segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Editoria Web@Tecno

                            
                                 Fotos Celular: Nelma Espíndola


“Da Janela Lateral”
De onde os bem-te-vis cantavam


Nelma Espíndola*


“Da janela lateral
Do quarto de dormir
Vejo uma igreja
Um sinal de glória
Vejo um muro branco
E um vôo, pássaro
Vejo uma grade
Um velho sinal...”

Fernando Brant/Lô Borges



A pré-invasão


Na última terça-feira (23), não acordei ao som dos bem-te-vis que cantam abaixo de minha janela, solenemente pela manhã. O sol não veio forte. Pus-me a sair da cama, sem a quentura que me cobre o corpo sempre que ele nasce com vigor lá no horizonte. Nada disso! O dia amanheceu silencioso, nublado e tive de fazer um esforço a mais para me levantar, pois tinha um compromisso de trabalho na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

No trajeto para lá, na Av. dos Democráticos, presenciei com certo temor, o que seria o início das incursões das polícias civil e militar no decorrer da semana; nesse dia a favela de Manguinhos estava tendo a “visita” da Polícia Civil. Homens com armas em punho, adentrando pelas vielas, mulheres e crianças saindo delas. Na Av. dos Democráticos, o trânsito correndo, as calçadas com pessoas nos pontos de ônibus, mas o que tornava aquele quadro mais triste eram os fogos estourando no céu. Os passageiros do ônibus em que eu estava mostravam caras de apreensão e medo. Da janela do coletivo, avistava os mais expostos de sempre, dormindo nas calçadas, com seus lençóis sujos, aglutinados: crianças, adolescentes, jovens... Alguns com o corpo em meio ao lixo... Será que dá para dizer que são mesmo “invisíveis”? São os habitantes da Cracolândia, que se estende até a entrada da Favela do Jacarezinho, o Point do Crack.


Meu retorno à tarde para casa foi tranquilo. Vim como todos os dias de trem, depois de ir da Estação da Mangueira até a Central do Brasil e de lá para a Penha, bairro que faz parte da minha história de vida. Local pelo qual tenho amor. Nesse trajeto, acompanhada de duas outras amigas assistentes sociais, falávamos sobre as desigualdades sociais, a má distribuição de renda e o esforço louco visto e vivido cotidianamente por “nós”, trabalhadores usuários dos trens, nas correias de ocupação de cada composição, para ir para casa sentados... Com um detalhe: os trens mais velhos e menos confortáveis são aqueles disponibilizados para os usuários da Baixada Fluminense!

À noite fui me dar conta dos inúmeros atentados que vinham sendo cometidos a mando dos traficantes em vários pontos da cidade, com extensão na Baixada Fluminense.

Na quarta-feira (24), a coisa se intensifica e resolvo não sair de casa. Vejo helicópteros sobrevoando a Igreja da Penha. E alguns tiros...

 

                                          Fotos Celular: Nelma Espíndola


O processo começa...

Chega a quinta-feira (25). Os bem-te-vis continuam mudos, o sol encoberto, o dia está triste... Há uma intensificação dos helicópteros. A rota que fazem entrecorta o meu condomínio. São voos razantes. Barulhos de tiros de alto calibre são ouvidos, como se isto acontecesse na rua de casa.


Minha preocupação começa a se intensificar com o trânsito das pessoas amigas, por todo o Rio de Janeiro, pois os atentados não param. Quando começa todo o processo, de fato, de ocupação da Vila Cruzeiro, uma das favelas que compõe o Complexo da Penha, recebi ligações dos amigos e parentes, até de outro estado, preocupados com a segurança de todos de minha casa.

Recorri ao rádio, e na correria do dial, ouvi a chamada da entrevista de Secretário de Segurança Pública do Estado do RJ, José Mariano Beltrame, na Rádio CBN, no programa CBN-RJ. Investi-me de tolerância, não para ouvir o que o secretário diria, mas para ouvir o programa, que em outros tempos,ouvia-o com regularidade.





Preocupei-me mais ainda com o anúncio de invasão da Vila Cruzeiro, em função de que todos estes “atentados” partem das Casas Prisionais, como uma ordem a ser executada cá fora. Como muitos sabem, Vila Cruzeiro é território do Comando Vermelho, a mesma facção que ocupa o Complexo do Alemão.

Só a título de lembrança, em 2007, precisamente, no dia 02 de maio, a Vila Cruzeiro foi invandida para que se efetuasse a prisão dos assassinos de dois policiais, mortos no dia anterior, no mesmo local em que o menino João Hélio foi morto, no bairro de Oswaldo Cruz, subúrbio do Rio. Esse embate se estendeu até o Complexo do Alemão, configurando uma crise que se estendeu por mais de dois meses. Foram dias de terror: o assassinato dos bandidos era, naquela altura, caracterizado como de “embate de execução”, atingindo, no entanto, várias pessoas inocentes, que saíram mortas ou feridas desse conflito.

