sábado, 22 de janeiro de 2011

ESPECIAL: CHUVAS E QUESTÃO SOCIAL - EDIÇÃO 2011

Água de pupila
sobre chuvas, tragédia e descaso público na Região Serrana/RJ





Mione Sales*

"Grossas gotas de chuva caem
do céu sobre a terra.
Cor de cinza, solidão.”

M. J. DUPRÉ


Tão perto do carnaval e à simples lembrança da música « As águas vão rolar», ninguém pensa em samba nem em suor e tampouco em cerveja. Pelo segundo ano consecutivo, o verão traz mais chuva que sol e alguns desastres ecológicos e humanos. Paisagens amadas devastadas, pessoas conhecidas e anônimas desaparecidas, submersas num mar de lama. Árvores tombadas e arrastadas pela força das águas. Nem chegou março e as águas sequer fecharam o caminho, mas foi « pau e pedra ».  

Houve um tempo em que essas chuvaradas cariocas tinham até um « quê » de engraçado. Em 1993, se bem me lembro, no mês de março chovia pra valer toda sexta-feira. Uma delas foi o dia do meu aniversário. Sou pisciana, signo de água, mas São Pedro não precisava ter exagerado! Deu-me de presente, na época, uma festa ilhada no segundo andar da antiga Tratoria do Castrinho, no Largo do Machado. Mesmo se pode causar forte impressão um restaurante com as mesas boiando no dia da comemoração do aniversário de alguém, nada se compara à enxurrada que varreu agora a serra fluminense.

 
Sinto-me meio entre a cruz e a espada, porque todo nordestino que se preza adora chuva. É verdade que Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), músico maranhense, compôs a belíssima « Súplica Cearense »:

«Senhor, eu pedi pra chover, mas chover de mansinho, pra ver se nascia uma planta no chão. O senhor me perdoe se eu não pedi direito. »

De um jeito ou de outro, estou começando a ter medo de pensar nas águas, pois elas têm sido inclementes. Não se pode esquecer os governos, claro, e suas inoperâncias de toda ordem! Porém nem quero insistir sobre isso, porque já há muita gente escrevendo a respeito e pouca é minha paciência com promessas não cumpridas.

Pensemos, então, com o apoio da mitologia, mais como uma forma de tentar homenagear os que partiram. Imaginemos que, na Antiguidade, os deuses do Olimpo costumavam arrumar os seus salões, sendo o nosso mundo considerado apenas um pequeno jardim no meio das suas intenções. A Terra, portanto, podia por vezes ser mero objeto dos excessos e caprichos divinos. O que para nós seria um cataclisma, para eles era mera brincadeira e treinamento. Quando eu era criança, cada vez que ouvíamos ao longe barulhos imensos de trovões se preparando no céu, minha mãe apelava com humor e também para espantar o medo a uma metáfora semelhante, referindo-se, no caso, à « arrumação da casa de S. Pedro ».

Entre uma reportagem e outra, li no UOL outro dia que um padre falara em « vingança »: da natureza ou de Deus? Em geral, essa noção remete a castigo e culpa, no entanto se isentarmos os deuses, deixando-os como assunto da mitologia, e pensarmos apenas na natureza, havemos de concordar que ela tem seus revezes e arroubos. Relembremos que, antes de nós, humanos, tudo isso era, foi, é e esperemos que continue sendo natureza. Soubemos construir o nosso espaço no seu seio, mas por vezes ela se rebela, sentindo-se talvez por demais amordaçada, amarrada, sobrecarregada e poluída. Dá o que refletir!

Há mais de dois mil anos, quando éramos politeístas, ou seja, acreditávamos na existência de muitos deuses, nasceu também o teatro e alguns de seus gêneros: a comédia e a tragédia. Os atos risíveis multiplicam-se no cotidiano, bem sabemos. Qualquer coisa pode ser objeto de galhofa ou piada, bastando um gênio espirituoso para percebê-los por esse ângulo.

