Como já aconteceu outras vezes, em que tivemos a colaboração de amigos brasileiros ou franceses, como Jacqueline Beaulieu, Soraya Minot e Maurílio Matos, desta feita a convidada da editoria Volta do Mundo é a professora Elaine Rossetti Behring. Desde jovem, Elaine Behring interessa-se por temas como a questão judaica e a Segunda Guerra Mundial. Seus anos de militância na antiga corrente Democracia Socialista e de liderança estudantil no Rio de Janeiro refinaram ainda mais a sua curiosidade quanto às relações políticas internacionais. Em 2011, ela chega em Paris para o seu pós-doutorado justamente no aniversário dos 50 anos de mais uma importante página da história de tensões na luta pela independência da Argélia (1954-1962). A editoria Volta do Mundo, Mundo Dá Volta não podia se furtar a compartilhar com seus blogleitores esse duro, porém importante relato.
Outubro. 1961.
o silêncio sobre a repressão à resistência argelina em Paris
Elaine Behring*
Viver na França é se deparar com grandes paradoxos. É evidente que todas as nações têm suas contradições, suas marcas históricas, seus conflitos de classe. Afinal estamos no capitalismo, na modernidade de discordâncias de tempos, e em plena crise. Tenho me dedicado a falar do Brasil e de seu drama crônico, como dizia Florestan Fernandes, da imensa desigualdade, da heteronomia como marcas históricas. Mas neste breve espaço me dedicarei, a convite da editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta, a traçar livremente, sem maiores pretensões acadêmicas, algumas impressões dessa experiência francesa, que tem me permitido conhecer um pouco mais sua imensa contribuição para a humanidade, mas também suas mazelas e eventos históricos onde prevaleceram os desvalores.
A revolução francesa, segundo Délacroix
Temos a França moderna e republicana – tous ensemble! – da destruição à mão e marretas da prisão da Bastille em 1789, passando pelas revoluções de 1848, pela Comuna de Paris de 1871, pela heroica (e predominantemente comunista) Resistência ao nazismo, pelo Maio de 1968, até as manifestações contemporâneas em defesa dos direitos, contra a precarização, a deslocalização, o racismo. Está na pauta atual do país uma extensa agenda de reivindicações e de lutas, profundamente imbuída do melhor espírito humano-genérico, contra todas as formas de exploração e opressão de classe, de gênero, de orientação sexual, contra a finança e a mundialização, e muitas vezes de nítido cariz anticapitalista. Mas existe outra França menos cercada de luzes, de humanismo ou de glamour gauche. Trata-se da França que se move à droite, profundamente individualista, intolerante, racista e hipócrita, já que muitas vezes camuflada sob a polidez formal.
Podemos lembrar do episódio histórico de mais difícil elaboração ontem e hoje: a colaboração com o nazismo do regime de Vichy, de Pétain. Os documentários, romances – e destaco aqui a Suite Française de Irene Nimorevsky - e tratados acadêmicos; os museus, as placas em todas as escolas em alusão ao envio de crianças judias (cerca de 11000) para os campos de concentração; tudo isso não permite esquecer, mas nada disso foi suficiente para dizer nunca mais. Isto porque existem episódios históricos ulteriores sobre os quais a França majoritariamente prefere desviar os olhos, que não entram nos compêndios das escolas, que se fala em voz baixa. Um desses episódios aconteceu em Paris, no dia 17 outubro de 1961.
Octobre Noir
Em 2011, ocorreram na França vários debates, lançamentos de filmes, livros e bandes dessinés (BDs, ou quadrinhos para nós, e que entraram definitivamente na minha vida após essa temporada francesa), em memória dos acontecimentos que passo a descrever, que tiveram lugar há cinquenta anos. O contexto de fundo é a luta pela independência da Argélia, cujo desfecho ocorre apenas em 5 de julho de 1962, data que marca a conquista pelo país de sua autodeterminação. Desde 1954, a Frente de Libertação Nacional (FLN) junto a outras organizações, especialmente o MNA (Movimento Nacional Argelino), trava um duro combate armado contra a presença francesa em seu país. Um registro cinematográfico indispensável da luta argelina é o premiado filme A Batalha de Argel (Direção de Gillo Pontecorvo, 1966).
Mas, vamos ao evento que nos moveu a escrever este breve artigo. Onze dias antes do dia 17 de outubro de 1961, o chefe de polícia de Paris, Maurice Papon, decretou um toque de recolher, aconselhando os argelinos ou africanos do norte a não circular pelas ruas entre 20:30 e 5:30 da manhã, especialmente em grupos, sob pena de suspeição pela polícia. No mesmo decreto, os bares e lugares de venda de bebidas frequentados por argelinos deveriam fechar às 19:00. Não é ocioso lembrar que Papon foi um oficial do regime de Vichy que colaborou intensamente com o nazismo. Seus desmandos durante a ocupação nazista na França vieram à tona tardiamente. Apenas em 1997 e 1998 Papon foi condenado por crimes contra a humanidade.
