quinta-feira, 21 de junho de 2012

Editoria Jornalismo na Correnteza

Rio+20: sustentando a propaganda



Que ironia o Rio ser a sede-referência do debate sobre meio ambiente no mundo! “RIO, CAPITAL DA BICICLETA”, diz o site da prefeitura, que garante que temos a maior extensão de ciclovia do país, a segunda maior da América Latina. Vale a pena conferir (http://www.rio.rj.gov.br/web/smac/exibeconteudo?article-id=1534031). O mapa da prefeitura não mostra as “ciclofaixas” atravessando calçadas tomadas pelas raízes das árvores, na Mena Barreto, ou pelos carros, em várias partes da cidade. Nem as que passam rente à porta do hospital público, ou na calçada do supermercado.




O cinema norte-americano, por aqui, ia adorar uma comédia com perseguições em bicicleta, em vez de carros. Não ia faltar lugar para os personagens jogarem um cara de perna engessada pra cima, explodir bolsas de supermercado, se esborrachar numa árvore que toma a ciclovia, atropelar carrinho de criança, ou voar por cima de um fileira de carros estacionados sobre a ciclovia.

Na General Polidoro, a ciclovia (um dos poucos trechos aparentemente de verdade, feita na rua, não na calçada) toma toda a frente do Hospital Pró-Cardíaco. No site do hospital, informam que o cliente “tem como opção o estacionamento GPark”. Pago, evidentemente! Onde será que o pessoal prefere estacionar?



Mesmo no mapa da prefeitura dá pra ver que a preocupação é só com a quilometragem. Uma linha aqui, outra ali, com alguns quilometro, no meio, que o ciclista pode atravessar na base do “dá seu jeito!”



Sem problemas, se você não é bom em “dar seu jeito”, é melhor nem ter bicicleta. Que se danem as bicicletas! A prefeitura vai resolver o problema de transporte com ônibus. Tem obra pra todo lado, os ônibus mudaram de cor e de número, os pontos mudaram de lugar. Até agora, o resultado mais evidente é um monte de passageiros enlouquecidos, tentando adivinhar seu ônibus a tempo de dar sinal a tempo do motorista sair da terceira pista em que se encontrava, a 80km/h, e parar a 100 metros do ponto. Isso, claro, se ele estiver de bom humor.

Os ônibus continuam cheios, a não ser que você esteja totalmente no contra fluxo. Passando nos intervalos que bem entende a empresa e o despachante e dando voltas absurdas para completar seus trajetos juntando o maior número possível de passageiros.


E viva o fordismo!



Enquanto isso, o governo federal baixa, de novo, o imposto sobre a compra de carros. Mais carro na rua! A indústria automobilística agradece. Nossos pulmões que se virem! Principalmente se você for louco o suficiente pra preferir circular pedalando uma bicicleta e abrindo seus pulmões para os escapamentos dos carros.

E, como a palavra de ordem é "desenvolvimento econômico", como nos tempos de Juscelino, a presidente "ajeita" o código florestal para agradar gregos e troianos, ou melhor, empresários e coronéis. As florestas que se virem, como os ciclistas, se pretendem insistir em sobreviver à sombra do "desenvolvimento industrial".




Como já exaltava Tom Zé em Parque Industrial:





Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
Tem garotas propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz
Basta olhar na parede
Minha alegria num instante se refaz
Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar e usar
É somente requentar e usar
O que é made, made, made
Made in Brazil
O que é made, made, made
Made in Brazil
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear e usar
É somente folhear e usar
O que é made, made, made
Made in Brazil
O que é made, made, made
Made in Brazil
O que é made, made, made
Made in Brazil
Made in Brazil


E como o que importa é a imagem...

  


O prefeito decretou feriado para o serviço público e para a educação. A TV informa: nos dias da Rio+20 é melhor evitar ir para o Centro da Cidade. Quer dizer, estamos convidados a deixar a cidade, ou ficarmos quietos em casa. E, como não é para nós, cariocas, os ônibus vão funcionar com a frota máxima. Ainda vão ser criadas duas ou três linhas especiais. Só assim os gringos poderão ver que o Rio é “a melhor cidade do mundo para se viver” (isso também é conversa do site da prefeitura).

Eu não reclamo. Adoro feriado. Mas será que dava para manter a frota máxima para nós, depois, e não reduzi-la a menos da metade nos fins-de-semana?


                                           China em 1970

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*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net), professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.

