quinta-feira, 8 de março de 2012

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Tenho em mim todos os sonhos do mundo…

  
Mione Sales*

  


Mulheres do século passado: direitos por conquistar…
 
 

Em 1929, a escritora inglesa Virgínia Woolf escreveu um pequeno livro que se chamava Um quarto só seu [A Room of One’s own]. Vim conhecê-lo estudando Literatura Comparada em Paris. O título é provocador. A autora reivindicava o direito de que as mulheres – sobretudo as escritoras – tivessem um quarto só  para elas, onde não fossem importunadas pelas tarefas domésticas, marido e crianças. Num primeiro momento, esta demanda soou-me bastante individualista e não deixa de ser, mas as provocações fornecem-nos boas ocasiões para refletir.

 Virgínia Woolf, perto de outras mulheres do seu tempo e mesmo do nosso, era uma mulher privilegiada. Casou-se com um homem que fundou junto com ela uma editora, a Hogart Press. Leonard Woolf a amava muito, deixando-lhe toda a liberdade que ela reivindicava. Antes de casar e mesmo depois, Virginia Woolf integrou o grupo de Bloomsbury, um grupo de intelectuais e artistas britânicos, que se reuniam regularmente, inclusive na antiga casa em que morava com os irmãos Adrien e Vanessa Stephen.  Keynes, o famoso economista que desempenharia um papel-chave nos debates e desenrolar do Estado de Bem-Estar Social, pós-crise de 1929 e Segunda Guerra Mundial, também fazia parte desse grupo.

Virgínia era uma mulher culta, com hábitos pouco convencionais para a época e sobretudo possuía uma alma inquieta. Ela será no começo do século XX uma das responsáveis por uma escrita não apenas feminina, mas também evocadora da subjetividade. Uma de suas técnicas preferidas era o monólogo interior. Lia-se o que se passava na alma dos seus personagens, o que os atormentava. Abandonou-se, assim, a partir de Woolf, o excesso de descrições externas que tanto entusiasmou autores de obras socialmente densas como Balzac. Com Woolf, ia-se diretamente ao centro nevrálgico do drama. Enxergava-se os personagens por dentro e não apenas em tomadas panorâmicas.  Só mesmo lendo e comparando os estilos, para se dar conta da pequena revolução literária silenciosa que ali se operava. Nem é preciso dizer que Balzac, Zola e outros grandes do gênero continuam ainda hoje a revelar facetas da complexa sociedade e época em que escreveram, mas Woolf, Proust e Wilde inscreveram também os direitos da intimidade no panteão da literatura universal.


 
A escritora Virginia Woolf

 Podemos estender essa revolução para o campo dos costumes. Woolf reivindicava direitos para as mulheres no terreno da cidadania e da individualidade moderna, alguns ainda hoje nem tão banais assim: o direito das mulheres viajarem sozinhas em nome da abertura de espírito, o direito de sentarem sozinhas no terraço ou esplanada de um restaurante – acrescentamos: sem serem importunadas ou discriminadas -, permitindo-se o tempo de refletir, o direito de se instalar na grama de um parque tranquilamente para fruir e deixar brotar novas ideias, e mesmo o direito de frequentar bibliotecas. 
Mas voltemos ao  polêmica tema do quarto. Certa vez, quando morava no Rio de Janeiro, fiz um curso de Arte e Educação aos sábados. Na ocasião, desenvolvi uma amizade com uma jovem de classe média que era casada e tinha dois filhos. Quem fez ateliês de Arte e Educação sabe que trabalhamos ali várias linguagens simultaneamente: sensorial, escrita, corporal  e criativa. Produzíamos, então, alguns objetos. Um dia, terminada a aula, falamo-nos e vimos o que cada uma havia produzido. Eu me preparava para ir embora, levando comigo minha pequena « obra  de arte ». Perguntei pela sua, que me respondeu que não ia levar. Indaguei o porquê. Ela me respondeu: « eu não tenho nenhum lugar para mim em casa. Fora a sala, tem o quarto das crianças e o meu quarto com o meu marido ». Não adiantou eu ponderar. Ela foi embora, deixando um pedaço de si para trás. Fiquei muito impactada com aquilo. Uma « mulher-mãe » não cabia na sua própria casa. Não tinha nenhum espaço que pudesse reivindicar como seu ou mesmo o direito de misturar suas coisas aos livros e brinquedos dos demais habitantes.

Na época, eu tinha uma relação amorosa duradoura, que fugia do padrão sexual dominante e não vivenciava absolutamente esse tipo de questão. Nem outras que também tomei contato participando de um grupo terapêutico voltado para « Mulheres Adultas ». Os temas femininos recorrentes eram o do direito a serem elas mesmas, a ultrapassar a invisibilidade, a serem respeitadas e levadas em conta por filhos, maridos e parentes.

