sábado, 12 de janeiro de 2013

Editoria Jornalismo na Correnteza

O mundo que não se revela a quem olha de fora
Uma jornalista às voltas com o serviço social: encantamento e vertigem




 Ana Lúcia Vaz*


Desde junho, trabalho como jornalista no Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro. Minha responsabilidade principal é atualizar o site e produzir as matérias para a revista PRAXIS. Neste pouco tempo, já pude participar de alguns eventos e debates significativos da categoria, como o Encontro Nacional do Conjunto CFESS/CRESS.

Há sempre, nesses encontros, um sentimento ambíguo, de reconhecimento e estranhamento. Em alguns momentos, me sinto revivendo a militância estudantil dos anos 80. Em outros, recapitulo experiências dos quase dez anos de imprensa sindical.

Atualmente, estou mais envolvida com lideranças de movimentos sociais de favela e ocupação urbana. São pessoas que trazem questões bem concretas da vida, do mundo que pouco enxergo com meus próprios olhos. Ainda assim, ouvir assistentes sociais tem sido uma experiência única para conhecer aspectos, em geral invisíveis, do mundo ao meu redor.


Profundidade




Nos primeiros meses de trabalho no CRESS-RJ, a tarefa foi assustadora. Ler quilômetros de texto, ouvir horas de entrevistas gravadas... como assistente social gosta de palavra! Adora encher seus textos com elas. Muitas palavras! Descobri, no susto, que a equipe de assistentes sociais aqui do blog – que eu vivia perturbando pra reduzirem seus textos – nem é assim tão prolixa. Documentos do Serviço Social não se resolvem em menos de dez páginas! Um mar de palavras complicadas, estruturas complexas, frases quilométricas.

Um verdadeiro desafio à capacidade de concentração e leitura para qualquer jornalista, treinada em textos enxutos, frases curtas, informação rápida, concreta, na maioria das vezes, inclusive, superficial. Assistente social sempre aprofunda. Aprofunda tanto que são capazes de afogar jornalistas desavisadas! Nas primeiras leituras e entrevistas, tomei caldos monumentais.

Aprendi rápido que, para entrevistar assistente social, a gente tem que avisar logo que não entende sigla nem conhece os conceitos “teórico-práticos”, ou “ético-políticos” da profissão.
Acreditando que já tinha a malandragem necessária, lá fui eu entrevistar uma equipe de Serviço Social que atua na Saúde Pública. A matéria era sobre “exercício profissional” (ainda não entendi porque, mas já decorei que assistente social não “pratica”, “exercita” a profissão).

Minha primeira pergunta ingênua: “Como é o trabalho de vocês?”. Pronto, fui afogada por siglas e resoluções sobre a função dos núcleos de apoio à saúde da família. Até agora não entendi direito um tal de matriciamento. Precisava ler um documento bem difícil, de mais de vinte páginas!

A entrevista foi ótima. As assistentes sociais conheciam bem seu trabalho e se empenharam em me ajudar a sobreviver à enxurrada. Mas saí cansada, um pouco zonza, e só com muito custo consegui extrair informações sobre ações concretas que me ajudassem a entender a importância do trabalho que realizavam.

Minha angústia começou a brotar. Percebi que o trabalho delas era imprescindível! Mas só a muito custo cheguei às informações capazes de convencer a mim e à maioria dos leigos disso.

Descobri assim que a pergunta mais importante, na hora de entrevistar assistentes sociais (depois de deixar clara nossa ignorância) é algo como: Qual sua experiência? O que você faz, concretamente? Como isso beneficia os usuários?

Há exceções, é claro. Assistentes sociais que vão direto ao assunto concreto. Imagino, inclusive, que por treino do ofício, quando se dirigem ao público usuário, devem falar de maneira bem clara e simples.

O impacto da realidade: envolvimento


                                                     Fornasetti


Um dia, voltando do almoço, entrei no elevador com três homens com jeito de malucos (Tenho consciência do preconceito que a expressão carrega, mas seria desonesto descrever meu pensamento com outra palavra. Porque foi esta que me veio, junto com o preconceito que me habita). Um deles falava muito, meio compulsivamente, e brincava com as pessoas no elevador, de maneira levemente incômoda. Suas roupas, limpas e cuidadas, não conseguiam disfarçar a pobreza e os maus tratos da vida. Saíram todos no mesmo andar que eu e se dirigiram para o auditório do Conselho.

