EPPUR SE MUOVE – uma crônica política do meio do mundo
- Sobre sujeitos politicos coletivos e resistência ao capitalismo no Brasil -
Mione Sales*
“No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio”.
Prazo de Vida, Cecília Meireles
Outro dia li uma bela e bem humorada entrevista do poeta Mário Quintana em que ele comentava haver lido um livro ou poema de Cecília Meireles intitulado « Canção do Meio do Mundo ». Penso que a memória talvez tenha pregado uma peça no nosso querido poeta gaúcho. Fiz minhas incursões virtuais e não encontrei essa referência, mas encontrei alguns poemas da poeta carioca que se aproximam do tema.
Mesmo assim, inspirei-me na poesia de Cecília para falar um pouco do que vi e vivi nos debates que acompanhei em Brasília, por ocasião do XIII Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais. Meu companheiro de blog, Jefferson Ruiz, deu um « plá » sobre tudo o que foi discutido por lá a respeito da comunicação. Para não repetir, vou escrever sobre uma mesa que brilhou não no começo nem no final, mas no justamente no « meio » do Congresso.
Tratou-se da mesa “Sujeitos políticos coletivos na sociedade brasileira : resistência ao capitalismo». Ela contou com a fala de representantes dos movimentos sociais de mulheres, formação política e sindical, dos sem-teto e da professora da UFF, Virgínia Fontes. Vou dar ênfase a uma das que me chamou mais atenção, a bela e singular fala do « meio », a de Helena Silvestre do MTsT-SP.
De punhos cerrados no Cerrado
« O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
parece música urbana ».
Legião Urbana
« Lutas sociais e exercício profissional no contexto da crise do capital: mediações e consolidação do projeto ético-político profissional » foi o tema do XIII CBAS. De tudo o que assisti, penso que a primeira mesa do domingo sobre os sujeitos políticos coletivos foi a que operou uma síntese de algumas das maiores expectativas e utopias dos mais de dois mil assistentes sociais inscritos. Essa mesa reuniu a academia e os movimentos sociais. Como os professores e intelectuais costumam ter acesso à palavra escrita e falada com mais facilidade, vou dar espaço a uma das intervenções que me tocou pessoalmente e que rima com o que a Editoria Volta do Mundo vem sempre se posicionando a favor: a criatividade e a irreverência que vêm de baixo para cima e que contestam os velhos nichos de poder.
Para começar, a « fala » de Helena S. exprime uma visão de mundo crítica, com o tempero de quem faz política e milita com os pés no chão; uma fala marcada pela sensibilidade e sabedoria de articular os elementos teóricos com a versatilidade da interpretação popular. Guiada por um verbo livre, Helena deu uma aula para a categoria dos assistentes sociais, que viam naquela « intelectual orgânica», conforme a terminologia gramsciana, a expressão viva de muito do que aprendemos em sala de aula, defendemos no nosso código de ética e pelo que lutamos nas nossas entidades. Com as suas próprias palavras: « A gente pode não saber escrever, mas sabe entender a lógica das coisas ».
Helena Silvestre é uma jovem militante paulista, que à sua maneira explicitou fundamentos marxianos, ao discorrer sobre a luta dos sem-teto : «São as condições materiais que vão determinar a forma de ver a vida ». Queria se referir às dificuldades muitas vezes dos nossos usuários irem além do senso comum, o que todavia tem dois gumes, pois essas mesmas condições materiais que oprimem e alienam permitem, ao serem sentidas na pele, que se ultrapasse pela revolta, engajamento e consciência adquirida na luta as leituras dominantes sobre a realidade.
Silvestre convidou a que os profissionais prestem atenção no presente, sem perder, contudo, a perspectiva histórica. O presente é ponto de partida das análises críticas, como recomendava o bom e velho Karl Marx, mas não pode se confundir com o que alguns criticaram no CBAS como « presentismo ». Sempre receio interpretações errôneas da parte de alguns que assistiram ao congresso e que podem recusar doravante a ater-se ao presente para não incorrer em « pós-modernismos ». Gente, como diria, Helena Silvestre, análises de conjuntura se fazem com base fundamentalmente na decifração do presente, sem, evidentemente, perder os nexos com a história e o que queremos em termos de futuro. Não confundamos, por favor, as coisas!
Infelizmente, como ela bem lembra, para muitos que integram as classes trabalhadoras e dependem do salário para sobreviver, o futuro se resume apenas à data do dia do pagamento. O horizonte de uma maioria é encurtado pelo tamanho das suas necessidades de sobrevivência, o que, em artigo anterior, nomeamos, apoiada em Agnes Heller, como « necessidades básicas ou necessidades necessárias ».
A gente se integra brigando
« Toda favela tem um pouco de senzala!
Todo camburão lembra um navio negreiro!
