A METAMORFOSE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL
Quando as redes sociais são as
coadjuvantes
Foto Google - Passeata na Av. Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, em
17/06/2013,
com mais de 100 mil manifestante.
POVO NOVO
"A minha dor está na rua
Ainda crua
Em
ato um tanto beato, mas
Calar a boca, nunca mais!
O
povo novo quer muito mais
Do que desfile pela paz(...)
Já me deu azia, me deu gastura
Essa
politicaradura
Dura,
Que rapa-dura!"
Tom Zé
*Nelma Espíndola
O mês de junho de 2013 marcou um novo tempo na
dinâmica do povo brasileiro em se fazer ouvir. O cantor e músico Tom Zé em sua
composição O Povo Novo, música feita para esse movimento de protesto
diz: "O povo novo quer muito mais /
Do que desfile da paz". Trata-se de uma expressão significativa de
rejeição a algumas práticas reformistas, que desejam calar as vozes dos que
superaram a alienação em fazer valer os direitos sociais. Já vimos muitas
vezes, em momentos de tensão política, essa prática ser utilizada por quem tem
o poder instituído, quando do exercício de representatividade conferido pelo
voto. Mas é preciso que se entenda que a
escolha e legitimação desse poder se situam numa relação entre ética e
política, e se estendem do mesmo modo na vida social e profissional de todos os
sujeitos sociais.
No contrafluxo do poder, o povo se reveste do
direito à rebeldia contra as práticas políticas impostas pelos que o governam. Suas ações contestatórias vão, assim,
se espraiando em meio a um cenário de reivindicações e exigências “de um
povo heroico”, com seu “brado
retumbante”. Brasil, o “gigante deitado em berço esplêndido”, que
acorda na primeira década da Nova Era e não quer mais deixar de ser partícipe
das decisões da sua história, e luta por plenos direitos
sociais e políticos.
Imagem Google
Naquela bela vaga insurrecta de junho do ano
passado, os movimentos sociais tiveram como uma de suas importantes ferramentas
a internet. As redes sociais passaram, portanto, a ser coadjuvantes dos atos de
mobilização e visibilidade instantânea. Há vários
estudos, inclusive, sobre essa nova
dinâmica, como os do sociólogo espanhol Manuel Castells. Nesse sentido, pode-se
dizer, quanto à onda de protestos ocorridos no Brasil
em 2013, que houve, sem dúvida, um amadurecimento
da sociedade. Expressiva de uma nova compreensão do poder político, a máxima
“não me representa” passou a ter popularidade. Segundo Castells, a rua é o
palco ideal dos protestos massivos, onde nem
políticos, partidos ou patrões têm vez, se o seu objetivo é conquistar ali liderança
e poder de mobilização. Em seu lugar, as redes sociais convertem-se em uma teia
de ligação para as massas populares.
Palco de eventos mundiais, a acontecerem entre
2014 e 2016, o Brasil tornou-se o cenário ideal de confrontos, o que, de
maneira contraditória, traz à luz muitas de suas fissuras históricas: além das
desigualdades sociais, o mandonismo local, o fisiologismo e a repressão política das classes
trabalhadoras que se opõem ao sistema “gota a gota” de benesses da nossa velha
cidadania regulada.
Imagem Google
Imagem Google
Cabe voltarmos ao tema das belas manifestações
de rua de 2013, porque toda uma história de lutas ainda vai se desenrolar agora
em 2014, com ou sem aparelhos da ditadura militar, como o Ato Institucional n°
5, que, em 1968, proibia as manifestações políticas. Quem viver e nos ler verá.
PODER E POLÍTICA: algumas lições da “correnteza do senso comum”
Tem-se, cada vez mais, uma associação feita, a partir do senso comum, de que política e poder equivalem à corrupção. Ana Lúcia Vaz, aqui mesmo no Blog Mídia & Questão Social, já nos alertou para a força do senso comum, que age como uma correnteza. Portanto, é preciso sabedoria e estratégias para se desvencilhar da pressão que ele exerce sobre a nossa visão dos fatos. Por outro lado, na opinião de Marilena Chauí, ainda é bastante difundida a ideia de que somos livres apenas quando chegamos ao poder.
