« Volto
as costas ao mar que já entendo
A
minha humanidade me regresso,
E
quanto há no mar eu surpreendo
Na
pequenez que sou e reconheço ».
JOSÉ SARAMAGO
Mione Sales*
Vou começar essa crônica em homenagem ao escritor português José Saramago (1922-2010), que, em 16 de novembro, completaria 90 anos, por uma espécie de mea culpa, admitindo que as aparências, de fato, muitas vezes nos enganam. Certa vez, uma colega de docência no Rio de Janeiro, me escreveu carinhosamente em uma dedicatória do seu livro para eu ser menos arisca. Fiquei refletindo longo tempo sobre o que ela quisera dizer, embora estivesse segura de que era sobretudo discrição de minha parte o que ela não via ou não estava acostumada. Com o passar dos anos, porém, assumi meu lado índio (tenho um pezinho lá no Amazonas): com todas as suas doçuras e ingenuidades, abertura ao outro, mas também com um instinto de defesa quase selvagem. Por vezes, isso é bom, pois serve de bússola e permite que nos afastemos de pessoas que realmente não valem a pena. Noutras, contudo, pode adiar belos encontros.
De ilhas vulcânicas, transatlânticos e unanimidade
O escritor em Lanzarote
Incluo esse pequeno fato, a título de prólogo, para confessar que, como muitos dos seus leitores, até bem pouco tempo atrás, conhecia José Saramago apenas superficialmente. Se meu respeito por sua figura era imenso, havia qualquer coisa em mim que discretamente a ele resistia. Reservas contra qualquer tipo de colonialismo cultural à parte, Saramago era, porém, incontestavelmente, um intelectual completo, um dos maiores expoentes das Letras Portuguesas, aquele cuja obra foi agraciada com o Prêmio Nobel em 1998. Saramago pertence, assim, às hostes dos monstros sagrados da literatura. Com isso, não pretendo estar dizendo nada de novo ou original. Mas a admiração, por vezes, é semelhante à sensação de alguém num pequeno bote inflável frente a um transatlântico. Díficil transpor. Difícil acessar.
Saramago era, para mim, essa figura monumental que já nasceu pronta. Um autor de talento e genialidade, com uma impressionante coerência de esquerda. Eu, por minha vez, com essa alma indígena, pouco afeita à tietagem, sou mais para desconfiada. Implicava, assim, um tanto com esse perfil, que, visto de longe, era pura racionalidade, assentada em uma prosa imbuída de aridez, devido aos temas fortes que sua obra comporta. A minha resistência se explicava ainda pelo fato de que pessoas notórias são muitas vezes menos interessantes justamente por isso. A priori, tendo, em geral, a concordar com Nelson Rodrigues, quando dizia que « toda unanimidade é burra ». A fama, como bem sabemos, deixa muitas vezes este lastro de prejuízo. No entanto, na contramão da fama, o nosso escritor partira morar numa ilha vulcânica nas Canárias (Espanha) e esse seu ascetismo, sim, me intrigava positivamente.
A visita, a porta da curiosidade e o espanto
Casa dos Bicos, onde fica localizada a Fundação Saramago em Lisboa
Por isso, hesitei num primeiro momento ante a sugestão feita por amigas que também estavam em Lisboa, nas férias de agosto, para que fôssemos conhecer a Fundação José Saramago. Mesmo reticente, por recear permanecer sem encontrar a linha de acesso à pessoa e ao mistério da obra, fui com elas nessa visita. Fazia calor, pegamos engarrafamentos, mas conseguimos chegar ao museu. A ideia era visitar ainda mais um, o que não aconteceu. Santa pretensão! Eu tinha que ir mesmo era lá e fiquei convencida disso depois.
Silenciosamente, pus-me, então, a fazer a visita da Fundação, um prédio de arquitetura ousada, chamada « Casa dos Bicos ». A exposição permanente mostrava um belo mar de livros de Saramago, com edições estrangeiras nos mais diversos idiomas. Como sou aficcionada pela edição, esse capítulo visual de inúmeras belas capas de seus romances foi uma surpresa emocionante. Fiquei imaginando as traduções e a recepção dos seus livros por leitores sensíveis e inquietos, ásperos ou não do mundo todo. Entre eles, um título me chamou mais atenção do que sua versão em português. Como para o resto do mundo, o título Memorial do Convento (1982) não quer dizer muita coisa, ele foi traduzido nos países não-lusófonos como Baltazar e Blimunda. Como não sou portuguesa, senti-me à vontade para achar mais belo e sugestivo o título que a obra ganhou no exterior.
