Mione Sales*
Dos ataques
sangrentos contra civis promovidos pelo governo da Síria nos últimos meses aos
assassinatos e perseguições homofóbicas em crescimento exponencial no Brasil,
parece que a maré do mundo não está muito para peixe. Fica-se sempre com aquela
sensação de que com os meios de comunicação e sobretudo a Internet, o mundo talvez
tenha ficado pequeno demais e cada vez mais próximo, inclusive a sua violência.
Não se sabe se ficamos a par de mais notícias ruins ou se as notícias ruins
juntamente com os seus fatos se multiplicam qual um vento galopante na
contemporaneidade.
A charge que
escolhemos para abrir a matéria, que traz a nossa pequena musa Mafalda, uma criação
do argentino Quino, diz bem do desconforto e mesmo dor com que narramos ou
lemos o que se passa na política mundial, como a crise econômica avassaladora
em países da Europa como Grécia, Portugal e Espanha. O geógrafo marxista David
Harvey assinalou muito bem, em Conferência na Escola de Arquitetura de
Belleville (Paris, 2010), « não tarda a crise chega até você ». Faz
parte do seu ciclo de expansão e reprodução, como característica intrínseca do
capitalismo em sua etapa atual. Ela já esteve nos Estados Unidos, agora está impactante
na Europa, mas o mundo gira… Por isso,
melhor não esquecer a solidariedade para com os países, povos e camadas
oprimidas e exploradas da sociedade.
A música é a saída
“Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”.
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Face aos desencantos da política nacional, o cantor
brasileiro Criolo lançou essa frase no seu concerto, nesta última terça-feira
(03/07) no Cabaret Sauvage, em La Villette, Paris. Diante da corrupção, da
desilusão, do beco sem saída, a música, « mano », como ele diz, pode constituir
uma espécie de utopia no presente: a
vivência de uma irmandade e a possibilidade de constituição de novas fratrias. Podemos
estender essa potencialidade utópica facilmente à arte de modo geral, mas penso
que o rapper Criolo refere-se sobretudo à capacidade da música de permitir
transcender a solidão da criatividade autoral – individual ou grupal - dos
compositores, plasmando-se numa intensa troca coletiva de significados e
experiências com o público.
Retorquirão alguns
com a crítica aos males da indústria cultural e de massa, mas o sentimento de
uma plateia em relação a músicos e cantores é inegavelmente muitas vezes de
comunhão, paixão, além de verdadeira admiração. Não se enquadra, não se resume
e não se explica somente pelo fenômeno da alienação. Sabe-se que, por vezes,
pode beirar a histeria e a catarse, no entanto como evoca o rapper: a música
fala, por meio de suas notas e ritmos, muitas línguas. A música como a classe operária é
internacional. É, de fato, uma linguagem universal. Não há barreiras para o
diálogo que ela pretende promover: « É só o amor! É só o amor!»,
cantava Renato Russo. « A paz invadiu o meu coração,
fez um mar da revolução… de repente encheu-me de paz… », são versos
musicais de João Donato e Gilberto Gil, que se encontram entre os mais lindos
da música popular brasileira. “Ideologia eu quero uma pra viver”, nos legou
Cazuza, com sua canção “Brasil, mostra tua cara”.
Claro que sabemos
que a fogueira das vaidades não poupa o universo da música. Queremos, porém -
contra a pauta midiática de um mundo doente
do qual se ressente Mafalda e a que temos sido todos obrigados a ver e a ler, justamente
porque homens, mulheres, estruturas governamentais e partidos insistem em não
fazer diferente, em deixar agonizar o planeta, em serem inclementes e
impiedosos com populações inteiras - nos embeber da música como um possível
passaporte para Pasárgada ou para « Bogotá »: música e poesia como
formas incessantemente renovadas de produção de criticidade, resistência e
fraternidade.
Aproveitamos,
portanto, o espaço desta matéria para veicular, em meio a tantas más notícias
em circulação, uma boa, pequena, porém, alvissareira, inspiradora, que semeia a
esperança e pode até mesmo nos despertar um sorriso, senão projetos afins. Esta
é a ideia!
Traduzo e
reproduzo, assim, uma curta reportagem que li e que me emocionou no Jornal Metro, de Paris, essa semana (terça,
03/07/2012) e pensei por isso mesmo compartilhar com meus blog-leitores. Fala
de música e do desejo de liberdade. Comemoremos! Celebremos! E esperemos que
Criolo tenha realmente razão: a música pode ser uma saída!
"Fique
atento irmão!
Fique atento,
Fique atento,
quando
uma pessoa lhe oferecer um caminho mais curto”.
CRIOLO
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Música & Cultura no Cárcere
COM A CABEÇA LIVRE
EVENTO – O rapper
Youssoupha realizou na tarde de 28 de junho um concerto na Casa de Detenção
Bois-d’Arcy
REPORTAGEM – Um
pouco de alegria para um público que precisa espairecer
Pierre Bohm*
O sol projeta
seus raios sobre o mar azul turquesa. Diante do anfiteatro da Casa de Detenção
Bois-d’Arcy (Yvelines), o painel
pintado num muro de cimento propicia essa ilusão. No entanto, como em todas as
prisões da França, o cenário são grades, paredes, barras de ferro. Então, para
fazer os detentos saírem um pouco desse cotidiano, o rapper Youssoupha, graças
à ong parisiense Hip-hop Cidadão
[Hip Hop Citoyen] apresentou-se diante de 75 deles, triados com esse objetivo.