Quis saber do que se tratava e acabei acompanhando duas reuniões da comissão que organizava o seminário de lançamento da Frente Estadual de Drogas e Direitos Humanos. Fiquei apaixonada por aqueles usuários do sistema de saúde mental em sua luta antimanicomial.

Em reportagens, fui aprendendo sobre a realidade do sistema público de saúde. Sobre a difícil tarefa de defender direitos humanos diante de governos que os ignoram. As contradições de quem presta serviço ao governo e, ao mesmo tempo, tem por tarefa denunciá-lo. Sobre como nossas escolas públicas são esvaziadas de sentido para seus usuários. Sobre a luta dos moradores da Providência, dos pescadores de Magé, dos quilombolas, da população de rua.

Através de assistentes sociais, vou fazendo contato com um mundo que não se revela a quem olha de fora, passando de carro, ou assistindo à TV. Algumas entrevistas me perturbam. Depois de ouvir histórias detalhadas sobre o abrigo de Antares, em Paciência, para onde são levados os adultos recolhidos pela Prefeitura nas ruas do Rio de Janeiro, foi difícil voltar para casa. Precisei de mais de hora caminhando, antes de tomar o rumo de casa, com o estômago ainda apertado.

Difícil digestão das imagens de um mundo que habito, mas só consigo conhecer pelos olhos de outros.

Afogamento teórico




Não se trata de opor a teoria à experiência. Mas é fato que nossa mente humana, enredada em circuitos binários, tem extrema dificuldade de compreender e atuar no mundo de acordo com o ideal da práxis. Bem significativamente, este é o nome da revista do Conselho que tenho produzido. Um trabalho onde sou sobressaltada por descobertas e experiências intensas e, ao mesmo tempo, afogada por tsunamis de conceitos complexos.

Algumas falas, assim como muitos textos que pesquiso, erguem muralhas no caminho de gente leiga como eu. De vez em quando, também tenho a impressão de que um autor se perdeu no próprio labirinto de explicações e conceitos que se desprenderam da experiência.

No serviço social, tenho me deparado com muitos desses labirintos teóricos! O que não é privilégio da área. Na comunicação, a academia também gosta de produzir labirintos. Provavelmente, em todas as áreas do conhecimento. Pelo menos, nas chamadas ciências humanas.

Como me ensinou uma amiga professora, amante desses caminhos teóricos de transcendência: “A teoria não tem que ter aplicação. Teoria é teoria, ela abre a mente.” Não tenho muito certeza sobre isso, mas parece a melhor defesa para este campo onde me é tão árduo caminhar. E também um sinal claro de que não se trata exatamente de uma diferença entre nossas escolhas acadêmicas: comunicação ou serviço social. Mas de nossas escolhas profissionais e pessoais.

Um jornalista pode ter feito faculdade de jornalismo. Eu fiz e ela contribuiu para minha formação profissional. Mas há muitos bons jornalistas que não fizeram. Por outro lado, minha amiga amante dos labirintos teóricos fez a mesma faculdade que eu. Mas, por escolha e aptidão, jamais se tornou jornalista.
  
As difíceis pontes entre teoria e prática




O jornalismo e o serviço social são duas áreas diretamente comprometidas com a prática, ou o exercício, como preferem os assistentes sociais. No jornalismo, a esquizofrenia coletiva é total. Há os teóricos, e há os práticos. Quem conceitua, despreza a prática profissional. Dos que praticam, há até os que afirmam que “na hora da produção, não dá para pensar”. Ou seja, não conheço campo mais perturbado que o jornalismo, no que diz respeito a qualquer possibilidade de relacionar teoria e prática de maneira razoável.

O serviço social também tem suas perturbações. Principalmente em matéria de retórica. Há uma dificuldade extrema para tornar sua forma de atuar algo compreensível para os leigos. Para a mídia, então, a distância é quase intransponível. Eu trabalho para o Conselho, fazendo uma revista bimestral. Posso me dar ao luxo de ouvir duas horas de entrevista para escrever o que foi dito em 15 minutos. Para o repórter da mídia comercial diária, o que não for compreendido em cinco minutos, dificilmente será publicado.

A dificuldade dos jornais cobrirem assuntos científicos e acadêmicos já é bem conhecida. Há cursos de jornalismo científico e alguns jornalistas se especializam nisso. Mas o serviço social que mais interessa ao jornalista está na rua, nas instituições de serviço público. São assistentes sociais que lidam com gente, com suas questões mais humanas e cotidianas. Não é assunto para o jornalista de ciência.

