O sertão virou fotografia
ou quando a arte que vem do interior
Uma de suas belas imagens: porque « a vida é real e de viés », como dizia o poeta C. Veloso
Mione Sales*
O sertão já virou cinema pelas mãos de Glauber Rocha e Rosemberg Cariry. O sertão já virou literatura pelas mãos e penas de muitos escritores regionalistas, sendo Vidas Secas de Graciliano Ramos e Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, ícones nacionais e internacionais. O sertão virou mar na utopia de Antônio Conselheiro. O sertão virou foice e bala sob o comando de Lampião. O sertão virou procissão em preces ao Padim Ciço. O sertão foi cantado em verso e prosa por Patativa do Assaré e assombrado pela inteligência de Ariano Suassuna e a poesia de João Cabral de Melo Neto. O sertão virou saques em tempos de grande seca e fome, eternizados por Raquel de Queiroz. Mas o sertão virou também agora fotografia, graças às lentes de Tiago Santana.
Foi com alegre supresa que descobri na última terça-feira (07/02), que o fotógrafo brasileiro, para cuja exposição em Paris eu tinha ganho um convite, era um conterrâneo cearense. Mais que isso, da mesma geração. Descubro-o, assim, e ao seu trabalho, de um só golpe. A exposição com o apoio da Associação L’esprit vive, está instalada no bairro do Marais, na Galeria Fait & Cause, ao lado do Centre Georges Pompidou, ou Museu Beaubourg. Ela vem coroar a publicação do trabalho do fotógrafo, « Sertão » (2011), na célebre coleção Photo Poche Société, uma coleção que já publicou inúmeros fotógrafos consagrados, franceses ou não. Tiago Santana é o segundo brasileiro, depois de Sebastião Salgado, a integrar o seleto grupo.
O fotógrafo cearense Tiago Santana, que reside hoje em Fortaleza.
Chamaram-me a atenção, em primeiro lugar, as fotografias, que, embora retratem aspectos da questão social estampada nas zonas mais áridas do Nordeste brasileiro, não se restringem à pura documentação. Tiago Santana produz arte, enquanto clica pessoas e casebres, por dentro e por fora. Seus planos e enquadramentos que deixam muitas vezes algumas imagens desfocadas introduzem ali o elemento que sugere a presença da subjetividade, a coisa invisível inacessível a olho nu, mas captada pela sensibilidade do artista e que é meio aura e meio emoção. O real oferece-se para ser contemplado, mas as nuances que o olhar de Santana nos aporta permitem que um tema tão decantado de múltiplas formas pelo cinema novo, ligas camponesas, CPC da UNE, e tantos outros movimentos políticos e culturais que ali fincaram bandeiras e raízes, se irrigue e renove.
« O Sertão » [Coleção Photo Poche, 2011]
Deu gosto de ver o efeito da mira desse artista natural do Crato (CE) sobre cabras, galos e casas de sapê. Mesmo se os olhos do fotografado podem ser considerados a alma da foto, desde o belo ensaio de Juan Rulfo sobre o México dos anos 50, descobri o deleite de ver alma em fotos que exploram outros ângulos e em que é pujante a vida, mesmo sem o apoio técnico do olhar. Por isso, gostei e identifiquei-me com seus personagens e seus olhares de viés. Não sei exatamente em qual contexto foram tiradas. Se são posadas ou são flashes espontâneos. De um jeito ou de outro envolvem uma escolha do fotógrafo. Algo que devolve uma nobreza para os fotografados que não se mostram ávidos em serem retratados. Pelo contrário. Quase esboçam uma indiferença, com seus ares ensimesmados.
Gosto menos da presença da temática religiosa, mesmo sabendo que Tiago Santana produziu um livro de fotos que se chama « Benditos » (2000). Talvez seja o excesso de proximidade com os primeiros trabalhos de Sebastião Salgado e suas dolorosas « Américas » que me incomode. Muito embora ele se diferencie de Salgado, há ali um diálogo. Isso não chega a ser ruim, visto que em certa medida ele é tributário de um gênero em que Salgado se consagrou. Nada menos improvável que tenham veredas em comum. A intertextualidade visual, nesse caso, é evidente, como a que eu pressinto em relação ao ensaio do escritor e fotógrafo mexicano Juan Rulfo, mas nesse caso atribuo apenas talvez à coincidência e ao bom gosto de fotografar a desolação de paisagens sob o sol impiedoso e pessoas de costas, ou apenas da cintura para baixo. Aliás, não apenas por isso, mas enxergo o nosso México, o nosso « nacional-popular » em meio às fotografias do sertão de Tiago, nossos machos e miguelitos, nossos josés e joãos, bem ou mal-amados, percebidos em seu silêncio, sensibilidade e, quem sabe, inevitável solidão.
« Meninos », pelas lentes de Tiago Santana
As fotos de crianças, carrinhos de madeiras, brincadeiras e sorrisos não me soam excessivas nem repetitivas. Dou-me conta, inclusive, de que nossas crianças pobres são pouco fotografadas em seu direito e prática do brincar. É um alento poder ser feliz autenticamente, a despeito de condições materiais pouco favoráveis e situação climática inóspita. Tiago Santana fez um ensaio também em homenagem à obra de Graciliano Ramos [« O chão de Graciliano » - 2006], de onde talvez tenha se inspirado na crueza e na leveza experenciada por aquele no sertão de Alagoas para retratar o universo da infância.
