sábado, 7 de julho de 2012

Editoria Volta do Mundo, Mundo da Volta

Mundo vasto mundo: acordes pra acordar!




Mione Sales*

Dos ataques sangrentos contra civis promovidos pelo governo da Síria nos últimos meses aos assassinatos e perseguições homofóbicas em crescimento exponencial no Brasil, parece que a maré do mundo não está muito para peixe. Fica-se sempre com aquela sensação de que com os meios de comunicação e sobretudo a Internet, o mundo talvez tenha ficado pequeno demais e cada vez mais próximo, inclusive a sua violência. Não se sabe se ficamos a par de mais notícias ruins ou se as notícias ruins juntamente com os seus fatos se multiplicam qual um vento galopante na contemporaneidade.

A charge que escolhemos para abrir a matéria, que traz a nossa pequena musa Mafalda, uma criação do argentino Quino, diz bem do desconforto e mesmo dor com que narramos ou lemos o que se passa na política mundial, como a crise econômica avassaladora em países da Europa como Grécia, Portugal e Espanha. O geógrafo marxista David Harvey assinalou muito bem, em Conferência na Escola de Arquitetura de Belleville (Paris, 2010), « não tarda a crise chega até você ». Faz parte do seu ciclo de expansão e reprodução, como característica intrínseca do capitalismo em sua etapa atual. Ela já esteve nos Estados Unidos, agora está impactante na Europa, mas o mundo gira…  Por isso, melhor não esquecer a solidariedade para com os países, povos e camadas oprimidas e exploradas da sociedade.


A música é a saída




“Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Face aos desencantos da política nacional, o cantor brasileiro Criolo lançou essa frase no seu concerto, nesta última terça-feira (03/07) no Cabaret Sauvage, em La Villette, Paris. Diante da corrupção, da desilusão, do beco sem saída, a música, « mano », como ele diz, pode constituir uma espécie de utopia no presente: a vivência de uma irmandade e a possibilidade de constituição de novas fratrias. Podemos estender essa potencialidade utópica facilmente à arte de modo geral, mas penso que o rapper Criolo refere-se sobretudo à capacidade da música de permitir transcender a solidão da criatividade autoral – individual ou grupal - dos compositores, plasmando-se numa intensa troca coletiva de significados e experiências com o público.

Retorquirão alguns com a crítica aos males da indústria cultural e de massa, mas o sentimento de uma plateia em relação a músicos e cantores é inegavelmente muitas vezes de comunhão, paixão, além de verdadeira admiração. Não se enquadra, não se resume e não se explica somente pelo fenômeno da alienação. Sabe-se que, por vezes, pode beirar a histeria e a catarse, no entanto como evoca o rapper: a música fala, por meio de suas notas e ritmos, muitas línguas. A música como a classe operária é internacional. É, de fato, uma linguagem universal. Não há barreiras para o diálogo que ela pretende promover: « É só o amor! É só o amor!», cantava Renato Russo. « A paz invadiu o meu coração, fez um mar da revolução… de repente encheu-me de paz… », são versos musicais de João Donato e Gilberto Gil, que se encontram entre os mais lindos da música popular brasileira. “Ideologia eu quero uma pra viver”, nos legou Cazuza, com sua canção “Brasil, mostra tua cara”.

Claro que sabemos que a fogueira das vaidades não poupa o universo da música. Queremos, porém - contra a pauta midiática de um mundo doente do qual se ressente Mafalda e a que temos sido todos obrigados a ver e a ler, justamente porque homens, mulheres, estruturas governamentais e partidos insistem em não fazer diferente, em deixar agonizar o planeta, em serem inclementes e impiedosos com populações inteiras - nos embeber da música como um possível passaporte para Pasárgada ou para « Bogotá »: música e poesia como formas incessantemente renovadas de produção de criticidade, resistência e fraternidade.

Aproveitamos, portanto, o espaço desta matéria para veicular, em meio a tantas más notícias em circulação, uma boa, pequena, porém, alvissareira, inspiradora, que semeia a esperança e pode até mesmo nos despertar um sorriso, senão projetos afins. Esta é a ideia!

Traduzo e reproduzo, assim, uma curta reportagem que li e que me emocionou no Jornal Metro, de Paris, essa semana (terça, 03/07/2012) e pensei por isso mesmo compartilhar com meus blog-leitores. Fala de música e do desejo de liberdade. Comemoremos! Celebremos! E esperemos que Criolo tenha realmente razão: a música pode ser uma saída!


"Fique atento irmão!
Fique atento,
quando uma pessoa lhe oferecer um caminho mais curto”.

CRIOLO

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Música & Cultura no Cárcere
COM A CABEÇA LIVRE


EVENTO O rapper Youssoupha realizou na tarde de 28 de junho um concerto na Casa de Detenção Bois-d’Arcy
REPORTAGEM Um pouco de alegria para um público que precisa espairecer


Pierre Bohm*

O  sol projeta seus raios sobre o mar azul turquesa. Diante do anfiteatro da Casa de Detenção Bois-d’Arcy (Yvelines), o painel pintado num muro de cimento propicia essa ilusão. No entanto, como em todas as prisões da França, o cenário são grades, paredes, barras de ferro. Então, para fazer os detentos saírem um pouco desse cotidiano, o rapper Youssoupha, graças à ong parisiense Hip-hop Cidadão [Hip Hop Citoyen] apresentou-se diante de 75 deles, triados com esse objetivo.

