terça-feira, 31 de maio de 2011

Editoria Caleidoscópio Baiano

Adeus ao Mestre Abdias


Claudia Correia*

A notícia da morte de Abdias Nascimento deixou toda a Bahia triste por sua presença inspiradora entre nós. Aclamado com o título cidadão de Salvador pela Câmara Municipal e homenageado pela Assembléia Legislativa, o Mestre Abdias foi uma referencia para muitos jovens negros, militantes em defesa dos direitos humanos e da luta anti-racista, principalmente do movimento negro baiano. Sua sabedoria e força motivaram muitas experiências educacionais de afirmação da identidade cultural na Bahia, de expressões artísticas e até de blocos afros como o Olodum.

Para prestar uma justa homenagem a Abdias, compartilho com vocês este texto de Antonio Olavo, com quem trabalhei em 1987 no IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. O portal Correio Nagô reproduziu o artigo, que foi originalmente publicado em 2008 e resume a trajetória brilhante do Mestre que se despede de nós deixando um exemplo vivo de resistência e luta em defesa da democracia racial no Brasil.


 (*) Claudia Correia – Assistente social, jornalista, profª da ESSCSal, Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br

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Abdias Nascimento: luta e memória negra


25/05/2011.
Antonio Olavo.



Nos últimos anos, tem sido crescente no Brasil a discussão sobre a implantação das políticas afirmativas e de reparação, particularmente aquelas que atingem a população afrodescendente. Em que pese as resistências de parcelas expressivas da sociedade brasileira, apegadas a nichos seculares de conhecimento, poder e bem-estar, atualmente vivemos uma situação especialmente favorável, com debates e reflexões sobre questões como a adoção de cotas nas universidades públicas, o Estatuto da Igualdade Racial, o reconhecimento das comunidades quilombolas e a implantação da Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras nas escolas públicas e particulares em todo o país.

Essa frente de luta em defesa dos direitos fundamentais dos afrodescendentes não é recente e se confunde com a chegada dos africanos no Brasil, pois a exploração também trouxe consigo a resistência, sempre constante no povo negro, que sabotava o trabalho quebrando ferramentas e incendiando plantações, fugia para formar quilombos e se rebelava nas insurreições urbanas, lutando pela liberdade, finalmente conquistada em 13 de maio de 1888. Essas reações demonstram que, durante o longo tempo em que perdurou o regime servil, não foram pacíficas nem ordeiras as relações entre os senhores escravocratas e a população negra cativa.

Mesmo nas décadas seguintes à Abolição, a população negra foi colocada à margem no desenvolvimento do país – que, forjado em uma ideologia de superioridade racial, adotou um projeto nacional de branqueamento, incorporando desde uma maciça imigração européia até práticas políticas que buscavam a completa invisibilidade da história dos afrodescendentes. Embora representassem metade da população, negros e negras eram preteridos no mercado de trabalho e não tinham acesso a condições de vida digna, sufocados pelo peso de 350 anos de escravidão que se abateu sobre milhões de homens e mulheres nascidos livres na África e trazidos à força para serem escravizados no Brasil. No pós-abolição, com deveres, mas sem direitos, o povo negro se reunia em associações comunitárias, entidades recreativas, jornais independentes, irmandades religiosas católicas e terreiros religiosos com matriz africana e essas novas formas de organização contribuíram decisivamente para a reconstrução no país de diversificadas identidades, que reafirmaram valores e acumularam forças na luta contra o racismo, já institucionalizado em toda a sociedade brasileira.

Se muitas são as dificuldades que ainda fazem parte da vida dos descendentes de africanos no Brasil, inimagináveis foram as que enfrentaram nas décadas que sucederam ao 13 de maio. Nesses tempos duros, muitos foram os que chamaram para si a condição de luta intransigente contra as concepções e práticas racistas, denunciando e rompendo com os padrões de uma sociedade que viam o homem e a mulher negra como seres inferiores e os queriam submissos e tutelados. No entanto, a historiografia tradicional ignorou o registro e desprezou a deferência, buscando manter oculta a história dos que se rebelaram por viver numa sociedade preconceituosa e extremamente desigual.

