou impressão...