Hoje, quando tenho marido e filha, consigo demarcar meus territórios no grande espaço comum que é uma casa de família. Não é nada evidente, claro. Envolve muita sensibilidade e negociação, inclusive atenção para não invertermos as coisas e oprimirmos também o masculino. A construção amorosa heterossexual está calcada em fricções de alma ancestrais, energéticas e também nas históricas divisões sociais do trabalho. Mesmo quando se tem um « puta » companheiro, sobram questões para o campo social e cultural, sobre o que pretendo falar no próximo item.



   Se introduzi esse tema aqui é porque a liberdade de escolha, o direito à privacidade e o respeito pelo que é seu, independentemente do que quer que seja : sua fala, seu gosto, seu tempo e ritmo de fazer as coisas, seu modo de apreender o mundo estão longe de ser um direito assegurado a todas as mulheres. São demandas da alçada da individualidade, de potência universal e nada reformistas. São  demandas da esfera das necessidades radicais, as quais podíamos flagrar também nas cartas de Rosa Luxemburgo para o seu camarada e amante, Leo Jogiches. Muitas mulheres, no entanto, assim como muitas militantes nem se questionam a respeito. Submetem-se aos ritmos coletivos por vezes massacrantes da máquina-trabalho, da máquina-família ou mesmo da máquina-partido. Prevalece, portanto, uma desconfiança sobre o tema do descanso da mulher. A mulher deve estar, pois, segundo uma lógica conservadora, disponível full-time e a serviço dos filhos, marido e estruturas sociais mais amplas das quais faz parte.
Seu ócio criativo é o menos respeitado de todos, assim como seu silêncio e sua solidão. Claro que há momentos coletivos e familiares deliciosos, mas como diz a canção de Lenine, tem horas que « a alma precisa de um pouco mais de calma », no entanto a vida não para, não.


Mulheres do século XXI: desafios às insurgentes “cidadãs do mundo”

 
  “Venho do século passado e
Trago comigo todas as idades”.


CORA CORALINA

 Se muitas mulheres permanecem encerradas em contradições seculares, medievais, rurais e sexistas em pleno século XXI, outras têm lutado toda uma vida para conquistar direitos e permanecem fazendo-o para si e suas congêneres. Tais mulheres aproximam-se o mais que podem da vivência da igualdade de gênero, embora existam elementos que parecem mesmo ser intransponíveis.  O que intelectuais pós-feministas acolhem, sem pesar, como componentes femininos, sem o peso do acento naturalista e conformista de outrora – sobre o qual continua a insistir em suas críticas Elisabeth Badinter - ou das polêmicas misóginas freudianas, mas como uma dimensão potentemente resignificada, empoderada.
Ser feminino tornou-se um direito inclusive dos homens, heterossexuais ou não. Por isso, Judith Butler refere-se ao « trouble dans le genre », às turbulências no campo da sexualidade, que deixou de ser rígida. Há indivíduos que nascem homens, mas sentem-se mulheres por dentro e vão lutar vida afora para juntar corpo e alma. O inverso também acontece: mulheres nascem num corpo que lhe é estranho, preferem a identidade masculina e vão lutar para encontrar a justa adequação. Hoje em tempos de direitos sexuais, tudo isso é possível, inclusive com o auxílio luxuoso da medicina.

No entanto, homens e mulheres que persistem em suas escolhas de gênero clássicas são sacudidos por múltiplas pressões internas e externas ao casal e à família. Isto explica por que a crise econômica desfaz tantos casamentos. A pressão então atinge a carga máxima e humanos que somos, cedemos, nos rendemos, jogamos a toalha. Outros, não. Encontram formas cúmplices de reinventar o cotidiano, de partilhar tarefas repetitivas e estafantes, de se fazer homens e mulheres « tudo-junto- ao-mesmo-tempo-agora ».



Assim, é importante dizer que nem os novos acessos à educação, à cultura e às novas tecnologias, principalmente a internet, são suficientes no sentido de propiciar novas alternativas às mulheres. Nem mesmo uma fruição mais inteira do prazer e da sexualidade. Sem todas essas possibilidades, é claro, o florescimento do intelecto, do espírito e do corpo não seria pleno, mas a emancipação requer também o solo firme do trabalho, ainda que num mundo em total transformação. Direitos são desconstruídos, novos demoram a se configurar. Um velho mundo rui, enquanto outro se eleva rapidamente, bem mais competitivo, movido a intensas cargas de trabalho, a pesada extração de mais-valia relativa e a  novos conflitos e disputas entre as gerações. “Que tempo mais vagabundo esse que escolheram pra gente viver?”, cantava o poeta Cazuza.
Torna-se mais duro em muitos casos optar por ter uma vida com companheiro e filhos.  Toda interrupção do trabalho, sobretudo para as mulheres, pode ter consequências drásticas para as carreiras. O individualismo e a hipercompetitividade se acentuam. Como ser dois ou mais nesse universo, num contexto em que já é tão difícil ser um? A globalização desnuda-se cada vez mais, mostrando que se trata mais da liberdade das mercadorias que dos trabalhadores. Ser homem ou mulher, estrangeiros e à procura de trabalho consiste em tarefa hercúlea, de grande envergadura, empalidecendo os atrativos e os néons da nova ordem mundial.