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DICA:

PARQUE INDUSTRIAL - TOM ZÉ

sábado, 2 de junho de 2012

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta


América Latina
Pelas veias abertas da literatura



« (…) a verdadeira coincidência da sociedade e do ser humano requer
uma visão trágica, quer dizer, uma visão de conflito e reconciliação,
oposta à visão maniqueísta que regeu a história moderna,
visão de pecado e extermínio ».

[Carlos Fuentes]

Mione Sales*

Pensei em homenagear os ASSISTENTES SOCIAIS (cujo mês comemorativo: maio, vem de acabar agorinha) com algo diferente. Os diversos eventos pelo Brasil afora supriram meus colegas com o melhor da teoria, da política e da questão social. Então, insistir nesse viés seria, ao meu ver, um pouco como chover no molhado. A morte do escritor mexicano Carlos Fuentes (1928-2012), falecido no dia 15 de maio, forneceu-me uma comovida inspiração:  por que não reclamar o nosso pertencimento à América Latina e a essa condição de hermanos, embora sejamos o único país do continente que fala o idioma português? A língua espanhola nos separa, mas quantas coisas nos unem! Mário de Andrade evocou-as em grandes gritos no seu Macunaíma.  

Sim, somos loucos por ti, América Latina, apesar das guerras, da diferença de língua, de sermos psicologicamente mais próximos da Flórida e de Miami do que da Venezuela. Sim, fomos, sobretudo desde a ditadura militar, colonizados culturalmente pelos que dominaram Cuba nos anos 50 e dela foram expulsos pela revolução em 1959. Sim, nosso coração e sociedade de massa são paradoxalmente norte-americanos, antes de serem latino-americanos. Sim, tentamos reverter o atraso de mais de quinhentos anos, absorvendo, nas últimas décadas do século XX, ondas e mais ondas de igrejas pentecostais, evangélicas e protestantes, como uma maneira de nos reformarmos. « O Brasil ainda há de ter conserto! », pensam entusiasmados os que acreditam no lema do American way of life: dividido culturalmente entre vencedores e fracassados. O senso comum quer assim, tudo indica, ficar ao lado dos vencedores, inspirados ora pela ética puritana, calvinista e protestante ora pelo voluntarismo, combinado ao neopositivismo travestido de auto-ajuda.

Não há, então, na nova ordem, lugar para conflitos nem contradições e tampouco para sofredores, desempregados, degredados filhos de Eva, pobres e latino-americanos? Mostra-se bem contraditório esse novo ethos da salvação, para quem conclama com veemência o Cristo, aquele que teria se batido corajosamente por todos estes. Certamente, seu discurso – « Amai-vos uns aos outros ! » -, em tempos hiperindividualistas, talvez seja agora considerado demodê. Não cabe no produtivista século XXI, que exclui a fragilidade, a lentidão e a profundidade, em nome do côro dos contentes : a geração prozac e ritalina. No atual sistema, ninguém pode titubear nem falhar, corpos e mentes têm que estar sempre em plena forma, reformados, uniformizados.

Na contracorrente, o Serviço Social, ou melhor, o trabajo social,  vem por toda a América Latina, desde final dos anos 60, apostando, nos de bajo, isto é, na capacidade de fazer e de ser dos de baixo: camponeses e trabalhadores. Temos investido num trabalho de educação política, participação e luta por direitos. Brasileiros, somos caudatários todos de Cristóvão Colombo continentalmente falando, sim, pois somos um país novo. Essa novidade nos liberta de arraigados dramas, costumes e preconceitos do velho mundo: Europa, Ásia e África - embora solape também um tanto de cidadania e de civilização. Trazemos a capacidade de desbravar, mais a vontade de inovar sem medo, o que é uma virtude. Portamos, porém, igualmente em nosso seio problemas atávicos, que remontam à Antiguidade, no que concerne às relações de gênero, por exemplo. Somos assim muito velhos ainda quanto a certos temas. Precisamos, especialmente nesse sentido, nos redescobrir. Precisamos nos refundar. Precisamos ousar pensar e fazer diferente, sem trair a nossa cultura e valores.


                                           FOTO : Direito achado na rua

A homenagem à profissão e por extensão ao falecido escritor Carlos Fuentes dá-se aqui por intermédio de um outro autor mexicano que ele admirava e eu também particularmente. Refiro-me a Juan Rulfo (1917-1986), celebrizado por seu romance Pedro Páramo (1955), que é, de fato, uma obra prima da literatura em língua hispânica.

Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente

Li há algum tempo um de seus contos « É que somos muito pobres » - publicado no livro O planalto em chamas (El lhano en llamas), de 1953, conto que desde o primeiro momento me interpelou. Penso que se trata, para o contexto brasileiro acima aludido, de um título deveras provocador, mas foi justamente sua alusão direta à classe trabalhadora que suscitou a minha curiosidade em lê-lo. Queria ver que tratamento o autor tinha dado para esse tema. Gostei, mas experimentei uma sensação de excesso ou desacordo na relação título e texto. Um amigo e interlocutor ontem mesmo me falava que algo parecido se passa com um dos livros de Jean Genet, Nossa Senhora das Flores [Notredame des Fleurs] - já devidamente anotado para ser conferido.

O que acontece com o conto de Rulfo « É que somos muito pobres », ao meu ver, é que, em certa medida, título e texto ficaram aprisionados num tempo histórico, embora tendo imortalizado o México: aquele da problemática da terra e da revolução mexicana em suas diversas faces. Não obstante, esta tensão entre literatura e história, entre relatos do passado e o presente dos leitores, renova a sua função cultural, pelos ângulos da ética e da estética.

Sua circulação na terra brasilis - terra atualmente sendo disputada ideologicamente por apologetas e «vencedores » - torna-se, no entanto, quase blasfematória, pois a força do texto incita, em quem o lê, no mínimo uma sensibilidade para o realismo, em suas várias expressões literárias latino-americanas. Por isso, hesitei, quanto a esse projeto de tradução e de partilha, embora tivesse certeza de que esse conto merecia ser divulgado. Cheguei mesmo a pensar em propor um outro título mais poético (« Serpentina »), num esforço de atualizá-lo e resgatá-lo parcialmente do pathos – referente à ênfase no drama e na tragédia -, em que esteve mergulhada a América católica e a literatura do então jovem autor Rulfo. No conto – um porta-retrato de uma família camponesa mexicana -, por exemplo, o narrador é uma criança, o que adiciona mais um elemento à auto-piedade de que o texto é imbuído e pode levar de roldão outros aspectos ricos que ele comporta. No entanto, a argumentação que construí para justificar a sua publicação convenceu-me do contrário: do papel importante, ainda que paradoxal, do título original.


                                               O escritor mexicano Juan Rulfo


Quisemos por meio dele aproximar o leitor contemporâneo das chagas da América Latina, mas pelas vias fecundas da literatura, mostrando o que nos une e separa. Temos um país em que muitos de seus habitantes se assemelham aos personagens do conto, com suas potencialidades e dificuldades. Grandes contingentes, em nosso país, ainda vivem, pelo menos na década de 50, do ponto de vista das necessidades necessárias e sociais, dos valores e da relação pais-filhos, assim como de homens e mulheres. Ou seja, muitas famílias brasileiras são ainda atravessadas pela rigidez e pelo moralismo, e não sabem muito bem o que fazer com a juventude, enquanto outras perderam toda e qualquer referência de limite, criando filhos, mas não os educando. Se falamos de literatura, falamos de representações, enquanto percepções de si e do outro, criações artísticas, mas que constituem, de modo complexo e intermitente, ecos das relações intersubjetivas e sociais.


                                                       Edward Munch


A ideia não é absolutamente julgar o texto de Rulfo, até porque podemos lê-lo, se quisermos, pela chave da ironia, travestida de conformismo social camponês. Ou do desespero irônico, segundo Le Clezio. O intuito é sobretudo mostrar que autores como ele e William Faulkner, respectivamente da corrente do realismo fantástico e poético, põem em evidência personagens femininos presos ao naturalismo e a uma condição inexpugnável de vivência da sexualidade como fatalidade e perdição. Não são exatamente eles que pensam assim. É a sociedade do seu tempo e por que não dizer ainda da nossa, apesar de sua máscara de modernidade e mundanidade. A opinião de Le Clezio acerca dos personagens femininos rulfianos, contudo, é : « neste mundo violento, são elas que resistem aos segredos das famílias, ao triunfo cruel dos homens, aos ciúmes, ao incesto, à desonra. » (Prefácio de Le lhano en flammes). No conto a seguir, fica a interrogação: mais vale uma vida de labuta, opaca, conformista e de sacrifícios ou a liberdade dos atos  e do próprio corpo?  Tudo indica que a liberdade pode ter um gosto amargo e um custo para os seus, como parte de um dilema fáustico. A ética, entretanto, parece fazer parte tanto do enigma quanto de sua solução, em que um final feliz torna-se secundário.

No Brasil, a recente Marcha das Vadias ousou assumir justamente o estigma e resignificá-lo: « se uma de nós é chamada de vadia, somos todas vadias ». A liberdade requer, portanto, ainda longas caminhadas pela noite, de forma a banir os pesadelos que cercam o desejo e a iluminar a necessidade de emancipação de homens e mulheres brasileiros, mexicanos, venezuelanos, ou seja, latino-americanos. Com vocês, então, Juan Rulfo !