« É importante que a cultura esteja presente em todos os estratos da sociedade. Os espetáculos servem de válvula de escape para os detentos », explica Yannick Freytag, co-fundador da ong. “A cultura é uma partilha de valores. Isto põe as pessoas em situação de igualdade”, reforça Arnaud Sorelanski, director da Casa de Detenção.


Uma doce euforia




Os prisioneiros ocupam os lugares em silêncio. Discretos, eles se sentam no fundo do anfiteatro. Quatro guardas se posicionam, com um sorriso nos lábios, nos cantos da sala. Um deles, cujo apelido é Slash, 32 anos, dos quais doze trabalhando na penitenciária, declara : « é bom, isto lhes refresca a mente. Para nós, trata-se de um trabalho de vigilância básico, como quando os levamos à missa de domingo ». Ele não conhece bem Youssoupha. Ele prefere os Guns N’Roses.




Um dos maiores vendedores de disco do ano faz sua entrada no palco. « Eu quero poder tocar nas pessoas. Aproximem-se. » Os presos avançam pelas arquibancadas. E começa o show, que dura uma hora e quinze. Quase se consegue esquecer o contexto carcerário. Alguns « backs » passam de mão em mão. Os guardas fingem ignorar. Youssoupha estende o microfone ao público, que canta e dança: todos molhados de suor. Alguns chegam até o palco. É a vez deles fazerem o espetáculo, sob o estímulo dos demais colegas detentos. Ao final do concerto, Youssoupha presta uma homenagem à plateia: “Eles tiveram quase mais mérito do que eu hoje. Pairava no ar uma doce euforia ». Um sentimento de liberdade, ou quase isso.

Algumas reações

« A gente não aguenta mais esse negócio de ‘foda-se a sua mãe’ [nique ta mère] a cada dois minutos »


 Casa de Detenção Bois d’Arcy (Yvelines)


AS PALAVRAS FLUEM -  Depois do show, a equipe do Jornal Metrô conversou com alguns detentos sobre a apresentação de Youssoupha, mas especialmente quanto ao acesso deles à cultura na prisão.

Um deles se exprime com uma voz doce, que contrasta com a sua corpulência: « O show aconteceu num clima ótimo. Rimos bastante. Isto descontrai todo mundo. Gosto também de ler os livros de Agatha Christie. E a imprensa esportiva, que nos trazem em dias de visita. Senão, divirto-me com um jogo eletrônico de futebol.

Para um outro detento, o show veio numa boa hora. “Estava um pouco triste. Youssoupha levantou a minha moral. Ele não utiliza palavrões, fala um francês correto. É importante. A gente não aguenta mais esse negócio de ‘foda-se a sua mãe‘ ». Ele também lê bastante. « Na prisão, somos todos intelectuais, exceto aqueles que não sabem ler ». Igual a outros presos, ele também assiste a filmes num aparelho de DVD que adquiriu depois da prisão. « Eu particularmente gostei de ‘Convicção’, filme que conta a luta de uma mulher para fazer reconhecer a inocência do seu irmão condenado por erro à prisão perpétua ».

Mas, muito rapidamente, sem serem instados a isso, o grupo de detentos aborda o tema que realmente mais lhes mobiliza: as condições de vida na prisão. « Não temos geladeira, nada para aquecer nossa comida. Somos 900 em uma prisão prevista para 500 presos ». Um deles detalha: « Somos a última das prioridades. Aqui entra-se com um segundo grau em drogas e se sai com doutorado em tráfico internacional ».

Uma problemática que leva o diretor da prisão, Arnaud Sorelanski, também a se pronunciar: « As preocupações dos detentos acham-se ligadas às suas condições  de detenção. O que eles dizem é globalmente exato. Nós levamos em conta essas demandas. Eles me chamam quando passo nos corredores. É legítimo ».



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Mione Sales – é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e mestranda em estudos literários (Paris 3). Tradutora e revisora, faz jornalismo cultural no Blog Mídia e Questão Social. Além disso, ensina a língua de Camões aos patrícios de Voltaire. Contato: mionesales@gmail.com

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Links

[Poema Sete Faces – Carlos Drummond de Andrade]

[« L’amour » – Youssoupha – Album Noir Désir]

[“Dreaming” – Youssoupha & Indila e Skalpovich]

[« Bogotá » – Criolo]

[Entrevista com o rapper Criolo]

[A Condenação (Conviction) - filme citado na reportagem do Jornal Metrô]
  

Um comentário:

  1. "A cultura é uma partilha de valores". É sempre bom passar por aqui. Obrigada pelo artigo e tradução. Dá pra gente se sentir menos doente. Um forte abraço, Kênia.

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