Mas, prossigamos. A FLN decidiu organizar uma manifestação pública contra essas medidas a partir de seus militantes em Paris e dos milhares de trabalhadores argelinos em atividade na cidade-luz, habitantes de Belleville, de Menilmontant, e de quartiers mais distantes, em condições bastante precárias. São impressionantes os registros de época das habitações e condições de vida desses trabalhadores. Se as medidas de Papon convidavam ao confronto - e elas foram efetivamente seu leitmotiv de massa - as organizações que faziam parte da mesa de negociações da independência da Argélia tinham também a intenção de pautar a questão e envolver de forma mais contundente a esquerda francesa na causa, tendo em vista fazer pressão por acordos mais favoráveis, já que naquele momento a independência parecia quase inevitável.
No dia 17 de outubro, num início de noite fria e chuvosa de outono, porém, milhares de homens (majoritariamente, como mostram os registros fotográficos e fílmicos) e mulheres argelinos colocaram-se em marcha pelos grandes Boulevards, vindos das estações de metrô e RER. Os relatos de testemunhas – especialmente das mulheres - são emocionantes: as pessoas se arrumaram como para uma festa, para um dia importante de suas vidas. E andavam em enormes grupos num indignado silêncio pelas ruas de Paris, sem gritos, sem faixas, sem pirulitos. Apenas a sua presença massiva, pacífica – mas não passiva - e terrivelmente inquietante.
As forças de segurança, com destaque para a CRS, famosa pela truculência e pelo racismo ontem e hoje, foram implacáveis. Lançaram-se sobre os manifestantes de forma brutal, com cacetetes, gás lacrimogêneo e metralhadoras. O documentário Ici on Noie les Algerien (Yasmina Adi, 2011) – [Aqui afogam-se os argelinos] mostra com ampla pesquisa de documentos e imagens a coordenação da polícia francesa frente à manifestação, deixando claro que os acontecimentos não se relacionavam a excessos pontuais da polícia, mas a uma violência coordenada, racional e focada.
Foto mureta do rio Sena
Foram presas oficialmente naquela noite 11.538 pessoas. O Estado Francês reconheceu apenas dois mortos e sessenta e quatro feridos... Contudo, testemunhos da época e as famílias dos desaparecidos e mortos não permitem tamanho esquecimento cínico. Foram ouvidas as metralhadoras disparadas sobre os argelinos próximos ao famoso Cinema Rex. Foram vistos sete corpos de argelinos carbonizados em um carro da polícia no Boulevard Bonne Nouvelle. Houve testemunhos de pessoas que viram as vítimas sendo jogadas já feridas no rio Sena para que se afogassem: corpos que foram encontrados apenas a quilômetros rio abaixo durante os dias e meses seguintes. Números não oficiais franceses falam de 140 mortos. A FLN reivindica cerca de 200 mortos, 400 desaparecidos – que podem ter sido enviados para a Argélia após a prisão - e 2300 feridos. Os presos foram levados para o Palais des Sports (onde ocorreria show de Ray Charles nos dias seguintes). Lá eles foram interrogados, e muitos foram provavelmente torturados – há depoimentos que explicitam esse procedimento no filme supracitado - e vários foram expatriados para a Argélia. Se observamos atentamente as imagens do documentário, parece- nos que os números da FLN são mais factíveis, sobretudo de feridos. As imagens mostram muitos homens feridos nas ruas, no Palais ou entrando nos aviões fretados para levá-los para a Argélia. As cenas são tocantes, pois a expressão, o olhar desses homens é de profunda tristeza.
Corajosamente, logo após esse dia, mulheres e crianças argelinas fizeram novamente uma manifestação, agora em busca de seus maridos, irmãos, amigos, sendo reprimidas novamente, mas não da mesma maneira. É importante registrar que a repercussão na imprensa local e internacional esteve aquém dos reais acontecimentos, mas dada a proporção de presos e a expressão mundial da guerra da Argélia, não poderia existir mais uma sequência sangrenta.
Na verdade, um novo acontecimento do gênero, mas de bem menores cifras, aconteceu em 8 de fevereiro de 1962, conhecido como o massacre de Charonne. Ali morreram 9 pessoas na repressão policial realizada na estação do metrô de Charonne, em Paris. Elas buscavam refúgio da brutalidade policial desencadeada novamente por Papon, mas com o aval de De Gaulle (tal como no ano anterior), sobre uma manifestação convocada pelo PCF e outras organizações da esquerda francesa em solidariedade à independência da Argélia, a qual ocorreria dali há quatro meses. Os acordos que se seguiram à independência da Argélia não fizeram qualquer referência a esse episódio tão pouco republicano da história francesa.