É nesse contexto que se coloca como da maior importância conhecer a trajetória de Abdias Nascimento, um homem cuja obra e atuação política, ao longo dos últimos 75 anos, são essenciais para a afirmação da identidade afro-brasileira.


Abdias e Ruth de Souza - Ensaio de Auto da Noiva. Foto Funarte.


Neto de africanos escravizados, filho de pai sapateiro e mãe doceira, Abdias Nascimento nasceu em 1914 na cidade de Franca (SP) e, desde criança, aprendeu com sua mãe que nunca deveria deixar sem resposta uma ofensa racial. No início da década de 1930, participou da Frente Negra Brasileira (primeira tentativa unificada de organização do Movimento Negro no Brasil) e, mais tarde, foi para o Rio de Janeiro, onde a cultura negra pulsava com mais força, passando a freqüentar terreiros de candomblé, como o de Joãozinho da Goméia, em Duque de Caxias, penetrando mais fundo na alma negra e se aproximando de suas tradições culturais. No Rio, centro do pensamento político e cultural do país, Abdias passou a conviver com importantes intelectuais negros, como Solano Trindade, fundador da Frente Negra de Pernambuco e militante político marxista, a quem considerava o maior poeta negro do Brasil contemporâneo. Outro companheiro de muitas jornadas foi Abigail Moura, maestro da Orquestra Afro-Brasileira, pioneiro na criação de música erudita com base na cultura negra.

Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, extinguiu os partidos políticos e instaurou a ditadura do Estado Novo. Por distribuir panfletos de protesto contra a nova ordem política, Abdias e mais quatro colegas foram presos e passaram 6 meses na Penitenciária Frei Caneca. Em maio de 1938, após ser libertado, organizou, junto com Agnaldo Camargo e Geraldo Campos, o Congresso Afro-Campineiro de Campinas. Em 1941, já em São Paulo, Abdias foi preso novamente pelo Estado Novo, que reabriu um antigo processo dos seus tempos de Exército. Levado para a Penitenciária de Carandiru, onde passou dois anos, fundou o Teatro do Sentenciado, organizando um grupo de presos que dirigiam e interpretavam suas próprias criações dramáticas.

Essas ricas experiências o levariam a fundar, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), que teve presença destacada no cenário cultural do país, abordando a estética e a identidade negra nas artes plásticas e no teatro ao mesmo tempo que desenvolvia propostas de políticas públicas para o povo afrodescendente, combatendo a idéia predominante de que não existia racismo no Brasil. Entre seus inúmeros feitos, o Teatro Experimental do Negro organizou o I Congresso do Negro Brasileiro em 1950 e transformou-se em uma iniciativa revolucionária, que buscava fazer com que os negros não continuassem representando para a diversão dos brancos, e sim afirmassem a sua verdadeira história, fortalecendo os valores da cultura tradicional africana.

Em 1968, em plena ditadura militar, Abdias fundou o Museu de Arte Negra com obras doadas por artistas comprometidos com a luta contra o racismo. Mas sentindo a pressão de vários inquéritos policiais militares (IPMs), em novembro de 1968, deixou o país às vésperas do Ato Institucional nº 5 (AI5). Ministrou aulas, palestras e conferências em várias universidades norte-americanas e européias, sempre denunciando as práticas de racismo no Brasil.

No ano de 1977, participou do II Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, realizado em Lagos (Nigéria), e propôs que o encontro adotasse como recomendação ao governo brasileiro o ensino compulsório da história e da cultura da África em todos os níveis da educação: elementar, secundário e superior.

De volta do exílio, Abdias estava no histórico 7 de julho de 1978, quando, perante três mil pessoas, foi lançado, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), com um manifesto que afirmava: “O MNUCDR foi criado para ser um instrumento de luta da comunidade negra”.

Em 1980, durante o II Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado no Panamá, Abdias lançou o Quilombismo, proposta de organização sócio-política que recupera a experiência histórica das comunidades quilombolas no Brasil, nas Américas e na África e propõe o poder para o povo negro, com a construção de uma sociedade nacional quilombista, “igualitária em todos os sentidos”, onde haja cidadania plena e respeito às diferentes matrizes culturais dos grupos discriminados.