« É importante que a cultura esteja presente em
todos os estratos da sociedade. Os espetáculos servem de válvula de escape para os detentos »,
explica Yannick Freytag, co-fundador da ong. “A cultura é
uma partilha de valores. Isto põe as pessoas em situação de igualdade”, reforça
Arnaud Sorelanski, director da Casa de Detenção.
Uma doce euforia
Os prisioneiros
ocupam os lugares em silêncio. Discretos, eles se sentam no fundo do
anfiteatro. Quatro guardas se posicionam, com um sorriso
nos lábios, nos cantos da sala. Um deles, cujo apelido é Slash, 32 anos, dos
quais doze trabalhando na penitenciária, declara : « é bom, isto lhes
refresca a mente. Para nós, trata-se de um trabalho de vigilância básico, como
quando os levamos à missa de domingo ». Ele não conhece bem Youssoupha. Ele prefere os
Guns N’Roses.
Um dos maiores vendedores de disco do ano faz sua
entrada no palco. « Eu quero poder tocar nas pessoas. Aproximem-se. »
Os presos avançam pelas arquibancadas. E começa o show, que dura uma hora e
quinze. Quase se consegue esquecer o contexto carcerário. Alguns « backs » passam de
mão em mão. Os guardas fingem ignorar. Youssoupha estende
o microfone ao público, que canta e dança: todos molhados de suor. Alguns
chegam até o palco. É a vez deles fazerem o espetáculo, sob o estímulo dos
demais colegas detentos. Ao final do concerto, Youssoupha presta uma homenagem
à plateia: “Eles tiveram quase mais mérito do que eu hoje. Pairava no ar uma
doce euforia ». Um sentimento de liberdade, ou quase isso.
Algumas reações
« A gente não
aguenta mais esse negócio de ‘foda-se a sua mãe’ [nique ta mère] a cada dois minutos »
Casa de Detenção Bois
d’Arcy (Yvelines)
AS PALAVRAS FLUEM - Depois do show, a equipe do Jornal Metrô conversou com alguns detentos sobre a
apresentação de Youssoupha, mas especialmente quanto ao acesso deles à cultura
na prisão.
Um deles se exprime com uma voz doce,
que contrasta com a sua corpulência: « O show aconteceu num clima ótimo.
Rimos bastante. Isto descontrai todo mundo. Gosto também de ler os livros de
Agatha Christie. E a imprensa esportiva, que nos trazem em dias de visita.
Senão, divirto-me com um jogo eletrônico de futebol.
Para
um outro detento, o show veio numa boa hora. “Estava um
pouco triste. Youssoupha levantou a minha moral. Ele não utiliza palavrões,
fala um francês correto. É importante. A gente não aguenta mais esse negócio de
‘foda-se a sua mãe‘ ». Ele também lê bastante. « Na prisão, somos
todos intelectuais, exceto aqueles que não sabem ler ». Igual a outros
presos, ele também assiste a filmes num aparelho de DVD que adquiriu depois da
prisão. « Eu particularmente gostei de ‘Convicção’, filme que conta a luta
de uma mulher para fazer reconhecer a inocência do seu irmão condenado por erro
à prisão perpétua ».
Mas, muito rapidamente, sem serem
instados a isso, o grupo de detentos aborda o tema que realmente mais lhes mobiliza:
as condições de vida na prisão. « Não temos geladeira, nada para aquecer
nossa comida. Somos 900 em uma prisão prevista para 500 presos ». Um deles
detalha: « Somos a última das prioridades. Aqui entra-se com um segundo
grau em drogas e se sai com doutorado em tráfico internacional ».
Uma problemática que leva o diretor
da prisão, Arnaud Sorelanski, também a se pronunciar: « As preocupações
dos detentos acham-se ligadas às suas condições
de detenção. O que eles dizem é globalmente exato. Nós levamos em conta
essas demandas. Eles me chamam quando passo nos corredores. É legítimo ».
[Reportagem de Pierre Bohm - Fonte: http://www.metrofrance.com/culture/on-etait-au-concert-
de-youssoupha-a-la-prison-de-bois-d-arcy/mlgb!Uh8SqwEsSdOYo/ ]
de-youssoupha-a-la-prison-de-bois-d-arcy/mlgb!Uh8SqwEsSdOYo/ ]
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Mione Sales – é assistente social, doutora em
Sociologia (USP) e mestranda em estudos literários (Paris 3). Tradutora e
revisora, faz jornalismo cultural no Blog Mídia
e Questão Social. Além disso, ensina a língua de Camões aos patrícios de
Voltaire.
Contato: mionesales@gmail.com
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Links
[Poema Sete Faces – Carlos Drummond
de Andrade]
[« L’amour » – Youssoupha –
Album Noir Désir]
[“Dreaming”
– Youssoupha & Indila e Skalpovich]
[« Bogotá »
– Criolo]
[Entrevista com o rapper Criolo]
[A
Condenação (Conviction) - filme citado na reportagem do Jornal Metrô]
"A cultura é uma partilha de valores". É sempre bom passar por aqui. Obrigada pelo artigo e tradução. Dá pra gente se sentir menos doente. Um forte abraço, Kênia.
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