Mas o que me encantou mesmo foi a biografia do homem Saramago. Descobrimos logo no começo do percurso que esse nome tão emblemático foi posto pelo funcionário do cartório, pois era assim que o pai dele era conhecido, embora fosse apenas um apelido. Depois, ficamos sabendo que José Saramago era autodidata. Concluídos os estudos fundamental e médio, teve que trabalhar. E o que fazia o nosso José a cada noite? Ia para as empoeiradas bibliotecas da cidade e punha-se a ler tudo o que de mais interessante lhe passava pela frente e foi assim que foi se formando literariamente, tendo adquirido, ao cabo desta empreitada, uma cultura colossal. Eu que sou fã de bibliotecas, fiquei a imaginá-lo nesse ritual pessoal de autoconstrução do seu saber.
A poesia pede passagem para a utopia
Depois da fase operária e já comunista, foi convidado para trabalhar como diretor literário de uma editora, a Estúdios Cor. Foi também responsável pela seção cultural de um jornal, desenvolvendo uma longa carreira como editor, crítico literário e jornalista cultural. Na condição de editor travou interlocução com vários autores portugueses, dentre os quais o escritor Rodrigues Miguéis (1901-1980), exilado em Nova Iorque. Essa correspondência, trocada durante doze anos (1959-1971), foi, inclusive, publicada em 2010. A exposição não deu muitos detalhes de seu envolvimento político com o PC Português, mas certamente este teve uma importância decisiva nas portas que se abriram frente a ele e no reconhecimento do seu talento e potencial.
No começo da sua aventura de escritor, ainda nos anos 60, escreveu e publicou um livro de poesias, Poemas Possíveis, que já maduro e autor confirmado, revisitou e refinou, embora não tenha tirado nem acrescentado nenhum poema. Adquiri esse livro. Queria muito conhecer esse lado mais sensível de Saramago. Teria ele se curvado apenas ao canto épico? Para minha grata surpresa, não. São versos forjados pela têmpera da maturidade do homem de quarenta anos já passados. Anunciava-se ali a a beleza e sobriedade do seu estilo que iria cativar milhões de leitores no futuro.
Anos mais tarde, Saramago, como tantos outros escritores, um belo dia parou para refletir e terminou por reunir a coragem que faltava para se dedicar à sua arte maior: a literatura. Levantados do Chão (1980) é o seu primeiro romance, dessa nova fase, e uma homenagem aos homens da terra, qual seu pai e muitos dos que deixou em Azinhaga, sua cidade natal. Sábia decisão confirmada em muitos livros e por uma escrita dotada de muita personalidade: seca como os bons vinhos tintos que ficaram curtindo durante anos, mas sobretudo em razão da qualidade da uva.
No fundo, tudo são palavras
“As palavras mais simples, mais comuns
As de trazer por casa e de dar troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem».
JOSÉ SARAMAGO
Indagado sobre o lugar das relações sociais na sua obra em contraponto às motivações humanas, respondeu: « Há esse quadro das relações sociais que realmente me interessam muito (…), porque é o quadro em que nos movemos, todos, por muito espirituais que sejamos (…) Interessa-me que esse quadro de relações sociais esteja presente para que o leitor não se perca ». Mas ele restabelece também a dimensão da subjetividade na vida e na literatura: « (…) Temos de estar conscientes de que a subjectividade é rainha e senhora das nossas ações, dos nossos pensamentos, das nossas opiniões. Sobretudo das nossas opiniões (…) A objectividade absoluta (…) não é sequer possível imaginá-la. E não sei se seria desejável (…) No fundo, tudo são palavras. Tudo são palavras».
Por isso, mesmo tendo a princípio em mente um Saramago árido e senhor de si, custa-me aceitar a crítica que um Harold Bloom lhe faz de que na política ele era «estalinista ». Pode ser, quem sabe, como parte das dicotomias humanas. O mecanicismo, contudo, felizmente, não encontrou muito terreno na sua obra, tendo as suas intervenções políticas sido menos importantes que os seus voos na literatura e nos aspectos insondáveis da alma humana.