Toda ocupação tem um quê de quilombo! »
Serginho Poeta
Serginho Poeta
Eis uma afirmação dialética! Os movimentos sociais lutam e dialogam, por vezes, ásperamente com o Estado, que responde alternativamente com repressão ou assistência. Helena citou, inclusive, o mal-estar que consiste em lidar com as novas modalidades de contratação por empreitada dos profissionais de Serviço Social para fins apenas de remoção de invasões e acampamentos. A interlocução que se estabeleceu entre as organizações da categoria e o Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto, no entanto, já permitiu que, em algumas ocasiões, assistentes sociais se recusassem a cumprir mandatos judiciais de expulsão. Isto tem um preço, é claro, mas segundo ela foi emocionante que esses profissionais rejeitassem o papel de « cães de guarda » da propriedade privada. Disse: « Quando as assistentes sociais contratadas pelo governo ficaram do nosso lado, nós ficamos menos sozinhos ». Ela entende os limites e contradições do nosso papel profissional, mas reivindica e propõe aos profissionais de Serviço Social - resumindo em poucas palavras o conteúdo de muitas disciplinas do currículo - « fazer o máximo dentro do que é possível ».
Conquistar políticas de assentamento é uma forma de integração, mas os militantes fazem-no procurando guardar a independência. É a isso que ela chama de « briga », de não se curvar ao poder do Estado, após conquistas efetivadas pelo movimento. Ela tem razão, porque sempre há o risco da cooptação.
Os militantes do MTsT identificam, tal como o Movimento dos Sem-Terra, hoje no território e no cenário mais amplo da cidade, um pólo estratégico de mobilização de várias formas de lutas e sujeitos políticos. Isto porque é no território que se dá o processo de reprodução das relações sociais, sendo a moradia uma das necessidades fundamentais de sobrevivência e sociabilidade dos indivíduos. É a moradia justamente que protege do frio de moer os ossos, de que fala a poeta e ao qual se expõem os que vivem nas ruas. Helena nos relembra uma velha lição: « Não há condições ideiais para fazer a resistência e a militância. O momento é o da necessidade, da urgência… »
Sair do script
Acampamento João Cândido, região Sudoeste de São Paulo
Helena Silvestre, com uma fala que vem « de bajo », logo cheia da sensibilidade dos que sofrem na pele o peso da exploração, diz que é preciso saber se impor frente à força do capital, pois há limites físicos e psíquicos para a sobrevivência dos trabalhadores expostos a toda uma série de mazelas sociais. Diz, com realismo, mas sem qualquer lamúria : « Colecionamos problemas… ».
Para ir contra a estrutura fundiária e o grande capital imobiliário urbano, é preciso reaprender a desobediência, pois a luta pela emancipação alimenta-se da resistência e da indignação. É preciso inventar novas formas de resistir e avançar. « Quem sabe, voltarmos a ser um pouco moleques e crianças, que não têm medo de atirar pedras nas vidraças? », propõe. De todo modo, é necessário sair do script.
Como vamos subverter? Como vamos sair do script? Ao pensar no espaço e possibilidades do território, ela sugere refletirmos sobre o conjunto de potências e capacidades que esse campo social e político pode nos abrir enquanto profissionais e militantes. Segundo ela, os movimentos sociais, comprimidos pela necessidades de sobrevivência dos sujeitos que os integram, devem mobilizar estratégias que implicam inevitavelmente em desobedecer e subverter o estabelecido.
Desconfiar do consenso
Em se tratando de políticas públicas, a experiência militante a ensinou que « quando ninguém mete o pau, é porque tem algum problema ». Normalmente, quando a mídia não critica o governo, é porque tem muita gente contente e lucrando com certas medidas, alerta.
Discutimos sobre a « tentação do consenso » em artigo nosso publicado no livro Família, Políticas Pública e Juventude (Cortez editor, 2004). Helena Silvestre vai ao encontro do que ali sinalizávamos, pois há uma tendência cristã, talvez, que nos leva muitas vezes a temermos o dissenso e o conflito. Jacques Rancière nos ensina, porém, que é próprio da política e da democracia nutrirem-se justamente do litígio, do que « falta », daquilo que não foi acordado.
Isso não é algo simples. É um aprendizado, que, por vezes, tem o tempero doído das derrotas, como no caso dos despejos, o de ver os « barracos despedaçados ». Esse duro aprendizado deixa um gosto amargo na boca, mas é algo também que contraditoriamente serve de combustível para a luta. Para enfrentar esse tipo de situação e persistir, recomenda : « É necessário romper com as amarras que estão dentro de nós ».
Helena Silvestre relembra que é importante ousar nas parcerias, pois, segundo ela, não existe luta no serviço público sem aliança com os usuários e suas organizações de base. Como relato de possibilidades de lutas no âmbito do território, ela cita a ocupação de um posto de saúde. Reivindicar apenas a sua melhoria não resolveu, então o movimento o ocupou, o que naturalmente chamou a atenção das autoridades públicas. Esse é um jeito de dizer que a população dos bairros e periferias não está conformada nem resignada com as migalhas públicas que estão ao seu dispor.
