quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Editoria O Efeito Quixote

Mitos, distorções e realidade em torno da liberdade de expressão


                                      Foto: Google



Leandro Rocha*


Antes que o leitor me considere um autoritário defensor da censura, convém explicitar aqui que a intenção deste texto não é compor um tratado sobre os “males da liberdade de expressão” e sim refletir sobre como algumas pessoas e/ou segmentos da população têm distorcido o real significado deste direito, de maneira a justificar e/ou garantir a legitimidade em ações de violações de direitos.

Para iniciar nossa reflexão, vamos partir da conceituação do direito à liberdade de expressão, em que o mesmo é tido como garantia de que o indivíduo e/ou o grupo ao qual ele pertence tenha protegido o seu direito de manifestar claramente suas ideias e sentimentos. No entanto, a liberdade de expressão muitas vezes é tratada como um direito de cunho individual e/ou individualizante, o que acaba fortalecendo a concepção liberal de direito formalmente estabelecido, sem que haja, na verdade, um investimento para que seu amplo alcance seja democratizado. Ou seja, todos têm assegurado o direito a se expressar, porém, nem todos têm acesso aos meios para dar visibilidade à sua expressão.

Um exemplo claro desta afirmação é o tratamento dispensado às outorgas de rádio e TV no Brasil. Enquanto um pequeno grupo de empresas possui a propriedade de grande parte dos veículos de comunicação (inclusive exercendo propriedade cruzada destes), ainda há um processo de burocratização da liberação de autorização para funcionamento de emissoras de rádio e TV comunitária, bem como um processo de criminalização da primeira categoria e a inexistência de política relacionada à segunda.

Dada a importância da descentralização e da regionalização da produção, de forma a contemplar a diversidade cultural da população, é inegável que o incentivo a espaços onde democraticamente sejam garantidos estes aspectos é parte vital em uma configuração de realidade social que efetivamente tenha como norte a liberdade de expressão.

Há ainda a discussão acerca do potencial libertário da internet, com relação à produção e circulação de informação e, consequentemente, de seu estabelecimento como território ideal para o exercício pleno da expressão livre. No entanto, é preciso problematizar que o acesso a este meio no Brasil ainda é limitado a 43% da população, segundo informações do Censo 2010 do IBGE. O que comprova que, ainda que haja uma maior possibilidade de veiculação de informações contra-hegemônicas, tal fluxo não atinge a maioria da população, principalmente os segmentos menos privilegiados na balança da desigualdade social. Estes dados nos trazem a constatação de que, ainda que o espaço internético seja considerado mais democrático do que a maior parte dos canais de comunicação, seu acesso ainda não é. Dificulta-se, desta forma, a exploração de seu potencial pela sociedade como um todo.

Caberia ainda aqui a discussão sobre a instrumentalização da população para a utilização das tecnologias de informação e comunicação, que também tem influência direta no aproveitamento destas tecnologias, incluindo neste rol a internet.

Em momento mais oportuno, discutiremos mais profundamente a questão do monopólio dos canais midiáticos e da repressão aos espaços populares de comunicação, no entanto, os pontos trazidos nos auxiliam na conclusão de que o direito à liberdade de expressão não encontra condições objetivas em nossa sociedade para ser exercido plenamente pela população em seus diversos segmentos e configurações.

De volta ao ponto principal de nossa reflexão, é preciso que estejamos atentos à garantia do exercício do direito à liberdade de expressão, assim como também devemos atentar para que este direito não seja distorcido em prol da negação de outros direitos e/ou de ações de discriminação, agressão ou mesmo de outros delitos e crimes.

Discursos e ações que pregam a intolerância e a violência contra pessoas consideradas por alguns grupos ou indivíduos como diferentes (quer seja por sua etnia, orientação sexual, classe social, origem ou mesmo forma de se vestir) têm sido apresentados sob a égide do exercício do direito à liberdade de expressão e, quando questionados, tentam argumentar que este direito se sobrepõe a vários outros, inclusive o próprio direito à liberdade de expressão e de escolha (conforme o princípio da liberdade e da autonomia) de outras pessoas.

Os casos citados abaixo podem ilustrar melhor a situação e dar um panorama do quão nociva é esta distorção:

1)       Motivada pela revolta com o pleito eleitoral de 2010, em que a candidata Dilma Roussef sagrou-se presidente, uma jovem paulistana publicou em seu twitter a seguinte afirmativa: “Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”. A postagem creditaria a vitória de Dilma aos nordestinos, em razão do Programa Bolsa Família do Governo Lula naquela região, e colocava como solução para evitar coisas do tipo o extermínio desse segmento da população.  Os defensores da jovem alegaram que ela estava fazendo um comentário em sua página pessoal e que não havia pensado na extensão do alcance do mesmo. Também foi alegado que a jovem estava apenas exercendo seu direito de se expressar livremente. No entanto, a justiça considerou pertinente a denúncia apresentada pelo Ministério Público e a jovem aguarda o julgamento por crime de racismo, podendo ser condenada a pena prevista de 2 a 5 anos de prisão e multa (agravados pelo uso de meio de comunicação social ou publicação).




2)       Há também o exemplo do blog, denunciado em setembro deste ano, pela ABLGT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) que incentivava, além da morte de homossexuais, a prática do crime de estupro como forma de “correção de lésbicas”. O blog ainda sugere as técnicas e indica material para a prática do crime. Após a denúncia, a página foi colocada sob investigação.




3)       A discussão do direito à moradia e direito à cidade, tão em voga em tempos da escolha do Brasil para recepção dos megaeventos, passa a ser utilizada como argumentação para o ataque a uma parcela da sociedade que tradicionalmente já tem seus direitos e muitas vezes seu reconhecimento como cidadãos negados.




Os casos são muitos e com questões tão complexas sobre as quais poderíamos trabalhar uma série de artigos a respeito de cada um deles. No entanto, o tema fundamental que os unifica é exatamente a necessidade de se discutir que o exercício de um direito não é motivo para isenção de sua responsabilidade ao exercê-lo, bem como não justifica a negação de outros direitos e/ou a prática de crimes.

O direito à liberdade de expressão, assim como qualquer outro direito, deve ser garantido a toda a sociedade. E, para além da garantia formal, discutido e instrumentalizado, de forma que todos possam fazer uso pleno deste.

Também é urgente que seja feita uma discussão qualificada sobre este direito tão importante, a fim de que ele não seja utilizado, como apresentado nos exemplos acima, de forma distorcida, legitimando ações que, ao invés de promover uma transformação societária pela troca de ideias e impressões, visam apenas propagar o ódio, a violência e o desrespeito pelo próximo.




*Leandro Rocha, assistente e "insistente" social, pós-graduado em Psicologia Jurídica pela UCAM, integrante da Comissão de Comunicação e Cultura do CRESS-RJ. Contato: e-mail: leorochas@hotmail.com.

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