Prova da sua ousadia, mas também do seu paradoxal respeito e curiosidade acerca do que move o espírito humano foi o seu mergulho nas escrituras bíblicas, do que resultaram livros iconoclastas – O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim -, mas que restituem a centralidade que tais temas tiveram e têm ainda inapelavelmente sobre diversas civilizações. Disse: « Nenhum ateu leu com tanta atenção os Evangelhos como eu». É belo - embora seja dolosoro de admitir - o sentido maior que ele atribui a Deus e a religião: « (…) foi uma experiência muito funda que não me faz sair do livro como um homem crente, mas com um grau de compreensão mais alto de toda esta tragédia humana que é necessitar de um Deus para justificar, para ter esperança, para organizar o mundo. Porque é de uma tragédia que se trata ».
O autor está nos livros todos
No ano de sua morte eu estivera em Portugal e ganhara de uma amiga, cujo filho é jornalista português e crítico literário, o primeiro grande romance de José Saramago, Levantados do Chão, e um número especial da revista Ler (Livros & Leitores), de julho/agosto 2010, dedicada a ele. Confesso que outras leituras e exigências da vida adiaram esse encontro e mergulho, aos quais me entreguei finalmente para a escrita desta crônica. Continuo sempre a pensar, não obstante o mea culpa acima aludido, que tudo tem seu tempo e é melhor irrigar a alma numa determinada direção, quando a semente está pronta para ser plantada.
Li assim inúmeras páginas em justa homenagem à sua pessoa e com vistas ao balanço literário de sua obra, o que foi, para além da emocionante experiência de visita da Fundação José Saramago, redesenhando a sua figura dentro de mim e acrescentando mais substância aos lidos e admirados Ensaio sobre a Cegueira (1995), O Conto da Ilha Desconhecida (1997) e Os Poemas Possíveis (1997).
Descubro satisfeita que, qual o poeta e cantor Chico Buarque, Saramago também dedicou um significativo espaço à construção de personagens femininas e dizia: « (As mulheres) valem mais do que nós, homens (…) Eu penso que elas têm mais autenticidade e mais generosidade do que nós. » Blimunda é na sua obra, por exemplo, uma personagem hors-concours. Carismática, alçou voo próprio. Tinha o dom de ver dentro dos outros, ao que se assemelha o esforço ético e estético dos escritores: « Nós, os escritores, temos essa pretensão de podermos ser capazes de mergulhar, digamos, nas sombras interiores ». A escrita é assim, sem dúvida alguma, uma arte no feminino, não importa se feita por mãos e mentes masculinas. Saramago, porém, é categórico: « A força da Blimunda não está aí. Está naquilo que ela é como pessoa ». Mesmo sem nome, podemos dizer o mesmo da « mulher do médico », em seu Ensaio sobre a Cegueira, uma personagem grandiosa.
O seu livro favorito era O Ano da morte de Ricardo Reis (1982), livro duplamente emblemático, por ser uma homenagem a um dos heterônimos de Fernando Pessoa e à poesia. Mesmo se o meu heterônimo preferido é Álvaro de Campos, Ricardo Reis assina, de fato, poemas maiores do mestre do desassossego.
Um escritor iluminado: Saramago e a crítica
Uma série de críticos - portugueses, brasileiros e de renome internacional - desfila neste número da revista Ler, procedendo a uma reverência à memória de Saramago. Nela lemos:
- « Saramago tornou-se um homem iluminado ao mudar-se para as Canárias ».
- « (…) tanto escrevia comédias deliciosas como romances tenebrosos e melancólicos (…) Lembro-me de poucos livros do século XX (referindo-se à História do Cerco de Lisboa, de 1989) e mesmo do início do século XXI que trataram a paixão de forma tão charmosa » [Harold Bloom, em entrevista concedida a Ubiratan Brasil em 2003].
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- « José Saramago pertence à linhagem, mais rara do que se julga, dos que escrevem depois de ter vivido ».