Fui poucas vezes ao sertão do Ceará. Ficou-me a lembrança do sol e da terra seca. Tiago, porém, atualiza o sertão que há no nosso imaginário, pois vaqueiros ainda se vestem tal e qual. O agreste tem cactos e homens a cavalo, com seus chapéus de couro. Parece uma viagem pelo túnel do tempo. Parece que o tempo parou no sertão. Hoje quando até os cordéis dialogam com as novas tecnologias, soa estranhíssimo esse tempo parado e essas pessoas de um outro tempo, sempre ali, as mesmas. No fundo, é um presente de extrema beleza a todos os citadinos brasileiros e do mundo que não ousariam advinhar o que se esconde depois da linha do trem.
Minha foto preferida é uma das “trans-sertão-mexicanas” clicadas em Alagoas em 2002. É a foto de uma mulher que agarra um galo pelos pés. Não se vê o rosto dela, apenas as suas mãos e pernas, mostradas a partir de uma saia acima dos joelhos. Sob um pano de fundo de um muro velho e descascado, essa foto em preto e branco, mulher e galo, também com detalhes em preto e branco, formam uma bela tela, onde percebo bastante erotismo. Talvez o galo vá ser morto daqui a pouco, ou não. Mulher, signo-ameaça de castração do desejo. De todo modo, o galo, com sua simbologia masculina e de briga, acha-se em posição dominada momentaneamente, pois a mulher estreita-lhe contra o corpo. Princípio masculino e princípio feminino em estranha harmonia. Princípio selvagem e princípio doméstico de submissão, invertidos, em dança dialética. Tensão e beleza no ar. Em imagem que poderia ser em Cuba, essa foto é um signo inconteste da universalidade da temática de Tiago Santana. Um galo de briga, um galo como oferenda ao sacrifício dos deuses da mitologia afrobrasileira, um simples galo em relação de circunstancial ou definitiva perda da liberdade a caminho da panela, ou quem sabe, menos tragicamente, apenas um galo cheio de virilidade a ser transportado para um novo galinheiro. Em quantas coisas reais e surreais nos fazem pensar as fotografias de Tiago Santana!
« Puisque nous sommes nés » (2008) - fotos: Tiago Santana
Ele já emprestou seu olhar para o cinema e como disse na dedicatória que me fez para o seu livro, dividiu sua vida no sertão comigo e também, espero, com vocês, blog-leitores. Reitero o convite. Foi decididamente uma grande honra penetrar nessa seara íntima e épica ao mesmo tempo: barroca, caótica, atormentada, árida e igualmente, terra de anjos e meninos, como sugere Eduardo Manet no prefácio. De Baleias e de infernos engraçados, qual as crianças curiosas de Graciliano. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Fica uma porção de esperança de melhores tempos e de mais fotos da qualidade dessa safra singular.
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Mione Sales – é professora de Serviço Social (FSS/Uerj), doutora em Sociologia (USP), com estudos em Literatura Comparada (Universidade Paris 3). Pesquisa atualmente Cultura, Comunicação e Direitos Humanos. Contato: mionesales @gmail.com
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Liens
[Associação Pour que l’esprit vive]
[« Sobradinho », de Sá & Guarabira]
[Cena do filme « Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos]
[Cena do filme « Deus e o Diabo na Terra do Sol », de Glauber Rocha]
[« Os três mal amados », de J. C. de M. Neto, declamado por Liminha do Cordel do Fogo Encantado]
[Breve panorama da fotografia de Juan Rulfo]
Mi, me emocionei profundamente com sua crônica. Belíssima! Sua sensibilidade tamanha me fez viajar e relembrar de "Causos" que minha vó me contava sobre como era a vida em sua "terra", Palmerina-PE. Embora lá não fosse sertão, sua vida foi de lutas e sacrifícios... Mas, de passagens, também, de muita esperança, fé, generosidade e dignidade. Tenho comigo um bilhete que ela guardava do Padim Ciço, prescrevendo um remédio caseiro a uma parente sua. Como diz o samba-enredo "Os Sertões", da Em Cima da Hora: "Sertanejo é forte / Supera miséria sem fim / Sertanejo homem forte (bis)/
ResponderExcluirDizia o Poeta assim"... Uma homenagem a todos os sertanejos, na pessoa Antônio Conselheiro, um líder social brasileiro. Amei Mi!! Parabéns!! Bjs. Nelma.
Belas imagens, nos remetem ao Brasil de gente forte e sofrida, rico de sede de justiça e de um povo criativo, que re-inventa a vida todo dia. Vivi 3 meses em Campo Alegre da Lourdes, divisa Bahia e Piaui e vi de perto a mortalidade infantil e a seca. Obrigada por nos proporcionar esta viagem a um Brasil que nao está na mídia.
ResponderExcluirClaudia Correia
Obrigada, Nel e Claudia. Lindo mesmo é ver esse sertão transcendental, que atravessa o tempo e fronteiras e mostra sua universalidade. Tão local e peculiar! Tão nacional! Tão nosso e tão respeitado internacionalmente, ao mesmo tempo. Foi isso, inclusive, que me fez admirar o Tiago Santana: essa capacidade de ir fundo nas suas raizes e fazê-las falar com tanta beleza. Apenas com talento e poesia, sem artificialismos.
ResponderExcluirUm grande abraço às duas e a todos os blog-leitores que nos deram o prazer silencioso de sua visita.