quarta-feira, 13 de julho de 2011

Editoria Caleisdoscópio Baiano

Lições dos povos indígenas





Claudia Correia*



O jornal baiano A TARDE de 30/05/11 noticiou o avanço da Educação Indígena na Bahia na matéria “MEC destaca a Bahia no ensino oferecido em áreas indígenas”, dando conta da existência de 60 escolas indígenas e 7.730 alunos matriculados em aldeias estaduais.

Imediatamente um filme passou em minha cabeça e um sentimento de saudosismo e orgulho me invadiu. Viajei para 1981 quando ainda estudante do 2º ano de Serviço Social na UCsal ingressei na militância indigenista através da ANAI – Associação Nacional de Ação Indigenista. Reuniões noturnas sem hora para acabar, viagens por estradas esburacadas com pouco dinheiro, Projeto de Educação Indígena (Capacitação de monitores para Alfabetização de Adultos e Jovens com base na obra de Paulo Freire), acampamentos improvisados, muitos embates com os governos municipal, estadual e a FUNAI e um grande aprendizado político. Digo sempre que para mim, filha da classe média urbana, ter escolhido o Serviço Social e a militância política por direitos humanos me proporcionou ver o mundo com outros olhos, me humanizou e me deu um senso critico que marcou para sempre minha trajetória.

Nesta época, na década de 80, convivi com os mais respeitados antropólogos e indigenistas baianos entre eles, Ordep Serra , atual dirigente da UFBa e meu orientador do Mestrado em Ciências Sociais na UFBa ( que por imaturidade abandonei em 1984), Maria do Rosário Carvalho, Eduardo Almeida, Pedro Agostinho e muitos outros. Em 1981, na reunião da SBPC sediada em Salvador, participei de uma Mesa redonda sobre os povos indígenas da Bahia e a questão fundiária e fiquei tão impactada que entrei no dia seguinte na ANAI e só me desliguei formalmente em 1990.

Em 1983, ano que me formei, tive o privilegio de representar a ANAI em um Seminário sobre Educação Popular com Paulo Freire, na Diocese de Juazeiro- Bahia, com diversas entidades que atuavam com educação para a cidadania. Lembro que fiquei sem dormir por dias, mobilizada com as discussões e a oportunidade de tomar café e conversar na varanda da Diocese, com o Mestre Paulo Freire. Na época ele estava casado com Elza, um casal simpático, alegre, e de uma sabedoria rara.

A esta altura do curso de Serviço Social eu já tinha lido todos os seus livros e decidi abandonar o curso de Psicologia na UFBa para me dedicar de corpo e alma ao Serviço Social e ao trabalho de organização comunitária, acreditando que ajudaria assim a grande revolução  através do socialismo. 

Foi assim, com estudo, muita troca de experiência com outras  ongs, especialistas , lideranças do campo e da cidade e com muita atenção ao que os povos indígenas tinham para nos ensinar ,que participei do 1º projeto para formação de monitores para alfabetização de adultos e jovens, em 3 comunidades baianas: Pankararé (Glória), Kiriri (Ribeira do Pombal) e Pataxó Hã Hã Hãe (Pau Brasil). O índice de índios analfabetos na Bahia era alarmante. Com este trabalho, muitas lideranças jovens foram reveladas porque passaram a participar além dos treinamentos sobre o chamado “método Paulo Freire” de educar, de muitas assembleias indígenas na Bahia e no Brasil já que estava sendo criada a UNI - União de Nações Indígenas, liderada por Ailton Krenak, de Minas Gerais. Os jovens monitores tinham muitas limitações, decorrentes da formação escolar deficiente, mas tinham também uma vontade enorme de contribuir para a consciência cidadã da comunidade e a descoberta do “mundo letrado”, o que motivava o trabalho. Sem espaços físicos adequados, as primeiras escolas foram abertas em baixo de árvores, em casas de farinha, em palhoças, ao tempo que a ANAI, com o apoio do CIMI- Conselho Indigenista Missionário e das lideranças dois seis povos indígenas na Bahia reivindicavam estrutura, material didático apropriado, reconhecimento oficial da educação indígena e uma pauta extensa de direitos. Algumas comunidades, como a Kiriri, reconquistaram seu território também como fruto deste trabalho de educação política associada à luta pelo direito à terra. Claro que a FUNAI acusou na época a ANAI de subversiva e de ter incentivado e até armado os índios para esta ofensiva. Literalmente, os índios Kiriri reocuparam nos anos 80 o distrito da Mirandela, município de Ribeira do Pombal e conquistaram o direito formal de viver em uma área maior, já urbanizada, que historicamente foi usurpada, conforme comprovou laudos antropológicos.