Mas toda junção de forças comporta também em
seu bojo a violência física, cuja legitimidade do seu uso, em tese, cabe apenas
aos aparelhos de repressão do Estado. No Brasil, estes aparelhos, no entanto,
trazem, em seu seio, métodos e formas de atuação que são resquícios da ditadura militar, expressos com toda clareza e
contundência na repressão às diversas manifestações populares, contrárias a
várias medidas e práticas políticas dos governos de Estado.
Nossa definição do poder, porém, apesar de
sentirmos tão fortemente a sua presença, costuma ser vaga. Ele é apontado, em geral, somente como a capacidade ou possibilidade de agir e
produzir efeitos. Confundimos também poder exclusivamente com poder político, o
que não nos permite entender a relação
da ética com a política. Precisamos compreender, assim, a própria ética, além
de sabermos identificar as diferentes concepções de poder. Conforme aponta
Foucault, elas são:
- O poder como algo que alguém tem, materializado por uma propriedade, um dote natural, ou adquirido pelo próprio esforço e mérito, por intermédio do conhecimento ou pela posse de bens. É imposto pelo proprietário do poder, de fora, aos outros, que não sabem ou que não têm bens;
- Ou o poder que não é propriedade de ninguém, mas que só existe enquanto se exerce entre seres humanos.
Segundo Michel Foucault, o poder nas sociedades
modernas não se localiza em um ponto da estrutura social, nem se centraliza no
Estado e tampouco se encontra em um outro lugar, isolada e exclusivamente. Para
ele, esse poder se constitui a partir de uma rede de micropoderes que se
estendem sobre o social, sem partir de um centro. O poder não se restringe à soberania do
Estado e a seus aparelhos repressores. Existe em sua visão uma multiplicidade
de correlações de forças imanentes ao seu domínio, onde se exercem e que são constitutivas
de sua organização. Ou seja, os micropoderes para Foucault revelam o
espraiamento do poder em diversos pontos de rede social. Penso, assim, que é
possível reconhecermos a presença ativa desses micropoderes na grande
mobilização tecnológica que alimentou as diversas etapas das manifestações de
junho: desde a campanha contra os 0,20 centavos do aumento das passagens de
ônibus até a resistência representada pelos black-blocks.
A verdade, o conhecimento, a ciência nunca
estão acima ou separados do poder, ou seja, não o transcendem. Foucault propõe uma
tematização da verdade próxima à de Nietzsche, pois acredita que o discurso da
verdade não se obtém como fruto de uma pesquisa "livre e
desinteressada". Isso significa que a
verdade é sempre a busca "interessada" no poder.
“Eu quero é
botar meu bloco na rua”: indignação e esperança...
Filosoficamente, portanto, não podemos deixar de
nos perguntar, a título de balanço das Manifestações de Junho de 2013: tudo o
que aconteceu expressa uma crise da ética ou uma resistência ética à crise da
política? Esta pergunta é difícil de responder, pois é preciso que entendamos o
exercício de poder que se situa na relação entre ética e política, que também se manifesta na ética em
todas as esferas da vida de cada ator social.
Todo esse contexto de mobilização da sociedade
através das redes sociais da internet é analisado no novo livro de Manuel Castells,
Redes de Indignação e Esperança. Interessa-lhe
a formação, dinâmica, valores e perspectivas de transformação social desses
movimentos. As sociedades são contraditórias e conflitivas, logo há poder e
também contrapoder. Isto significa “...a
capacidade de os atores sociais desafiarem o poder embutido nas instituições da
sociedade, com o objetivo de reivindicar a representação dos seus próprios
valores e interesses.” (p.13)
Tinha 14 anos quando
participei pela primeira vez de um movimento social, no final da década de 70.
