quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Editoria Jornalismo na Correnteza

A farsa da confissão de Boni
ou as controvérsias acerca da manipulação jornalística


Ana Lucia Vaz*




Tirar a cabeça de dentro da correnteza significa a possibilidade de respirar com alguma liberdade. Já faz alguns anos, quase não leio mais jornais e revistas jornalísticas, nem ouço ou assisto telejornais. É claro que a gente não fica fora da correnteza. Tem TV espalhada por todos os cantos da cidade. Rádios ligadas, jornais pendurados nas bancas. Isso sem contar os amigos, parentes, vizinhos, a comentar os assuntos que acreditam que eu já conheço. E, mais avassalador: os correios eletrônicos dos colegas da contra-informação.

Acredito que esta pequena liberdade me faz perceber coisas novas no mundo de sempre. Também acho que estou um pouco menos neurotizada pela violência e indignada pela canalhice. Mas toda liberdade tem preço! Poucas vezes é preciso conhecer a notícia para compreender o enredo do comentário que me chega. As notícias mudam quase tão pouco quanto os enredos de novela. Mas, de vez em quando, sou assaltada por um debate que me coloca num lugar de estranhamente desconfortável. 

Foi o que se passou quando choveram mensagens em minha caixa de correio com o link para o trecho da entrevista[i] em que Boni, diretor da Rede Globo em 1989, “assume a manipulação” do debate entre Lula e Collor no segundo turno das eleições daquele ano.

Assisti ao trecho da entrevista e não entendi a empolgação de meus colegas da contra-informação. Boni diz que foi procurado pela assessoria do Collor e concordou em fazer alguns pequenos retoques de imagem para tornar o debate, segundo ele, mais equilibrado. Glicerina para simular suor e outras bobagens cenográficas. Se a distorção daquele debate tivesse se limitado a isso, eu não teria percebido.




A entrevista foi ao ar no dossiê Globo News. Ou seja, pela própria emissora “acusada” de manipulação. Tem algo estranho aí, né? Enquanto coçava a cabeça, em busca de algum piolho perdido, desconfiada com o que pareciam fogos de artifício, outras mensagens caíram na minha caixa. 

Desta vez, uma tentativa de explicação dos bastidores políticos da troca de âncora no Jornal Nacional. Dois bons artigos que podem ser lidos juntos no blog do Renato Rovai[ii]. A tal entrevista de Boni é mencionada no artigo de Rodrigo Vianna como parte de uma estratégia de mudança na linha editorial do jornalismo da Globo. Mudança esta que incluiria desde acordos com a presidente Dilma, até a troca da ancoragem do Jornal Nacional. Isso faz sentido! Inclusive porque, em minha cotidiana leitura das manchetes nas bancas de jornal, ando sentindo falta das bordoadas do O Globo na Presidência da República.

Se as análises de Rodrigo Vianna e Marco Aurélio Mello estão certas ou não, quem sou eu para avaliar? Como ex-jornalistas da Globo, com certeza conhecem aquilo melhor que eu. Mas também estão mais envolvidos, mais imersos na correnteza.


 Os ex-jornalistas da Globo Rodrigo Vianna,  do Blog  Escrivinhador   e  Marco Aurélio Mellodo Blog Doladodela

No mesmo dia em que Rovai publicou os artigos aqui citados (1/12), Reinaldo Azevedo, comentarista da Veja, publicou um pequeno comentário em seu blog, ao pior estilo da revista. Apoia-se no senso comum para desfazer dos autores dos artigos, sem se dar ao trabalho de discutir o conteúdo[iii]. Quer dizer, muitos indícios de que tem azeitona na empada! No mínimo, a velha estratégia da Rede Globo, de recontar a história do seu jeito. 

Então fui cutucar mais a internet. Encontrei uma entrevista com Boni, no Roda Viva, desta vez na TV Brasil[iv]. Os entrevistadores chegam mais perto da verdadeira falsificação do debate entre Collor e Lula: a edição dos trechos, em função dos interesses do editor. Mas, nem mesmo nesse, o assunto aprofunda. A história de Boni chega a ser engraçada: “O debate foi três a dois”, a favor do Collor, diz ele. Então, na edição do Jornal Hoje, os “esquerdistas de plantão” teriam editado a favor do Lula, transformando em zero a zero. Aí, o Doutor Marinho reclamou e os “puxa-sacos de plantão” teriam editado dando três a zero para o Collor. 

Como assim? Alguém sabe explicar como é que a gente contabiliza os pontos num debate político? Quem é o observador imparcial que dá legitimidade à numerologia de Boni?


O mito da imparcialidade jornalística e o fantasma da manipulação


Tentando sobreviver na correnteza


Passo um semestre inteiro repetindo para os meus alunos de jornalismo alguns mantras. O primeiro é que a imparcialidade jornalística – que eles já sabem que não é possível – também não é, sequer, a meta de nenhum jornalismo.

A imparcialidade jornalística, que seria este distanciamento entre a narrativa jornalística e as paixões humanas - não é um método de aproximação da realidade, mas um discurso ideológico, no sentido mais restrito que se dá à palavra ideologia: engano, falsificação. 