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É que somos muito pobres



Juan Rulfo*

Aqui, tudo vai de mal a pior. Na semana passada, tia Jacinta morreu e no sábado, quando já a havíamos enterrado e ia baixando a poeira da tristeza, começou a chover como nunca. Isso deixou meu pai muito zangado, porque toda a colheita de cevada estava secando no pátio, e o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas, sem nos dar tempo de esconder um punhado sequer. A única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi nos reunirmos no alpendre, assistindo a água fria que caía do céu estragar aquela cevada amarela recém cortada.

E ontem, mal minha irmã Tacha completou doze anos, soubemos que a vaca que o papai lhe oferecera pelo seu aniversário havia sido levada pelo rio. 

Há três noites, ainda de madrugada, o rio começou a subir. Eu dormia profundamente, mas o forte ruído que o rio fazia, ao se arrastar, logo me despertou. Pulei para fora da cama com meu cobertor nas mãos. Podia acreditar que o teto da casa estava desmoronando. Pouco depois, porém, voltei a adormecer, quando reconheci o barulho do rio e ele se tornou constante até me trazer novamente o sono.
Quando levantei, a manhã estava cheia de nuvens e parecia ter chovido sem parar. O ruído do rio estava mais forte e era possível ouvi-lo mais de perto. Sentia-se, qual o cheiro de queimado, o cheiro podre das águas revolvidas.

Na hora que fui ver o que se passava, o rio já havia transbordado. Ia subindo pouco a pouco pela rua principal, e logo em seguida precipitou-se na casa da mulher que chamam de Dona Tambor. Ouvia-se o ruído da água, a entrar pelo celeiro e a sair em grandes jorros pela porta. Dona Tambor ia e vinha caminhando, pelo que era já um pedaço do rio, espantando suas galinhas para que fossem se esconder em algum lugar protegido da corrente.

O rio, na altura onde faz a curva, deve ter levado, não se sabe desde quando, o pé de tamarindo do quintal de tia Jacinta, porque agora já não há mais sinal dele. Era o único que havia no povoado, e por isso demo-nos conta de que essa enchente é a maior de todas as que se abateram sobre o rio em muitos anos.

De tarde, minha irmã e eu fomos de novo olhar aquele monte de água cada vez mais espessa e escura, já muito acima de onde deveria estar a ponte. Ficamos horas e horas sem nos cansarmos de ver tudo aquilo. Depois subimos o barranco, porque queríamos saber o que as pessoas diziam, porque embaixo, junto do rio, há muito barulho e de longe só se veem as bocas de uns e de outros que se abrem e se fecham, como a quererem dizer algo; porém não se ouve nada. Por isso subimos o barranco, onde havia muitas pessoas a observar o rio e falar dos prejuízos que tiveram. Foi lá que soubemos que o rio tinha levado Serpentina, aquela vaca com uma orelha branca e outra vermelha, e olhos muito bonitos, que pertencia à minha irmã Tacha, e tinha sido um presente do papai no dia do seu aniversário.




Não sei por que Serpentina quis atravessar o rio, quando ela sabia que não era o mesmo rio de todos os dias. Serpentina nunca ficou tão atarantada. O mais provável é ela ter sido arrastada dormindo para deixar-se matar assim sem mais nem menos. Muitas vezes, ao lhe abrir a porta do curral, precisei acordá-la para que despertasse, porque senão, por sua conta, teria continuado o dia inteiro com os olhos fechados, quieta e suspirando, como costumam suspirar as vacas quando dormem.

Foi isso provavelmente o que aconteceu, ela devia estar dormindo. Talvez ela despertou, já sentindo o peso da água golpear-lhe as costas. Talvez ela tenha se assustado e tentado recuar; porém ao recuar, viu-se encurralada no meio daquela água escura e dura, como um deslizamento de terra. Talvez tenha mugido pedindo que lhe ajudassem. Só Deus sabe o quanto deve ter mugido.

Perguntei ao senhor que viu quando o rio a arrastava, se não havia visto também o bezerrinho que andava com ela. Porém, ele não estava certo de tê-lo visto. Só disse que a vaca malhada passou com as patas para cima bem perto do lugar onde ele estava e que ali ela dera uma cambalhota e depois ele não conseguiu mais ver nem os chifres nem as patas nem mais nenhum sinal da vaca. Pelo rio flutuavam muitos troncos de árvores, inclusive com raízes, mas ele estava tão ocupado em pegar lenha, que não podia precisar se eram animais ou troncos que iam sendo arrastados.