Li neste período o clássico “Nossos índios, nossos mortos” de Edílson Martins, que retrata o genocídio cometido contra os povos indígenas no Brasil e participei de assembléias com representantes de quase todos eles. No Congresso Nacional , em 1983,em uma destas assembléias para pressionar os deputados e senadores pela regularização das terras, saúde e educação, uma liderança Xavante se aproximou de mim e com curiosidade me perguntou “Qual é a sua nação?” Fiquei muito sensibilizada, estava tão afinada com aquele projeto social que além do meu biótipo, me sentia indígena, mais brasileira, cidadã.

Temos hoje oficialmente 222 povos indígenas no Brasil que seguem resistindo ao avanço do capital sobre seus territórios, com a conivência do governo, e lutando com determinação por políticas públicas.

Livro "Nossos índios nossos mortos", de Edilson Martins



Encontrei algumas referências sobre o livro que me referi:


(...) Na década de 1970, O Globo e o Jornal do Brasil disputavam palmo a palmo a reportagem na selva: a serviço do jornal da condessa Pereira Carneiro, o acreano Edílson Martins passava mais tempo na Amazônia do que no Rio de Janeiro, e o goiano Daniel Lopes brindava a sucursal paulista do jornal dos Marinho com excelentes reportagens. Durante meses, Edílson incursionou na Antropologia e na Sociologia, mostrando casamentos entre índias e brancos capixabas nessa mesma Espigão do Oeste, nessa mesma Cacoal que hoje voltam às manchetes. Também cobriu a guerra entre índios Suruís e Zorós, parentes próximos mas ferrenhos inimigos.”

“Os jovens universitários já teriam lido o livro Nossos índios, nossos mortos, de Edílson Martins”? (Trechos da reportagem “VIOLÊNCIA NA FLORESTA - A reportagem no meio do mato”, de Montezuma Cruz, publicada no site Observatório da Imprensa, em 4/5/2004).

“... O extermínio dos Índios é a morte do conteúdo mais rico de nossa condição humana. A natureza e os índios estão morrendo...".

Enfim, este meu envolvimento me fez compreender a complexidade da desigualdade social e a questão social pelo viés étnico racial. Redefini meus conceitos de povo, nação, território e identidade cultural. Rompi com a concepção romântica do índio genérico da literatura e conheci de perto as condições de vida de brasileiros excluídos, discriminados e invisíveis. O Serviço Social foi se consolidando na minha historia não apenas como uma escolha profissional, mas como um projeto de vida, articulado com o compromisso ético com as demandas da população que tem seus direitos violados. Quando leio hoje a matéria sobre as conquistas no campo da Educação Indígena na Bahia, sinto a prazerosa sensação de ter valido a pena compartilhar minha juventude com os militantes indigenistas, com o Mestre Paulo Freire, com os monitores e alunos das escolas que se espalharam pelo estado anos depois. Como completo 50 anos este ano, é um presente poder fazer este balanço, com a certeza que muitos outros problemas desafiam nós assistentes sociais e outros aliados e que temos de seguir.