O jornalista utiliza diversos recursos cuja função é a de simular a imparcialidade. No texto escrito, esses recursos vão desde o cuidado para evitar os adjetivos, até o uso do título no presente, para dar, ao leitor, a sensação de presenciar o acontecimento, disfarçando o efeito de narrativa. No texto televisivo, este distanciamento depende de enquadramentos, sequências de imagens e, por fim, da performance dos apresentadores. 

O conhecimento científico, que nasceu e cresceu sustentado na crença positivista, já superou esta ideologia. Onde foi realmente aplicado, o método científico provou a impossibilidade de separação entre sujeito e objeto. Se não existe essa separação, nenhum sujeito pode se pretender porta-voz da realidade. Na melhor das hipóteses, podemos ser verdadeiros, ao falar de nossa experiência. 

Mas, quem está realmente pronto a escrever ou falar para o público despindo-se deste poder simulado? Um dos maiores aprendizados do ofício de professora, para mim, foi perceber a distância entre o que pretendemos dizer e o que nosso receptor ouve. O segundo foi entender que, por consequência, minha pretensão de “manipular”, no sentido de induzir o olhar do público numa direção desejada, utilizando artifícios narrativos, era bobagem. E, ao mesmo tempo, um vício impossível de evitar por completo. 

Por isso, a palavra manipulação não faz sentido. A edição de qualquer debate, de qualquer matéria, seja num telejornal ou num veículo impresso, é obra de seres humanos. Portanto, manufaturado. Acusamos o adversário de manipulação porque alimentamos, em nosso íntimo, o desejo de fazer crer que nossa versão é a Verdade, sem “manipulação”. Mas não é, porque não pode ser. Porque somos apenas seres humanos, imersos na imensa correnteza de nossas crenças tacanhas, capazes de enxergar apenas uma pequena, ínfima parte da realidade, distorcida por nosso olhar míope.

Batalhas narrativas : maniqueísmo e a manipulação
ou o risco de assumir a nossa miopia




Para não terminar o texto desse jeito depressivo, me arrisco a ensaiar caminhos de redenção (porque, afinal, também nado nesta correnteza da luta do bem contra o mal). A consciência de minha miopia não reduziu minhas esperanças nem o tesão de encarar a correnteza de cabeça erguida. Pelo contrário, quanto mais percebo minha miopia e minha incapacidade de “fazer a cabeça de alguém”, mais maravilhoso e cheio de possibilidades me parece o mundo. Mais livre me sinto para ver e para dizer. No meu caso, ao menos, creio que o maniqueísmo é um dos grandes defeitos que reduzem minha visão.




A falta de manchetes do Jornal O Globo contra Dilma, por exemplo, me fazem desconfiar do governo. Me sentia mais confiante quando O Globo descia o malho no Lula. Acho que é uma limitação de nossa cultura, uma correnteza bem forte, esta de querer ver o mundo dividido em bem e mal e forçar todas as palavras para tentar provar a nós mesmos que estamos do lado do bem. Mas, talvez, seja um mal que assola principalmente os jornalistas. Imersos que estamos neste campo de batalha narrativa onde as regras mesmo do embate forçam no sentido da redução da realidade a dois polos antagônicos.




Enfim, tenho poucas certezas sobre nossas limitações e menos ainda sobre como superá-las. Mas uma forte convicção de que o maniqueísmo é aliado inseparável da manipulação. A entrevista do Boni, seja lá de que decisões políticas tenha nascido, é apenas expressão do velho cacoete global de tentar « fazer nossas cabeças » recontando a história. E acreditar que esta entrevista faz justiça à história é afogar-se na correnteza global.

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*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.

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DICAS

[i] Boni no programa Dossiê da Globo News (26/11/2011)
http://www.youtube.com/watch?v=VrpurEkmJkU 
 



2 comentários:

  1. Nalu querida,

    Li com prazer o seu artigo, o primeiro do blog de 2012. Gostei do tom: franco, direto e você sustenta bem o debate da comunicação.

    Para ser franca, nem tive vontade de ver a entrevista do Boni... Soou-me de mau gosto, demodê, espécie de "confissão tardia" do mau caratismo institucional de Globo. Algo como quem torturou vir a público cinicamente dizer: "torturei, sim..." e pensar que pode ficar impune. No caso do Boni, não há como voltar atrás no tempo e na história... Não há reparação possível... e aliás, quem precisa? Eles ficaram ao lado de um presidente que sofreu um impeachment... Os "derrotados" e enganados conseguiram anos depois eleger o Lula que fez dois mandatos, que, não obstante as inevitáveis controvérsias, foram dois grandes mandatos... O Brasil tornou-se a 6a potência econômica enquanto a Globo ameaça de ir para o ralo... A história me parece encarrega-se de fazer o seu trabalho de justiça...

    De todo modo, o seu artigo é muito pertinente!!!

    Grande abraço,

    Mione Sales*
    (Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta do Blog M&QS)

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  2. Ótimo artigo!!! E questionável comentário posterior ao mesmo...

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