Expressei meu inconformismo sobre a situação de violência e suas causas, entrecortada apenas pelo silêncio amargo da maioria ou pelo pouco volume de nossas vozes - assistentes sociais - , em razão da surdez propositada e ignorância da mídia comercial em nos ouvir como um profissional importante na atuação técnica pela garantia dos direitos sociais e humanos. Quem me deu voz virtual, através do artigo “Uma profissão esquecida em meio à violência” (ver links abaixo), foi o jornalista Sidney Rezende em seu Portal SRZD, publicado-o em 26-07-2007.

Lembro-me que depois de toda aquela bárbarie, houve a promessa de várias políticas sociais, nas áreas de saúde, educação não formal e cultura. Se foram implantadas, é difícil saber, mas a sensação é de que tudo ficou da mesma forma. A violência se revigorou nessas comunidades do Complexo da Penha, especialmente na Vila Cruzeiro, e no Complexo do Alemão. Quando nos indagávamos, por que as UPPs não começaram por esses dois complexos, pergunta que em sinergia era feita por outros que têm voz, a resposta que tínhamos era de que, na hora certa, se fariam as ocupações.

De volta do mergulho nas minhas lembranças, ouço os helicópteros que fazem paradas contínuas sobre a janela da minha sala. Minha família almoça, com eles sobrevoando nossas cabeça. E seguem-se mais tiros...


Ações de segurança em rede: o que tem sido positivo até agora


1) Se fizermos um comparativo entre os dois acontecimentos de violência e invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão em 2007 com este agora em 2010, penso que houve uma efetivação de estratégias de “inteligência” para a tomada do “território”. Um dos pontos-chave no programa de segurança pública do estado é, supostamente, o da realização de ações sem um lastro de sangue em proporções extremas, ante o medo generalizado de que novamente inocentes, moradores dessas comunidades, fossem vítimas de uma ação imediatista. Caso provavelmente dos inúmeros transeuntes da Av. Brás de Pina e ruas adjacentes, que estão mais expostas, com uma frequência maior, ao risco de troca de tiros. Na segunda-feira (22), meu irmão e todos os que estavam na rua tiveram, por exemplo, que correr para dentro das lojas no comércio local para se protegerem;

2) A estruturação e disponibilização do Hospital Getúlio Vargas, um hospital de emergência, para o socorro das possíveis vítimas. Essa foi uma medida de responsabilidade da Secretaria de Saúde do Estado, em parceria com a do município do RJ. Fora isso, conta-se a disponibilidade de 10 leitos na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) - Penha, atrás do mesmo hospital e o hospital de campanha feito na PAM de Del Castilho;

3) A união das polícias Militar, Civil, Rodoviária Federal, acrescidas da Polícia Federal e da logistítica, primeiramente, oferecida pela Marinha, após o desabafo em entrevista de Beltrame, quanto à posição do Exército, que posteriormente se soma à tarefa, conjuntamente com a Aeronáutica.


“Hoje estou pessimista, amanhã otimista” – a Vila Cruzeiro vista do lado de cá

Em 2007, estávamos às vésperas do PAN-07; hoje estamos a caminho dos eventos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Eventos que podem ser ameaçados pela onda de violência, muito embora os responsáveis da Comissão Organizadora dizem que não há esse risco. Mas a mídia internacional mostra-se atenta a todos esses fatos.

Também é recorrente a fala de inúmeros especialistas e acadêmicos - sociólogos, antropólogos, historiadores, criminalistas e políticos -, que são procurados pelas mídias para análise e comentários sobre toda essa bárbarie e violência agudizada que vem se abatendo sobre o Rio de Janeiro. Por enquanto, não tive a oportunidade ainda de ouvir nenhum assistente social, pesquisador ou mesmo de base, dar a sua contribuição a respeito nessa discussão.

Em meio ao conjunto de opiniões e depoimentos, gostei muito do posicionamento crítico de Luiz Eduardo Soares*, em seu blog, quanto ao assédio da mídia na cobertura de mais essa onda de violência pela cidade. O seu artigo chama-se A crise no Rio e o pastiche midiático”,postado no dia 25 de novembro de 2010.

Entretanto, em uma entrevista, na segunda-feira (22), a Thiago Camelo, do Instituto Ciência Hoje, que sairá na primeira edição da Revista Ciência Hoje, em 2011, em que Luiz Eduardo Soares fala de sua obra literária, nesse bate-papo, o caso dos ataques no Rio de Janeiro foi tratado e está on-line. A pergunta virou título: O tráfico já era?

Sinto e vejo em meus familiares, amigos e vizinhos mais próximos, apreensão, mais o forte desejo de que tudo isto acabe da forma mais humanizada possível. Vou fazer um empréstimo de uma frase de Milton Santos, no documentário de Sílvio Tendler, “O mundo global visto do lado de cá”, transmitido pela TV SESC no domingo passado: “Hoje estou pessimista, amanhã otimista”.

Ontem fui ao centro comercial da Penha, na Av. Brás de Pina, via principal do bairro e olhei com muita tristeza os acessos à Vila Cruzeiro, ao Santuário da Penha e ao Parque Shanghaí, principalmente, quando um comboio da Polícia Civil passava em direção à comunidade invadida.


                 Figura 1.                                    Figura 2.                                                  
                        
  Figura 3.                                                          Figura 4.   