Naquela época, confesso que não tinha um senso crítico tão apurado a respeito
desse tipo de exercício, o qual, faria parte, posteriormente, com o ingresso na
profissão de Serviço Social, de algo infinito de em nossas vidas, a saber: o de
fazer política. Naquela ocasião, apenas "engrossei as fileiras"
daquele pequeno grupo que contestava o status
quo num município da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Nesse
ínterim, pouca coisa mudou em sua infraestrutura urbanística. Ele continua sendo
um bairro periférico, em que as questões sociais estão presentes em suas mais
variadas expressões, do mesmo modo que a violência é também uma de suas marcas
registradas.
Mas a esperança não
me deixou órfã, do mesmo modo que não deixou todos aqueles que foram às ruas,
em junho de 2013, num ato questionador das velhas práticas políticas exercidas
pelos que estão com seus mandatos eletivos, mas atuando na lógica da pseudo-representatividade
de nós, seus eleitores. A possibilidade de efetiva mudança da prática política
pode estar muito próxima da transformação, e é neste ano que ela re-começa.
Cabe resgatar a
contribuição de Marilena Chauí, em seu livro Convite à Filosofia, quando discute, de maneira interessante, o
significado da palavra política, com
todos os seus paradoxos, nos tempos
atuais. A conjuntura atual propicia tal abordagem, pois o potencial de
desobediência civil se intensifica mundo globalizado afora, em que as redes
sociais da internet desempenham um papel ativo nas mobilizações instantâneas.
Procuramos, de
imediato, refletir sobre a palavra "política". Temos de pronto uma
imagem amarrotada e sem vinco, que, pelo senso comum e o uso extenso de seu
significado, tendemos a associar à
corrupção e a atos que, em princípio, não condizem com o que, de fato, ela
significa, com tão bem dimensiona Chauí. Mas é interessante pensar sobretudo a política como um exercício que é feito
por todos nós a vida inteira. Ela tem sua origem grega: “ta politika”, vinda de
“polis” que significa cidades-estados, aquilo que é público. Refere-se também à latina “Res pública”,
que literalmente significa “coisa do
povo”.
Vejo, assim, essa
essência da gênese do fazer política renascendo através dos movimentos sociais.
Junho de 2013 marcou um tempo de grandes mudanças nesse tipo de experiência,
pelo menos quanto a um entendimento mais próximo do seu significado filosófico
original. O Brasil torna-se assim espelho do que acontece no mundo.
Voltemos à noção de
política, em sua origem grega: ta
politika, vinda de pólis que
significa cidade. O povo, no Brasil,
foi às ruas e ocupou as cidades: tanto os jovens, até então, considerados como
uma nova massa de alienados, tão imersos quanto perdidos no mundo das novas
tecnologias e no ciberespaço, quanto os velhos que, décadas atrás, tiveram uma
utopia de um dia viver numa sociedade mais justa e igualitária.
Essa transmutação de atos e ideias vivifica-se através desse exercício de participação efetiva de todos esses atores sociais, empenhados efetivamente em decidir o que, de fato, é melhor para o coletivo. Incontestavelmente é seu direito ter acesso à educação; saúde; moradia; infraestrutura urbanística; transporte; cultura, lazer, e indiscutivelmente seu papel de cidadão é político. É momento de se refletir profundamente sobre o que confere sentido à legitimidade do poder de decisão política, quando escolhemos nossos representantes para o parlamento e governos a cada quatro anos. Talvez fique-se confuso, à primeira vista, no momento de escolha, mas vale a pena certamente recorrer à memória. Desse modo, é possível começar a construir novas práticas e a transformar o dia de amanhã.
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* Nelma Espíndola - é assistente social, webmaster do Blog Mídia e Questão Social, atua como assessora da Presidência do PREVINIL / ANEPREM.
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SUGESTÕES
MÚSICAS
- Povo Novo – Tom Zé - http://youtu.be/nKYuBIcQRGE
- Tente Outra Vez – Raul Seixas - http://youtu.be/8OxlAOvAmZk
- O Sal da Terra – Beto Guedes - http://youtu.be/Kiok0T2WHf4
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