Mas as tragédias devem, por certo, ter se inspirado originalmente na força e crueldade inexplicável da natureza. Aquilo que aparentemente não tem remédio. Vingança? Certamente que não; apenas um espasmo de vida natural, em grande escala. Nessas horas, é que damo-nos conta do nosso tamanho frente ao universo! Do ponto de vista do cosmos, somos apenas uma poeira infinita de indivíduos. Talvez por isso mesmo, o tema das catástrofes, qual a do vulcão Vesúvio em Pompeia, até hoje seduz homens e mulheres. Sentimo-nos fascinados por essa misteriosa força que, além de impor uma ruptura do cotidiano, por vezes nos esmaga, ao mesmo tempo em que mobiliza o nosso sentimento humano-genérico da compaixão [Compadecer-se. Compatir (fr): compartilhar o sentimento. Colocar-se no lugar do outro. Cume da relação de alteridade provocada pelo sofrimento de outrem, logo produtora de uma maior consciência da noção de humanidade]. O Tsunami e a passagem do furacão Katrina em Nova Orleans, nos Estados Unidos, por exemplo, calam ainda fundo nos nossos pesadelos.

A tragédia transfere-se também para a vida privada ou pública, e semeia intrigas palacianas desde os clássicos gregos e romanos, passando por Shakespeare e tantos outros que exploraram esse veio de histórias, cujo final não é feliz.

Na vida real, intrigas e disputas locais também estão no epicentro desta tormenta que dilacera trajetórias [cabe aqui lembrar de uma categoria dos estudos epidemiológicos de violência : « anos potenciais de vida perdidos », categoria que é a um só tempo poética e filosófica, pois é impossível não se pôr a pensar sobre o significado dessa dimensão de perda geográfica e humana]. Tão risíveis os nossos pobres e podres poderes! Tão mais próximos da comédia muitos de nossos políticos e governantes, o que revela uma forma de fazer política indiferente e nada criativa, e tampouco éticamente responsável de lidar com complexas problemáticas urbanas, aguçadas por misérias e mais um sem número de fragilidades sociais. Esse tipo de política ineficiente faz pensar no verdadeiro rosto por detrás do Retrato de Dorian Gray – carcomido, envelhecido, apodrecido, em decorrência de uma sucessão de atos egoístas e vãos -, bem longe da dignidade e da aspiração à vida que ecoam dos risos do público em teatros e cinemas, ou simplesmente em frente à TV.

« A vida é real e de viés », como já dizia o poeta. A tragédia é infinitamente triste, mas é dotada de grandeza moral. Sobrevoam certamente agora os mais de quinhentos mortos rios, montanhas e florestas fluminenses afora - emancipados e superiores a todos aqueles a quem as « raspas e restos » interessam: os roedores da coisa pública.

O problema é que as nossas capacidades críticas e públicas governamentais não se antecipam a eventos dessa ordem, não imaginam, nem preveem e, consequentemente, falham, na medida em que não protegem. Se o Brasil entrou na rota dos cataclismas naturais, é preciso integrar essa dimensão à esfera de preocupações das pesquisas, políticas públicas e às ações educativas da população. Prevenção é proteção, sobretudo dos segmentos mais pauperizados.

Assim, o aperto no coração provocado por esse gravíssimo episódio fluminense, como se pode ver, não pode ser apenas mensurado pelos cálculos habituais de distância, mas pela pura emoção que me alcança até aqui na França, onde estou - longe e resguardada de coberturas televisivas ou radiofônicas invasivas e melodramáticas. Como canta um outro cearense, Ednardo, « essa dor que eu sinto agora é uma dor que não tem nome».

Estava nesse estado de melancolia e misto de oração ecumênica pelas vítimas, quando ouvi uma bela música que não conhecia e que falava de destino e outras palavras que tentam explicar muitas vezes o inexplicável ou, no caso, o injustificável. Qual não foi minha surpresa, a música se chamava “Água de Pupila », como a adivinhar os meus olhos marejados. Ela era a inspiração que me faltava para homenagear todos os que foram banhados para sempre por aquelas águas.