- « No horizonte da sua ficção, há essa íntima convicção de uma verdade de rosto exclusivamente humano que lhe serviu para invocar, por contraste, a inumanidade ofuscante que caracteriza o tempo da cegueira que nous coube. E lhe coube. Salvou-o (…) do dogmatismo um miraculoso dom de ironia e uma mais inexplicável candura, ou simplicidade diante da vida… ». [Eduardo Lourenço]
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- « Saramago usou como muito poucos na nossa língua a sua plasticidade. (…) Escrever sem pontuação não é um mero exercício retórico, mas um exercício de liberdade. Não de libertação da língua (…), é um exercício de libertação da mente, um exercício de ver de novo, de ver diferente, um exercício de não cegar para a sua própria língua ». [Paulo José Miranda]
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- « José me revelava mundos inteiros, cosmogonias… » [Adriana Lisboa]
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- “Com Saramago, aprendi a dizer ‘não’. (…) ‘Não’, dizia o Nobel, era a palavra mais importante que se podia dizer, eu concordo ». [João Tordo]
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Gonçalo Tavares, o jovem e talentoso escritor português, rendeu-lhe uma homenagem trepidante, inspirada em Sloterdijk, chamando atenção para o potencial de bruta aprendizagem a que éramos todos submetidos ao lê-lo. Qual o filósofo alemão, Saramago valia-se, em muitos de seus livros, de uma « pedagogia da catástrofe », aquela em que o leitor se dá conta de que está no meio do fim do mundo, por isso pensa em fugir, mas ao mesmo tempo é instado a se aproximar. Diz Tavares:
- “só assim, poderás aprender. (…) Trata-se de aprender pelo acontecimento brutal e imprevisível. (…) quando as coisas tremem e (…) não tem outra forma de ensinar a não ser assustar-nos ». Energias didáticas e transformadoras liberam-se supostamente das tragédias, estabelecendo « conexões imperativas entre a desgraça e o entendimento ». Tavares insiste ainda: « nos livros de Saramago, o apocalipse não é o fim, mas o primeiro dia ».
Talvez por isso, o autor de As intermitências da morte (2005) tenha escolhido morar numa ilha vulcânica, mas ali ele não vivenciou nenhuma tragédia, apesar da paisagem cinza de pedras. Em Lanzarote, ele viveu, sim, o apogeu do amor.
O amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida
José & Pilar (2010), para quem não sabe, é um filme-documentário de Miguel Gonçalves Mendes, sobre o escritor e sua mulher, a jornalista Pilar del Rio. Todos os que o conheceram antes e depois do casamento com Pilar confirmam unanimemente o amor de Saramago pela companheira espanhola. Ele teria se tornado « iluminado », como disse Harold Bloom a esse respeito, depois da entrada dela e do amor na sua vida. Saramago foi casado antes por duas vezes, mas Pilar foi, ao que parece, o seu grande amor. Foi ela, inclusive, que o ajudou a conceber a Fundação José Saramago e ficou ao seu lado até o fim.
« De bajo » vieste, ao barro voltará…
Não bastasse tudo isso - pois ficara muito comovida com o seu percurso intelectual -, saímos da Fundação e fomos ver a oliveira – árvore que é símbolo de Portugal e queira ou não queira o ateu que também era Saramago, uma árvore com um histórico sagrado ligado ao velho mundo cristão -, plantada em frente à Casa dos Bicos. Ali encontram-se depositadas as suas cinzas. Fiquei um pouco chocada por não haver nada protegendo a oliveira, a apenas dois passos do grande calçadão de pedras portuguesas, onde lemos no chão uma placa, a título de lápide, com seu nome inscrito, mais data de nascimento e morte.
Meu silêncio e minha emoção aumentaram diante de tanto desprendimento e desapego. Toda aquela vida lá dentro contada, deixando entrever a suavidade, simplicidade e paciência com que se fez o escritor sério, combativo, apaixonado e internacionalmente reconhecido, a contrastar com o despojamento, a falta de qualquer pompa e o tamanho ainda tímido e hesitante da desprotegida oliveira.
Ao testemunhar esse fato para muitos dos seus leitores e meus blog-leitores, os quais, um dia, em breve ou no futuro, irão até à Fundação José Saramago, podendo constatar o que ora descrevo, fui assaltada pelo desejo de escrever um pequeno poema em sua homenagem:
Saramago. Sargaços na calçada de um mar amargo. Quem semeou teu âmago tão raro, caro mago? Homem que nos fez imaginar agonias, searas e desertos da alma humana. Prosa e poesia feitas para arder de mágoa eterna ou de amor, selar pazes e sarar no infinito, nesse longo caminho de utopias feridas, marasmos e esperas felizes, que é a vida. Ao pé da oliveira, jaz.
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Mione Sales - é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e tem mestrado em Literatura Comparada (Paris 3 Sorbonne). Revisora e tradutora, faz jornalismo cultural no Blog Mídia e Questão Social. Além disso, ensina a língua de Camões aos patrícios de Voltaire. Contato: mionesales@gmail.com
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Mi, linda a sua crônica! Uma bela homenagem a Saramago, feita com tamanha sensibilidade e poesia, além de nos premiar com mais desvendamento da essência de um homem que se eternizou através das palavras. Parabéns!!
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