É preciso que se pacifique, de fato, essa comunidade e também o Complexo do Alemão, dois pontos de grande tensão aqui na área da Leopoldina. Mas também, que se pense na chamada “Faixa de Gaza”, o Complexo de Manguinhos e o Jacarezinho, onde é enorme o contigente de pessoas em situação de rua, consumidas pelo crack.

É imprescindível assegurar paz e tranquilidade a todos nós morados dos bairros, em que os índices de violência são altos, sem distinção de asfalto ou comunidade. Maior é o grau de coerção, violência e invasão, sem dúvida, experimentado pelos moradores das favelas, comunidades ou bairros populares, como queiram chamar.



Foto: Portal Terra – Vila Cruzeiro, na Penha –RJ.

Este ano, trouxe-me a mémória de uma experiência muito distante que tive na década de 80. Percorri, na época, com relativa frequência algumas ruas, como a Estrada José Rucas e outras, quando aprendia a dirigir. Em algumas especialmente, os carros passam junto às pessoas moradoras do local. Naquele tempo, o sorriso delas resplandecia, mesmo com toda a batalha por dias mais decentes em suas vidas. As pessoas se falavam normalmente umas com as outras. Não era preciso pedir licença aos homens do “tráfico” para entrar ou às milícias, que em certos territórios são “senhores” do chão, numa “refeudalização” do espaço público.


“Paz sem voz não é paz, é medo” - ALGUMAS EXPECTATIVAS NO PLANO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Estou neste domingo, mais aliviada por não ter havido tantas mortes nas comunidades invadidas, muito embora, em todo o Rio de Janeiro o número não tenha sido pequeno. Em uma semana de ataques, foram 39 mortes. No entanto, os helicópteros continuam a sobrevoar a Igreja da Penha.


                                          Fotos Celular: Nelma Espíndola

Temos mais uma vez a oportunidade de repensarmos nossas responsabilidades como sujeitos sociais, na busca por uma distribuição de renda que reduza, de fato, as desigualdades sociais. É hora de assumirmos o controle social das políticas públicas sociais, procurando seguir as pistas prático-políticas que emanam desse conjunto de necessidades.

É preciso levantar a voz para dizer a quem nós elegemos como nossos representantes republicanos que queremos Educação, Saúde, Alimentação, Geração de Emprego e Renda, Urbanismo e Habitação, Cultura, Lazer e tantas outras políticas públicas com qualidade. Que mais essa grave crise urbana funcione como um sinal de alerta aos governos e mandatos que acabaram de ser legitimados pelas urnas.
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Nelma Espíndola é assistente social, webmaster e colaboradora do Blog Mídia e Questão Social. Contato: nelmaespindola@gmail.com

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Fotos:

Figura 1: Largo da Penha – Penha –RJ, altura do Parque Shanghai. Entrada do Santuário de Nossa Senhora da Penha de França.
Figura 2: Largo da Penha – RJ.
Figura 3:  Av. Brás de Pina, altura do Leopoldina Shopping. à direita e a Igreja Bom Jesus à esquerda.
Figura 4: Av. Brás de Pina, esquina com Av. Nossa Senhora da Penha, altura do 28GBM - Penha.
 
Links


Para ler

http://www.sidneyrezende.com/noticia/5958+uma+profissao+esquecida+em+meio+a+violencia

[ “Uma profissão esquecida em meio à violência”, 27/06/2007 - os comentários que tive não estão disponíveis nesta nova versão do portal]

http://midiaequestaosocial.blogspot.com/2009/09/questao-da-pobre-e-cultural-e-historica.html

[“A questão da pobreza é cultural e histórica”, 11/09/2009]

4 comentários:

  1. Muito boas as fotos, Nel! Muito bom o texto! Sua sensibilidade é a pedra de toque que faz a diferença, em meio a essa força bruta do lado de fora da sua janela e sobre as vossas cabeças. Além de um grande abraço, a nossa solidariedade a você e a todos os cariocas, seus vizinhos, que habitam esses bairros e estão a sofrer com toda essa tensão e violência.

    Mione Sales*

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  2. Agradeço-lhe Mimi, com humildade os seus elogios.

    O seu abraço solidário a mim e a todos os cariocas, meus vizinhos de perto e do entorno é extremamente reconfortante! Agradecemos-lhe de dentro do coração.

    Receba agora o meu, o de todos nós!

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  3. Querida Nelma, apesar de toda essa violência vc conseguiu fazer um bom trabalho.
    As fotos ficaram nítidas e o texto complementou tudo o que os cariocas presenciaram na tv.
    Parabéns amiga, e tenho a certeza que um dia todos os (Cariocas e Brasileiros),colocaremos esse epsódio de violência na última página do livro da vida de cada um de nós.
    Bjs.

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  4. Luciana, muito agradecida!
    Quantas reflexões fizemos junto a Esiete em nossos trajetos de trem, hein? Mas me lembro de algumas passagens engraçadas, pelas quais passamos, juntas, também. Sorrimos um pouco... Isto aliviava a alma e nos dá a perspectiva de acreditar na transformação dessa realidade, sem dúvida!

    Bjs.

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