 

Histórico e cenário atual

Em 1970, com a criação do CIMI- Conselho Indigenista Missionário, vinculado a Igreja Católica, foi iniciada a luta por uma educação diferenciada para os índios. Na Constituição Federal de 1988 este direito foi assegurado e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 tivemos mais um respaldo para a oficialização de currículos pedagógicos específicos que contemplem tanto conteúdos universais como elementos próprios das culturas indígenas. A lei 11.645/2008 determina a inserção da historia afrobrasileira e indígenas nas escolas tradicionais e até dezembro de 2011 o MEC deve distribuir a todas as escolas quatro obras produzidas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do órgão.

 


Escola Indígena Tupinambá –Ilhéus - Bahia 


Voltando da minha viagem pela década de 80, em 2011, após um longo processo de amadurecimento teórico, metodológico e político dos atores envolvidos na estruturação da Educação Indígena na Bahia, colhemos alguns frutos por aqui. Ao todo são 99 aldeias onde vivem os 14 povos indígenas da Bahia.

 


Professores indígenas são capacitados pela Uneb 


Na Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha (727 km de Salvador) estudam 870 índios da comunidade de cerca de 5 mil pessoas. Ao todo são 60 escolas onde estudam 7.730 índios e não índios. A Secretaria Estadual de Educação criou uma Coordenação Geral específica para tratar o tema e a Bahia se projeta no cenário nacional por ter criado em 2007 um curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena que capacita os 327 professores que atuam nas aldeias.

A Coordenadora de Educação Indígena da Secretaria Estadual de Educação é a índia Tuxá Rosilene Araújo, da comunidade de Rodelas, há 555 km de Salvador.

A Assembleia Legislativa da Bahia aprovou a Lei nº 18.629/2010, inédita no País, que institui a carreira de Professor Indígena no quadro do Magistério Público estadual. A proposta, encaminhada pelo Governo da Bahia, foi construída coletivamente pela Secretaria da Educação (SEC) e os movimentos indígenas. A Secretaria da Educação vem investindo na formação de professores indígenas. Desde 2007, a Coordenação de Educação Indígena mantém um programa regular para atender aos professores em suas comunidades. São 115 docentes concluindo, no primeiro semestre de 2011, a formação inicial de Magistério (nível médio) específico para docentes indígenas.

Na formação de nível superior, 108 professores indígenas estão fazendo a Licenciatura Intercultural na Uneb e outros 80 professores no Ifba em Porto Seguro, uma parceria da SEC e o Ministério da Educação com as duas instituições de ensino. Mais 200 professores também cursam a formação continuada de ensino fundamental (séries finais) e ensino médio. A formação vem acompanhada da produção de material didático específico para os estudantes indígenas. A SEC, em parceria com o MEC, produziu e distribuiu material para as 62 escolas indígenas do estado. Os conteúdos foram elaborados pelos próprios professores indígenas.

Claro que novas demandas surgem, as dificuldades aumentaram para a garantia de recursos públicos e as condições de trabalho dos professores são precárias. Mas, o fato é a que as conquistas obtidas são frutos da mobilização dos índios e da aliança com outros atores sociais. Fechei o jornal com a nítida sensação que este é o caminho para um Brasil plural, dos brasileiros.


* Claudia Correia - Assistente social, jornalista, profª da ESSCSal, Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br

2 comentários:

  1. Fiquei feliz em saber disso! É realmente uma sensação de que este é o caminho para um Brasil plural...
    -'Ainda que as condições de trabalho dos professores sejam precárias', o legal e importante é ver a mobilização e o empenho deles! (Professores e Indígenas)

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  2. Tenho convicção de que ler sempre vale. Ler e se arrepiar mais do que vale!

    É a provocação do encontro perfeito entre o conhecimento e o prazer! A Epistemologia e a Estética se fundindo e fazendo valer duplamente o momento da leitura.

    Relatos como este e pessoas como você fazem continuar crendo que vale à pena continuar...
    Um enorme prazer ler este texto e uma grande honra poder trabalhar ao teu lado. Vida longa!

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