Quem sabe, os mais jovens venham já talhados para as cada vez mais ásperas formas de competição e a respectiva velocidade dos processos de trabalho.  Como já antecipava a canção Sinal Fechado, de Paulinho da Viola: « Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro e você ?… Me perdoe a pressa. Eu também só ando a cem… ».  

Vê-se assim que as demandas do movimento feminista se complexificaram. Há os atávicos problemas de violência conjugal  e a luta por direitos da mulher na sociedade, em que todas as campanhas de prevenção e esclarecimento são fundamentais. No entanto, desde que vim morar na Europa, dou-me conta de que, mesmo num contexto de superação de velhas formas de viver a dois, com menos sexismo e mais direitos,  a vida das mulheres e também dos homens  em família permanece bastante dura. As necessidades do cotidiano constituem, pois, exigências imperativas em matéria de necessidades sociais e culturais, a requerer novas formulações societárias. Quando se inventa tantos objetos inúteis para o puro divertimento, fico pensando no quanto homens e mulheres poderiam se desincumbir individual, a dois e coletivamente, da dura esfera doméstica. As conquistas tecnológicas nesse campo, é preciso dizer, ainda não são suficientes. Este é um campo a ser reinventado humanamente e investido coletivamente do ponto de vista econômico.




Fora isso, tenho que concordar com Virgínia Woolf, quando do seu lugar de escritora e intelectual, aspirava frente ao dilema de emancipação das mulheres e face às suas evidentes, incontornáveis e vultosas dimensões materiais, dizia: entre o direito ao voto ou acesso ao dinheiro, ela sentia-se tentada a preferir este último. Contra qualquer leitura cínica a seu respeito, até porque a autora não tinha nenhum problema de ordem financeira, pode-se enxergar aí muito mais a ansiedade de que as mulheres pudessem se libertar, de fato e sem tanta demora, de velhos grilhões patriarcais, com vistas a usufruir da tão propalada autonomia e emancipação femininas, por inteiro.

 A muitas de nós, mulheres do século XXI,  cosmopolitas, cultas e exigentes, falta, em especial em contextos de crise, o direito ao trabalho ou melhores condições de trabalho.  É ainda por esta velha aspiração que os sinos dobram. É ainda nesse terreno que nossos passos são encurtados. Para todas aquelas mulheres que têm tanto sonhos que precisariam viver pelo menos cento e cinquenta anos, não se deseja o mesmo destino trágico e inconformado de Woolf nem o da poetisa argentina Alfonsina Storni que preferiram abandonar seus ideais e suas vidas em meio às águas.

Lutemos e nos organizemos por um modo de vida mais libertário para homens, mulheres, lésbicas, homossexuais e transexuais, mas não esqueçamos que a matéria vida, tão fina, funda-se sobre a emancipação, cuja componente determinante, mesmo nos dias de hoje, continua a ser de ordem material. É sobre o direito ao trabalho e a um salário justo que se ergue a liberdade das mulheres. Não se pode negar nem tergiversar.

É preciso fazer por onde muitas mulheres não mais repitam os versos do poeta português Fernando Pessoa: « Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”, preferindo, em contrapartida, a  potente estrofe também pessoana: “à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo ».

Resistir é criar!  Criar é resistir!
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Mione Sales - é doutora em Sociologia (USP), professora da FSS/Uerj e tem M1 em Literatura Comparada (Paris 3 Sorbonne).

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Links
http://youtu.be/D8d_RHTFRik
(Poema « Tabacaria », em interessante versão teatral)

(« Paciência », Lenine)

(“Sinal Fechado”, Paulinho da Viola)


3 comentários:

  1. Belo texto.
    Nos provoca a pensar nos dilemas feministas contemporâneos e nos convida a nos lambusarmos de teoria, filosofia e empiria.

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  2. Obrigada pelo comentário, Suenya. Serve de norte para outras incursões no mundo da cultura! Forte abraço.

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  3. Mimi,
    palavras, ideias e imagens lindas e inquietantes. Parabéns!
    Beijos, Sandra

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