Precarizados e fora da condição humana
« Murdered » - Chow Hon Lam
« (…) me diga se devo ir-me embora,
para que outro mundo e em que embarcação! »
Tentativa, Cecília Meireles
Dentro do eixo do nosso blog, Helena cita, como tantos outros profissionais com os quais dialoguei nessa minha curta estadia no Brasil, o horror em que consistem os programas policiais na TV aberta do estilo Datena. Segundo ela, “é bom ver o que todo mundo está vendo”, para poder compreender e criticar. É de se imaginar o show de atrocidades ali veiculadas: as câmeras, por exemplo, mostraram no dia em que ela assistiu à programação um jovem negro sendo executado com um tiro na cabeça, por ter assaltado uma farmácia. Diz: “esse jovem já nasceu com uma sentença marcada, pois é filho da classe trabalhadora”. Os jovens das periferias e favelas brasileiras são, dessa forma, seres precarizados e expulsos da condição humana.
É preciso que lutemos todos, segundo ela, contra esse « projeto de extinção dos pobres ». Cabe, sem perder jamais a generosidade, lutar pelo impossível. Ao que propomos aqui, após insight que tivemos em palestra sobre « Mídia e Questão Social » na UFRN, realizarmos uma campanha Contra a barbárie na TV. Simplesmente não podemos silenciar ante à espetacularização da vingança e banalização da violência, em que são exibidos corpos sem vida, inclusive de mulheres assassinadas pelos seus companheiros; corpos mortos, despidos de qualquer comoção, humilhados, vítimas do sofrimento e atingidos em sua dignidade. Isso não é direito à informação, mas sensacionalismo puro que escamoteia a crítica da questão social brasileira e suas multifacetadas refrações. Essa é uma pauta que também se insinuou na fala de Helena Silvestre e que propomos à reflexão da categoria nos próximos fóruns da categoria, como o Encontro Nacional CFESS-CRESS, em setembro próximo e no ENPESS, em dezembro no Rio de Janeiro.
Como reitera Silvestre, vivemos e trabalhamos numa sociedade dividida em classes sociais, uma sociedade contraditória e em permanente tensão, em que o horizonte para muitos é apenas o da sobrevivência. Cabe respeitarmos e compreendermos justamente esses limites, pois é deles que surgirão também propostas de ultrapassagem dessa ordem social. Para tanto, diz Helena, é preciso que os movimentos sociais, usuários e demais trabalhadores - que partilham dos valores que apontam para um novo projeto societário - se unam e se entendam como classe para poder melhor persistir e avançar na luta.
Resume, assim, suas dicas para a uma leitura do presente e construção de estratégias políticas combativas:
- Desconfiar do que está bom demais ou é alvo de « consenso » ;
- Aliar-se com os usuários e outros cidadãos humildes ;
- Aprender a desobedecer , ou seja, sair do script.
« Então, vamos disputar ! Projetar o futuro e avançar na luta de classes !», encerrou.
Eppur se muove
Ilustração das observações de Galileu da Lua, mostrando sua superfície irregular
Para encerrar, insistamos mais um pouco com o « meio », para voltarmos ao começo. Verônica Ferreira, a terceira palestrante dessa mesa a falar, representante do movimento feminista de Recife, disse: « É a partir da emoção também que a gente se move ». Guardemos de sua fala especialmente esse sentido do « mover-se », do movimento e da resistência.
Por isso, recorremos à fala de Galileu Galilei – « Eppur se muove » -, no contexto em que ele foi obrigado a renegar as suas descobertas científicas que indicavam que a Terra se movia e girava em torno do sol e não o contrário. Há quem diga que ele não teria proferido tais palavras, pois seria temerário fazê-lo diante dos tribunais da Inquisição. Mas agrada-me pensar que ele a disse, sim. Renegou as suas descobertas, mas baixinho, disse : « No entanto, se move ». A Terra gira.
Foi com esse contentamento que assisti a essa mesa composta por intelectuais e lideranças dos movimentos sociais. O sentido de subversão a todo dogmatismo e formas autoritárias de pensar e de fazer política foi muito bem posto pelos que ali falaram, simbolizado na paradigmática fala da representante dos trabalhadores sem-teto. Viu-se ali o “otimismo da vontade” em fina sintonia com o necessário “pessimismo da razão”, segundo mais uma vez pressupostos gramscianos.
Esse foi um dos ganhos maiores do XIII CBAS: perserverar na irreverência e combatividade, sem temer ir contra o estabelecido. Ousar acreditar no potencial de transformação que vem de baixo para cima, ali representado pela fala dos movimentos sociais. Pode, por vezes, ser dificil o combate, EPPUR SE MUOVE…
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Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e professora de Serviço Social da FSS/Uerj. Contato: mioneecia @ hotmail.com
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Links
Para navegar
http://www.mtst.info/
Para ler
MEIRELES, Cecília. Mar Absoluto. 2a. ed., Editora Nova Fronteira, 1983.
PESSANHA, José Américo Mota (introd). Galileu. Col. Os Pensadores. Nova Cultural, 1999.
VAN STEEN, Edla. Viver & Escrever. 3 vols. L&PM editores, 2008.
Para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=PJhu0GaU9Hc&feature=player_embedded
(« Música Urbana », com Renato Russo)
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