Por isso mesmo, não sabemos se o bezerro continua vivo, ou se seguiu a mãe rio abaixo. Se assim foi, que Deus ampare os dois.




O que nos aflige, em casa, é o que pode suceder no dia de amanhã, agora que minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque nosso pai com muito sacrifício adquiriu Serpentina, ainda uma novilha, para dá-la à minha irmã, a fim de que ela tivesse um pequeno dote e não viesse a se tornar prostituta como minhas duas outras irmãs maiores.

Papai diz que se elas se perderam é porque somos muito pobres em nossa casa e elas eram cabeças duras. Desde pequeninas, já eram insolentes. E tão logo cresceram lhes deu na cabeça de andar com homens da pior espécie, que lhes ensinaram o que não presta. Elas aprenderam rápido e compreendiam muito bem os assobios, quando as chamavam tarde da noite. Depois saíam até de dia. Iam a todo instante pegar água no rio e às vezes, quando menos se esperava, lá estavam elas no celeiro, rolando no chão, nuas, cada uma com um homem por cima.

Meu pai então correu com as duas de casa. Primeiro aguentou tudo o que pôde; entretanto mais tarde já não podia mais suportá-las e jogou-as na rua. Elas foram embora para Ayutla ou não sei para onde; lá vivem como putas.


                           Foto : Juan Rulfo

Por isso, papai preocupa-se muito com Tacha, porque não quer que ela termine como suas duas outras irmãs, pois ele sabe que ela ficou muito pobre depois do que aconteceu  à sua vaca, logo não vai ter com o que se entreter enquanto cresce até se casar com um homem bom, que a queira para sempre. Isso agora vai ser difícil. Com a vaca era diferente, pois não faltaria quem tivesse ânimo de se casar com ela só para se apropriar de tão linda vaca.

A única esperança que nos resta é que o bezerro ainda esteja vivo. Tomara que não tenha tido a ideia de atravessar o rio atrás de sua mãe. Porque se assim foi, minha irmã Tacha não tardará a se prostituir. E isto, mamãe não quer.

Minha mãe não sabe por que Deus a castigou tanto, dando-lhe umas filhas assim, quando na sua família, de sua avó até hoje, nunca houve gente desse tipo. Todos foram criados no temor de Deus, eram muito obedientes e não faltavam com respeito a ninguém. Todos mantiveram a decência. Sabe-se lá onde suas filhas foram desencavar esse mau exemplo! Ela não se lembra. Passa em revista todas as suas lembranças e não vê com clareza qual foi a sua culpa ou o seu pecado para nascer uma filha atrás da outra com esse mau costume. Não consegue perceber. E cada vez que pensa nelas, chora e diz: "Que Deus proteja as duas!"

Mas papai fala que aquilo não tem mais jeito. Quem corre risco agora é essa que continua aqui, a Tacha, que cresce como talo de pinheiro, e cujos seios já afloram, prometendo ser como os de suas irmãs: pontudos, empinados e suficientemente desenvoltos a ponto de chamar a atenção.

-Sim – disse -, ela vai encher os olhos de qualquer um, onde quer que vá. E acabará mal, pelo que estou vendo, ela acabará mal.

Esta é a grande preocupação do meu pai.

E Tacha chora, ao se dar conta de que sua vaca não voltará, porque o rio a matou. Ela está aqui ao meu lado, com seu vestido cor de rosa, olhando o rio da beira do barranco, sem parar de chorar. Pelo seu rosto as lágrimas formam um rastro de água suja, como se o rio se tivesse entrado dentro dela.

Abraço-a, tentando consolá-la, porém ela não entende. Chora muito mais. De sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta junto com o rio, o que a faz tremer e sacudir-se toda, enquanto o rio não pára de subir. Uma bruma com o cheiro podre que sai das águas salpica a cara molhada de Tacha e seus dois peitinhos se movem, para cima e para baixo, sem cessar, como se tivessem começado de repente a inchar, a serviço de sua perdição.

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Mione Sales - é assistente social, doutora em Sociologia (USP) e tem mestrado em Literatura Comparada (Paris 3 Sorbonne). No contexto globalizado do precariato, trabalha em Paris como revisora e tradutora, e faz jornalismo cultural no Blog Mídia e Questão Social. Além disso, ensina a língua de Camões aos patrícios de Voltaire. Contato: mionesales@gmail.com

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Sugestões de leitura

FUENTES, Carlos. Aquilo em que acredito. Lisboa, Dom Quixote, 2002.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Várias edições.

Links
[« Baby », Caetano Veloso]

[« Podres poderes », Caetano Veloso]

[« O Bêbado e a Equilibrista”]