Assunto de jornalista é o cotidiano. Histórias humanas, contadas por humanos, para humanos. O objeto do jornalista é o particular, o único. Assunto que dá matéria boa, não é a política da Prefeitura para a população na rua. Embora o jornal também trate superficialmente disso. Interpretações teóricas sobre os significados desta política, só em artigos especiais. Assunto bom, para jornalista, são as condições objetivas como vivem os abrigados de Antares, as ações de recolhimento, o atendimento que o cidadão recebe na instituição de saúde, os caminhos que percorre para conseguir sua aposentadoria, as condições de vida dos desabrigados.

A angústia de um assessor de imprensa trabalhando para assistentes sociais é permanente. Os assistentes sociais das UPAs denunciam as péssimas condições de trabalho por lá; o usuário do sistema de saúde mental, militante do movimento antimanicomial explica como ele se transformou de dependente de drogas ilícitas em dependente químico de drogas lícitas; assistentes sociais que trabalham com o cotidiano da população trans. Assunto sobra. Mas as pontes são difíceis de construir.

De um lado, discursos que buscam insistentemente a generalização, afogando o jornalista em conceitos. Um discurso cheio de palavras grandes e difíceis, conceitos hiper precisos, capazes de exigir duas linhas de intercalada, na ânsia de assegurar-se de que o leitor vai entender exatamente o conceito. Mesmo que esta exatidão não interfira no assunto em questão. Frases e textos enormes em busca de uma abrangência conceitual impossível.

Do outro, o público leigo, para quem frases longas e palavras difíceis são terríveis obstáculos para o acesso à informação. Gente que quer saber como vão as ruas de sua cidade, como vivem outros humanos, mas não pretendem estudar ciências humanas.

No meio, o jornalista. Leigo, especialista em coisa alguma, porque precisa saber falar de tudo um pouco, de modo a não dizer muito sobre nada. Especializado em contar histórias simples e cortar palavras. Ansioso por construir pontes, sem saber como usar os tijolos enormes e desajeitados que lhe chegam.

Encontro difícil, que muitas vezes se transforma em desconfianças recíprocas e precipitadas.

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*Ana Lucia Vaz, jornalista do Conselho Regional do Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS-RJ), mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net),  professora de jornalismo e terapeuta craniossacral .

7 comentários:

  1. Ana, adorei!
    Ontem na mesa que partilhamos houve uma alorosa discussão so porque alguém utilizou a categoria "natural" de forma leviana rsrsrsrs
    Parabéns! bj Cris Braga

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. O texto é ótimo e me prendeu até o fim. E ainda traz um relato bem humorado e emocionante sobre os assistentes sociais. Acho que, em parte, a dificuldade de sermos objetivos vem da academia. Nada na academia é simples, assim como não dá para falar de “expressões da questão social” de forma simples, mesmo sabendo que lidamos com uma população que tem dificuldade de entender o nosso discurso. No fundo é uma necessidade de "reconhecimento da competência" que se abate sobre os profissionais em exercício. Ao mesmo tempo em que somos assalariados, buscamos expor o nosso trabalho com a linguagem rebuscada de um acadêmico, quem não o faz, abre brechas para críticas e etc.

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    1. Valeu, Cris!
      Pois é, há um cuidado que é interessante. Aprendo muito com ele. Mas há também um excesso que dificulta a comunicação, sempre incompleta e imperfeita por natureza... ou cultura, sei lá!

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    2. É, Rodrigo, acho que você tocou num ponto central: a necessidade de reconhecimento da competência.
      Maurizio Gnerre diz que escolhemos a linguagem, centralmente, pelo lugar social que ocupamos ou pretendemos ocupar. Ou seja, não é uma questão só para assistentes sociais, assim como não explica tudo, mas é uma "reflexão" muito importante.
      Obrigada!

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  4. Texto digno de uma "super-jornalista" (rs. Piada interna)!!! De um assistente social para uma jornalista: parabéns, Ana!!! Beijo! Felipe

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  5. Ana Lúcia. Recebi de presente de uma amiga assistente social (Geila Retto) o prazer chegar ao seu artigo. Aliás, eu diria que esse não é um texto simplesmente, mas um ato de coragem em expor tantas inquietudes. Como assistente social e jornalista que sou, acho que essas inquietudes te levam para um caminho digno. Só discordo que você seja leiga em tudo. Acredito que seu olhar de estranhamento antropológico e suas críticas quanto a linguagem e a comunicação em muito têm a contribuir para a divulgação do fazer do assistente social. Parabéns pelo trabalho articulado entre teoria e prática de comunicação!

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