Por ocasião, portanto, dos cinquenta anos do Octobre Noir - [Outubro Negro], título de uma importante BD de Daeninckc e Mako, com prefácio de Benjamin Stora, lançada em 2011 -, parece existir finalmente uma vontade coletiva de elaboração, de ruptura do silêncio e do esquecimento, de ocupação do espaço público. Essa elaboração vinha lenta, acontecendo aos poucos, desde 1998 com o processo de Papon pela deportação de judeus franceses para os campos de concentração, e breves momentos públicos locais de reconhecimento de vítimas, a exemplo de placas e nomes de ruas.
Os 50 anos dos acontecimentos permitem que a França retire os esqueletos do armário (ou seria do rio Sena?), por meio de intensos debates, filmes, livros. Mas isso ainda não significa acalmar definitivamente a memória dos feridos. Até porque mesmo que a Argélia tenha se tornado um país independente, a presença argelina na França segue sendo muito forte, e as tensões irrompem de outra maneira, não como opressão de um país sobre outro, mas com um componente de classe e racial. Especialmente após um largo período de governos de direita, com todas as suas consequências sociais nefastas, com destaque para o desemprego. Os argelinos, afinal, permanecem compondo a força de trabalho na França.
O ódio
Foto divulgação do filme: “La haine” (O ódio)
Este pode ser o caso da última situação que consternou a França: o assassinato de sete pessoas, três militares e três crianças e um professor de uma escola judaica. O protagonista do ódio é um descendente de argelinos que aderiu à jihad islâmica e se arrepende apenas de não ter matado mais pessoas na sua vingança sobre as forças militares francesas e sobre a política francesa a respeito da Palestina. Trata-se de um desempregado, com sete processos ao longo de seus curtos 24 anos, e duas prisões.
É evidente que existem novas mediações para interpretarmos a atitude deste jovem sem perspectivas, e cujo vazio é ocupado pelo ódio. Mas perguntamos: não pesaria inconscientemente sobre sua opção bárbara a violência que vem do passado? Este inconsciente coletivo originário possivelmente se combina a tantas outras opressões do presente, tão bárbaras quanto as escolhas feitas por este Mohamed: o racismo, o desemprego que atinge 25% dos jovens franceses, especialmente imigrantes e moradores das banlieues, a desconfiança da política como forma de solução dos seus problemas. O fato é que o peso das decisões bárbaras do passado pode explodir em situações individuais e coletivas no presente, temperadas pelas novas e complexas mediações geopolíticas, econômicas e culturais que tornaram este mundo mais duro de viver nas últimas décadas.
Alguma saída?
Ilustração: Torre Eiffel, Paris.
Meu objetivo nesse espaço é o de fazer uma breve reflexão sobre este belíssimo e complexo país onde tenho vivido desde agosto de 2011, a partir do contato com a questão argelina, cujo meu conhecimento antes disso era muito pequeno. Essas contradições gritantes estão neste momento em franca disputa de destino, nas eleições presidenciais ou nas ruas.
Algo interessante é a homenagem que neste momento se faz a Rousseau na Assembléia Nacional numa exposição de seus manuscritos, lembrando a sua inspiração para a Revolução Francesa, especialmente a ideia de revolução. Para ele havia passado a fase das revoltas e viria uma era de revoluções. Elas vieram, burguesas, e aprofundaram o componente de barbárie da modernidade. Vieram também socialistas, mas ora isoladas ora atravessadas por contradições que levaram a processos de restauração. Foram incapazes, assim, de realizar um projeto moderno de outro sentido.
A questão que pretendo suscitar, inspirada no melhor de Rousseau e, sobretudo, na tradição socialista, é exatamente essa: a superação do ódio e da barbárie só pode vir de uma nova era de revoluções, embebida do aprendizado duro dos séculos XIX e XX. Senão, teremos novos e mais tenebrosos episódios como esses, desencadeados por indivíduos ou por Estados.
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Elaine Rossetti Behring – é assistente social, doutora em Serviço Social (UFRJ) e professora da Faculdade de Serviço Social (UERJ). Desde agosto de 2011, está realizando pós-doutorado em sociologia no CRESPPA – Université de Paris 8.
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LINKS
(“A Batalha de Argel”, crítica de Marcelo Janot a esse cult filme).
(Entrevista com o historiador Benjamin Stora)
(Trailer do documentário “Ici on noie les Algériens” – Aqui afogam-se os argelinos)
(Artigo sobre a HQ Sob as sombras de Charonne)
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