A partir dos anos 1980, Abdias ampliou sua atuação política, disputando eleições e ocupando cargos executivos no governo do Rio de Janeiro. Candidatou-se a deputado federal em 1982. Ficou na terceira suplência e assumiu o mandato em março do ano seguinte, tornando-se o primeiro deputado a exercer o mandato defendendo os direitos dos afro-brasileiros, inclusive apresentando projetos de lei propondo políticas públicas compensatórias para a população afrodescendente.

Pelo mesmo PDT, em 1990, então com 76 anos, é eleito suplente de senador, assumindo a cadeira um ano depois. Deputado, senador, escritor, poeta, dramaturgo, professor emérito e Doutor Honoris Causa em várias universidades no Brasil e no exterior, Abdias tem também um relevante trabalho como artista plástico e sua obra compõe um rico tesouro de referências sobre a ancestralidade africana, abrangendo a luta dos negros escravizados por liberdade, cidadania e direitos humanos. Sua arte se insere numa visão mais ampla do desenvolvimento milenar da civilização africana em todo o mundo, pois abarca a história do africano como autor de saberes eruditos e criador de uma estética de profundo impacto e significado.

Reconhecido internacionalmente como uma das mais importantes personalidades brasileiras do século XX, Abdias Nascimento tem se dedicado à missão de recuperar a dignidade humana do povo negro e à defesa de uma identidade ideológica baseada na experiência histórica dos povos africanos e das diásporas nas Américas, Caribe e Pacífico. Esse ícone da cultura negra no Brasil, chega aos 94 anos de existência sendo detentor de um legado de cultura e sabedoria respeitado e admirado por muitos.

Publicações de Abdias Nascimento

Quilombo: Edição em fac-símile do jornal dirigido por Abdias do Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2003.

O quilombismo, 2ª ed. Brasília/ Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares/ OR Produtor Editor, 2002.

O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/ Editora da Universidade Federal da Bahia EDUFBA, 2002.

Orixás: os Deuses Vivos da África/ Orishas: the Living Gods of Africa in Brazil. Rio de Janeiro/ Philadelphia: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros/Temple University Press, 1995.  

A Luta Afro-Brasileira no Senado. Brasília: Senado Federal, 1991.

Africans in Brazil: a Pan-African Perspective, com Elisa Larkin Nascimento. Trenton: Africa World Press, 1991.

Brazil: Mixture or Massacre, trad. Elisa Larkin Nascimento. Dover: The Majority Press, 1989.

Combate ao Racismo, 6 vols. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983-86. (Discursos e projetos de lei.)

Povo Negro: A Sucessão e a “Nova República”. Rio de Janeiro: Ipeafro, 1985.

Jornada Negro-Libertária. Rio de Janeiro: Ipeafro, 1984.

Axés do Sangue e da Esperança: Orikis. Rio de Janeiro: Achiamé e RioArte, 1983. (Poesia.)

Sitiado em Lagos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.

Sortilégio II: Mistério Negro de Zumbi Redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Peça de teatro.)

Sortilege: Black Mystery, trad. Peter Lownds. Chicago: Third World Press, 1978.

Mixture or Massacre, trad. Elisa Larkin Nascimento. Búfalo: Afrodiaspora, 1979.

O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

“Racial Democracy” in Brazil: Myth or Reality, trad. Elisa Larkin Nascimento, 2ª ed. Ibadan: Sketch Publishers, 1977.

“Racial Democracy” in Brazil: Myth or Reality, trad. Elisa Larkin Nascimento, 1ª ed. Ile-Ife: University of Ife, 1976.

Sortilégio (mistério negro). Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro, 1959. (Peça de teatro.)

Fonte: http://www.abdias.com.br/  

Antonio Olavo é Cineasta e diretor do filme documentário “Abdias Nascimento Memória Negra” (2008). olavo@portfolium.com.br

Este texto foi publicado originalmente na PRESENTE! Revista de Educação, em dezembro/2008.

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