 
Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora do Depto de Políticas Sociais (FSS/Uerj). Contato: mioneecia@hotmail.com

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Importante
Reiteramos o convite para que nossos blog-leitores, sobretudo os profissionais de Serviço Social, leiam as ponderações e o apelo feito pelo Conselho Regional de Assistentes Sociais da 7a. Região /RJ sobre essa tragédia na Serra.


http://cressrj.org.br/download/arquivos/CRESSOpina11.doc

Para ouvir

http://www.youtube.com/watch?v=Zj_20Fo1Pbc

(« Água de pupila » de Zezo Ribeiro)

http://www.youtube.com/watch?v=ni4MKExLo1A&feature=related  

(« Súplica Cearense », com Fagner)

http://www.youtube.com/watch?v=ucuDPcSZw1g
(« Flora », do cantor e compositor cearense Ednardo)


Para ler
 
WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Várias edições

DUPRE, Maria José. Éramos Seis. SP, Editora Ática.

http://naucapitania.wordpress.com/
[ver matéria do dia 12/O1]

2 comentários:

  1. Gostaria de comentar sobre essa mobilização para apoio dos afetados pelas chuvas na região serrana chamando a atenção para o erro que se comete quando se direciona preocupação social apenas quando ocorrem tragédias de grandes escalas.
    De maneira nenhuma quero tirar o credito das boas ações para com os amados que sofreram naquela área, mas todos os dias pessoas vivem mortas e estão mortas em vida mendigando o pão e morrendo de frio e fome nas ruas desse Brasil a fora.
    Conheço de ONG’s e movimentos de apoio a estes e sei que o descaso não é total (e quero, inclusive, parabenizar o trabalho do assistente social também a esse grupo de marginalizados), mas a tragédia e vergonha que é aquilo que acontece na sociedade com a casta menos favorecida merecia gerar movimentos tão grandiosos quanto os que foram gerados pela tragédia da região serrana.
    Na empresa onde trabalho, a movimentação para apoio ao povo da serra foi grande. Tanto que na recepção, de longe, se vê caixas e caixas de donativos.
    Garanto que esse movimento poderia ser continuado e estendido às vitimas do descaso.
    Na praça próxima a minha casa mora uma senhora em que as pessoas já estão tão acostumadas com a presença dela naquele lugar que já nem lembram que ela existe.
    A rua daquela praça, por vezes, enche com a chuva em alguns pontos.
    Alguém vai lembrar daquela senhora quando ela tiver que mudar sua cama de lugar quando chover?
    A mesma chuva que caiu na serra caiu lá na praça.

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  2. Olá, Gláucio, em primeiro lugar, obrigada pelo seu comentário! Segundo, você fez observações muito pertinentes com as quais eu concordo e penso que os meus colegas de blog também. Ontem mesmo tomei contato com uma citação atribuída ao marxista italiano Antonio Gramsci que responde bem às suas indagações e que representa um pouco da forma de ver e agir dos assistentes sociais Brasil afora. Diz assim:

    "Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Indiferença é apatia, parasitismo, covardia. Não é vida. Por isso, abomino os indiferentes. Desprezo os indiferentes, também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Vivo, sou militante. Por isso, detesto quem não toma partido. Odeio os indiferentes"

    São muitas entidades e ONGs da sociedade civil trabalhando no combate à pobreza e também na expressão de solidariedades as mais diversas, no entanto este é um trabalho de longa duração, profundo e que exige um projeto também de nação. Penso que o governo passado dedicou-se a diminuir o vão que separa os menos favorecidos das demais camadas abastadas da sociedade. Esperemos que o governo atual dê continuidade e mesmo aprofunde tais ações.

    Quanto à velha senhora da praça, nem a conheço, mas sinto-me tocada pela sua situação. Aqui na França, em Paris, idosos, mulheres e imigrantes se multiplicam a pedir esmolas pelas ruas, nos metrôs… Tempos duros estes de neoliberalismo!

    Para finalizar, muito poética e bela a sua forma de denunciar:

    « Alguém vai lembrar daquela senhora quando ela tiver que mudar sua cama de lugar quando chover? / A mesma chuva que caiu na serra caiu lá na praça ».

    Um grande abraço militante, solidário e também indignado,

    Mione Sales*
    (Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta)

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